Nos últimos anos, Estados Unidos e Brasil registraram queda nas taxas de vacinação contra a poliomelite. A Sputnik Brasil ouviu dois médicos especialistas em saúde pública para avaliar a situação e a influência dos movimentos antivacina nesse quadro.
Um dos países mais ricos do mundo e um dos primeiros a oferecer vacina gratuita contra a COVID-19, os EUA estão em estado de alerta por conta de outro vírus, este considerado erradicado no país: a poliomielite.
Depois de mais de dez anos sem casos, um jovem adulto não vacinado e que não viajou para o exterior foi diagnosticado com a doença no país norte-americano.
A infecção pelo poliovírus (extremamente transmissível e que tem sua propagação facilitada em locais com saneamento básico precário, já que a trasmissão se dá por vias fecal ou oral) tem sintomas iniciais como febre e dor de garganta.
Quando o vírus atinge o sistema nervoso central, no entanto, pode causar sequelas neurológicas. Em alguns casos, pode levar à morte.
Embora o
movimento antivacina seja forte nos Estados Unidos, os especialistas ouvidos pela Sputnik Brasil apresentam uma
realidade distinta no Brasil, motivada, sobretudo, pelas políticas públicas —
ou pela ausência delas.
Gerson Salvador, médico e especialista em infectologia e saúde pública, explica que a queda na cobertura vacinal no Brasil se deu a partir de 2016.
"Junto com a queda na cobertura vacinal, houve o desmonte do SUS [Sistema Único de Saúde], principalmente da atenção primária. A gente teve, em 2016, o início do governo [de Michel] Temer. O então ministro Ricardo Barros declarou que o SUS era grande demais, que ele não cabia no Orçamento. A gente teve uma queda no orçamento no SUS, principalmente da atenção primária. Isso acabou impactando na redução de equipes de estratégia de saúde da família, uma redução de agentes comunitários de saúde. Houve queda do investimento no próprio Programa Nacional de Imunizações (PNI). A coordenadora do PMI declarou na CPI da COVID-19 que não tinha recursos para fazer campanhas como a gente tinha, de uma maneira muito intensiva [tal como tínhamos] nos anos 1980, 1990, 2000", relembra ele.
Gonzalo Vecina Neto, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e fundador e primeiro diretor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), acrescenta que isso ocorreu, principalmente, pelo teto público de gastos implementado no governo Temer.
"Desde 2016, quando começaram a acabar com os recursos públicos por causa da Emenda Constitucional 95, que criou o tal do teto de gastos públicos, nós paramos de comunicar [questões de saúde pública]. Quem tem tempo de vida viu o que era uma campanha de vacinação no Brasil antes de 2016: era uso maciço de todas as mídias. De 2016 para cá, o Ministério da Saúde cancelou todas as mídias para fazer convocação para vacinação, para fazer prevalecer comportamentos seguros na realização de sexo. Quer dizer, o governo parou de se comunicar com a sociedade. Qual é a consequência dessa parada? A queda da vacinação, o aumento de casos de AIDS, o aumento de casos de sífilis e de doenças sexualmente transmissíveis", aponta Vecina.
Ele pondera que a medicina na saúde pública também é comunicação para a população.
Ou seja, é preciso comunicar o que a população tem que fazer e como a população tem que fazer, argumenta.
"Podemos discutir se o modelo de comunicação é o mais adequado. Mas é o que temos. Então, sem campanha, sem vacinação, simples assim. O que falta no Brasil é campanha, comunicação do Estado com a sociedade", aponta.
Há negacionistas do movimento antivacina no Brasil?
Salvador indica que o atual presidente, Jair Bolsonaro (PL), e seus apoiadores i
niciaram um movimento para desacreditar os imunizantes contra a COVID-19 durante a pandemia.
"Houve uma decisão do Bolsonaro, principalmente, e de figuras ali do entorno do bolsonarismo (com destaque para o Olavo de Carvalho e seus seguidores que importaram algumas teses, muito numa procura de alinhamento com Trump, para desqualificar as vacinas da Covid, desqualificando as vacinas da Covid para justificar o atraso do governo em relação à compra das vacinas). Então, Bolsonaro, particularmente, junto com o seu núcleo, lançou uma semente de desconfiança contra as vacinas da Covid que me parece ter impacto nas vacinas em geral. Mas isso foi construído artificialmente, não foi um movimento que veio da sociedade civil. Isso veio a partir do próprio Bolsonaro", avalia o infectologista.
O professor da USP, por sua vez, acredita que entre 2% ou 3% da população do Brasil esteja em um movimento antivacinas.
"Eu não acredito na tese de que nós temos de 15% a 20% de negacionistas no Brasil. Não é verdade que nós temos isso no Brasil, são 2% a 3% que são negacionistas. O resto é falta de comunicação, de informação para que as pessoas tenham uma atividade proativa", assinala.
Vecina diz que nos Estados Unidos "o buraco é mais embaixo".
Isso porque lá não há um sistema de saúde público, "é cada um por si".
A capacidade de comunicação do governo norte-americano com a sociedade do ponto de vista de saúde pública, é zero, algo que, de acordo com ele, torna o problema diferente do daqui.
"Lá o negacionismo, além de tudo, tem a participação criminosa de pessoas como o ex-presidente Donald Trump. Então, lá é uma coisa e aqui é outra. Temos conservadores lá e aqui. Só que os daqui são menos burros, talvez, do que os de lá", compara.
A questão é: como evitar novos surtos de poliomielite?
"Não tem outro jeito, é só vacinar. É se comunicar e vacinar. Não tem outra saída", conclui o professor.
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