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A prolongada crise da falta de medicamentos no Brasil pode ganhar contornos mais graves caso nenhuma atitude seja tomada. Até soro fisiológico, insumo básico para tratamentos de saúde, está faltando em unidades hospitalares. A Sputnik explica como o sumiço de remédios nas gôndolas de farmácias e em enfermarias afeta a soberania nacional.
Dados coletados por entidades de saúde e municípios apontam para a seriedade da situação: levantamento da Confederação Nacional de Municípios (CNM)
feito com 2.469 prefeituras mostra o
cenário do desabastecimento de remédios no Brasil. Segundo a pesquisa,
mais de 80% dos gestores relataram sofrer com a falta de medicamentos para atender a população.
A falta de amoxicilina (antibiótico) foi apontada por 68%, ou 1.350 municípios que responderam à pergunta. A ausência de dipirona (anti-inflamatório, analgésico e antitérmico) na rede de atendimento municipal foi apontada por 65,6% — isto é, em 1.302 cidades da amostra consultada.
A dipirona injetável esteve na resposta de 50,6% e a prednisolona, usada no tratamento de alergias, distúrbios endócrinos e osteomusculares e doenças dermatológicas, reumatológicas, oftalmológicas e respiratórias, foi mencionada por 45,3% dos municípios consultados.
A magnitude do problema também foi mensurada pela Confederação Nacional de Saúde (CNSaúde): 87,6% de 113 unidades de saúde consultadas relataram que estão com dificuldades de aquisição de soro de volumes variados, sendo que 53% delas estão com estoques desse insumo fundamental abaixo de 25%.
Em meio a essa escassez, uma reportagem do Jornal Nacional de terça-feira (19)
mostrou, com base na Lei de Acesso à Informação (LAI), que quase
22 milhões de medicamentos perderam a validade em centros de distribuição que ficam em São Paulo e no Rio de Janeiro — um
prejuízo calculado em R$ 243,7 milhões.
Afinal, como a soberania brasileira é afetada pela crise de medicamentos?
Órgão fiscalizador da saúde pública do Brasil, o Conselho Nacional de Saúde emitiu um
parecer a autoridades e municípios com orientações acerca da reposição dos remédios em 30 de junho, que também pede ao Tribunal de Contas da União (TCU) uma
inspeção de contratos e licitações, além de citar a
questão da crise dos medicamentos como um atributo da soberania nacional prevista pela Constituição Federal de 1988.
Em seu primeiro parágrafo, o documento cita o artigo "1º da Constituição Federal de 1988, que prevê como fundamentos do Estado a soberania, a cidadania e a dignidade da pessoa humana".
O Brasil não é um produtor de princípios farmacológicos ativos, mas sim um importador deles. Para ser autossuficiente nessa questão, precisaria de um investimento maciço e bilionário em alta tecnologia e robôs de produção.
Enquanto isso não acontece, a solução seria manter os estoques abastecidos, segundo opinou Paulo César Alves Rocha, especialista em infraestrutura, logística e comércio exterior, à Sputnik Brasil.
"Quando há falta de soro fisiológico para o hospital, se é feito na China e não há alternativa senão importar, afeta a soberania do país. Mas, no caso de medicamentos, manter estoques garantidores é uma questão estratégica", analisou.
Especialistas atribuem a falta de medicamentos ao fechamento dos portos chineses por um período de dois meses, medida tomada em razão de uma nova onda da pandemia de COVID-19.
"Dependemos muito do mercado externo no segmento de insumos médicos. Com a pandemia isso ficou muito evidente, devido à falta de EPI [equipamento de proteção individual], de respiradores, de anestésicos para intubação. Agora há essa situação de falta dos soros hospitalares, que afeta diretamente pessoas que precisam de diálise, um tratamento que ocorre de duas a três vezes por semana. As unidades não estão conseguindo comprar", observou Breno Monteiro, médico e presidente da CNSaúde. "Mais de 95% dos insumos médicos dependem da China por causa do IFA [Ingrediente Farmacêutico Ativo, que faz com que a medicação produza o efeito desejado]."
A
operação militar especial da Rússia na Ucrânia também é apontada como uma das razões pelo Ministério da Saúde.
No entanto, ambas as hipóteses são colocadas sob questionamento pelo presidente da Confederação Nacional de Municípios (CNM), Paulo Ziulkoski, que compilou os dados sobre a crise.
"Que não venham com a desculpa de que o conflito na Ucrânia é o motivo, pois ele não tem nem quatro meses ainda. Isso é um problema crônico, já vem desde o ano passado ou retrasado. Não é de agora e vai continuar. Não é o lockdown que tem na China que está emperrando tudo. Alguma coisa está equivocada, e a União tem que responder para nós o que está acontecendo", cobrou Ziulkoski.
O presidente do CNM sublinhou a necessidade de uma política de contingência nacional para cobrir a falta de medicamentos no Brasil e, desse modo, garantir a soberania de produção.
"É uma questão gravíssima. É falta de planejamento. Compete à União, ao governo federal obter os insumos e os remédios e a nós aplicar lá na ponta. As prefeituras são as operadoras para a aplicação de vacinas, de remédios, e para a internação na ponta. Por isso é muito complexa e gravíssima a situação, porque o sistema todo está sendo afetado. São centenas, milhares de pessoas que estão vindo a óbito ou então [dependem] de internações onde não há vagas, ainda mais quando isso se afunila com a pandemia pela qual estamos passando. É um diagnóstico que estamos fazendo, e agora nos resta denunciar e dar transparência a isso. Estamos protocolando esses estudos e pedindo às autoridades que imediatamente encontrem uma solução", alertou.
Procurados pela Sputnik Brasil para comentar a
falta de medicamentos e insumos de saúde pelo país,
o Ministério da Saúde e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) não se manifestaram.
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