A desigualdade mata
O relatório sobre desigualdade foi divulgado neste início de janeiro de 2022. Segundo o documento, a riqueza dos dez homens mais ricos do mundo dobrou desde o início da pandemia. A renda de 99% da humanidade está pior em virtude da Covid-19. As crescentes desigualdades econômicas, de gênero e raciais, assim como as desigualdades que existem entre os países, estão destruindo nosso mundo. Isso não acontece por acaso, mas sim por escolha: A “violência econômica” é cometida quando as escolhas de políticas estruturais são feitas para as pessoas mais ricas e poderosas”.
A desigualdade é responsável pela morte de uma pessoa a cada quatro segundos no mundo, e pela extrema piora da vida de meninas, mulheres, pessoas em situação de pobreza, grupos racializados. O relatório da Oxfam aponta para a necessidade de se pensar uma economia em que a desigualdade não mate mais e elenca medidas e ações necessárias para isso: “tributação progressiva; investimento em políticas públicas fortes e comprovadas contra a desigualdade; mudar corajosamente o poder na economia e na sociedade”.
Os dados muito bem compilados pelo relatório ressalta algo que já se tornou visível e que foi enfatizado pela professora Jayati Ghosh, da Universidade de Massachussets: “A dura verdade que a pandemia nos trouxe é que o acesso desigual à renda e a oportunidades faz mais do que criar sociedades injustas, insalubres e infelizes, na verdade, ele mata as pessoas. Nos últimos dois anos, pessoas morreram após contraírem uma doença infecciosa porque não receberam vacinas a tempo, muito embora essas vacinas pudessem ter sido mais amplamente produzidas e distribuídas se a tecnologia tivesse sido compartilhada.
E os dados mostrados revelam de fato que o cenário é indecente: a renda dos 10 homens mais ricos do planeta DOBROU desde o início da pandemia, enquanto a renda de 99% da humanidade está muito pior. Isso é inaceitável e insustentável.
Vamos a alguns dados:
- De março de 2020 a novembro de 2021, em plena pandemia, a riqueza dos 10 homens mais ricos do mundo dobrou;
- A desigualdade mata pelo menos uma pessoa a cada quatro segundos no mundo;
- A fortuna de 252 homens é maior do que a riqueza combinada de todas as mulheres e meninas da África, América Latina e Caribe, o que equivale a 1 bilhão de pessoas;
- Desde 1995, o 1% mais rico acumulou quase 20 vezes mais riqueza global do que os 50% mais pobres da humanidade;
- Um novo bilionário surge a cada 26 horas desde o início da pandemia;
- Mais de 160 milhões de pessoas foram empurradas para a pobreza;
- A desigualdade de renda é um indicador mais assertivo para saber se você morrerá de Covid-19 do que a idade;
- Todos os dias, a desigualdade contribui para a morte de pelo menos 21.300 pessoas
- Só o aumento da fortuna de Jeff Bezos (o homem mais rico do mundo, que foi ao espaço com amigos) durante a pandemia poderia pagar para que todos na Terra fossem vacinados com segurança;
- Apartheid vacinal: ao invés de as vacinas serem um bem público universal, foram capturadas por gigantes farmacêuticas, criando-se os “bilionários das vacinas”.
Cinco fatos sobre os 10 homens mais ricos do mundo: - A riqueza dos dez homens mais ricos dobrou, enquanto a renda de 99% da humanidade decaiu, em razão da Covid-19;
- O patrimônio dos 10 homens mais ricos do mundo é maior do que o dos 3,1 bilhões de pessoas mais pobres;
- Se os 10 homens mais ricos gastassem um milhão de dólares cada um por dia, seriam necessários 414 anos para gastar suas fortunas combinadas;
- Se os 10 bilionários mais ricos se sentassem no topo de suas fortunas combinadas empilhadas em notas de dólares norte- americanos, eles chegariam quase na metade do caminho para a Lua;
- Um imposto único de 99% sobre o aumento repentino nos lucros decorrentes da Covid-19 obtidos pelos 10 homens mais ricos do mundo poderia pagar vacinas suficientes para todo o mundo e preencher as lacunas de financiamento em medidas climáticas, de saúde universal e proteção social e nos esforços para combater a violência de gênero em mais de 80 países, enquanto ainda deixaria esses homens com US$ 8 bilhões a mais do que tinham antes da pandemia.
- Violência econômica
O relatório da Oxfam aponta a existência de uma “violência econômica” e enfatiza que isso nunca foi algo aleatório, mas sim por escolha, ou seja, assim como a desinformação, a desigualdade é um projeto político. Ela não é aleatória, mas estrutural, e “é parte integrante da maneira como nossas economias e sociedades funcionam nos dias de hoje. Isso ficou particularmente evidente durante o recente período de 40 anos de neoliberalismo, durante o qual as escolhas de política econômica foram compradas por elites ricas, poderosas e corruptas, alimentando a insegurança econômica que poderia ser evitada para a maioria”.
De acordo com o documento, “a desigualdade extrema é uma forma de violência econômica pela qual políticas estruturais e sistêmicas e escolhas políticas que são enviesadas em favor dos mais ricos e poderosos resultam em danos diretos à grande maioria das pessoas comuns no mundo todo”.
Segundo o relatório, os dados expostos mostram muito bem como as políticas econômicas e a cultura política “estão perpetuando a riqueza e o poder de alguns poucos privilegiados, prejudicando diretamente a maioria da humanidade e o planeta, com pessoas vivendo na pobreza, mulheres e meninas e grupos raciais e oprimidos sendo os mais atingidos”.
Alguns dados:
1 Estima-se que 5,6 milhões de pessoas morrem todos os anos por falta de acesso a atendimento de saúde em países pobres;
- No mínimo, 67.000 mulheres morrem a cada ano devido à mutilação genital feminina ou assassinato cometido por um ex-companheiro ou parceiro atual— a violência de gênero está enraizada no patriarcado e nos sistemas econômicos sexistas. Além disso, estima-se que 143 milhões de mulheres estão desaparecidas em todo o mundo devido a uma combinação de mortalidade feminina excedente e abortos seletivos em razão de sexo (preferência por filho): em 2020, havia uma estimativa de 1,7 milhão de mortes excedentes de mulheres e de 1,5 milhão de abortos seletivos em razão de sexo;
- Em um mundo de recursos abundantes, a fome mata, no mínimo, mais de 2,1 milhões de pessoas por ano;
- Em uma estimativa conservadora, 231.000 pessoas poderiam morrer a cada ano devido à crise climática em países pobres até 2030
A riqueza atual das pessoas extremamente ricas e a taxa de acumulação de riqueza não encontram precedentes na história humana, isso é devastador, inaceitável – as fortunas de gigantes da tecnologia e de mundo digital, como Google e Facebook, cresceram exponencialmente, assim como a fortuna de gigantes farmacêuticas. Desde 1995, o 1% mais rico capturou quase 20 vezes mais riqueza global do que os 50% mais pobres da humanidade, que capturaram somente 2% do crescimento da riqueza global. Isso é um assombro – como a humanidade vai funcionar assim?
Violência de gênero: a pandemia ignorada
Segundo o professor Darrick Hamilton, “Racismo, sexismo e outros ‘ismos’ não são apenas preconceitos irracionais, mas mecanismos estratégicos de exploração e extração de longa data que beneficiaram alguns em detrimento de outros”. Um exemplo é o impacto da pandemia sobre as mulheres, que foram as que sofreram de modo mais severo esse impacto: no mundo, elas perderam, coletivamente, 800 bilhões de dólares em ganhos em 2020; e enquanto a questão do emprego lentamente se recupera para o homens, no caso das mulheres, estima-se que 13 milhões a menos de mulheres estejam empregadas em 2021; na América Latina, a redução de vagas de empregos para mulheres foi de 9,4%; e no mundo, mais de 20 milhões de meninas podem nunca mais voltar à escola. Somando-se a isso, houve um aumento significativo do trabalho não remunerado de cuidados as mulheres e meninas – ou seja, a carga de trabalho do público feminino piorou enormemente, num cenário que já não era favorável.
De acordo com o relatório, para cada três meses de lockdown/quarentena, haveria mais 15 milhões de casos de violência por parceiro íntimo. O documento também aponta que há pouquíssimos dados globais sobre a violência de gênero, uma vez que mulheres, meninas, transgêneros e pessoas não binárias são pouquíssimo valorizadas na sociedade.
Como ações necessárias e soluções possíveis, o relatório fala na tributação dos ricos e enfatiza que somente soluções sistêmicas serão capazes de combater a violência econômica.
Alguns aspectos em destaque:
- os governos devem centrar suas estratégias econômicas em uma maior igualdade. Isso significa igualdade econômica muito maior, juntamente com metas para buscar a igualdade de gênero e racial, devendo ser respaldada por marcos explícitos, com prazo determinado e mensuráveis
- Os governos podem e devem implementar mecanismos de redistribuição, usando gastos e impostos progressivos para redistribuir o poder e a riqueza dos ricos e investi-los na grande maioria
- Os governos devem agir agora para recuperar o aumento exponencial da riqueza bilionária durante a pandemia de Covid-19, implementando impostos únicos de solidariedade para liberar bilhões para combater a desigualdade
- Os governos devem dar continuidade – e tornar permanentes – aos impostos progressivos sobre o capital e a riqueza, além de acabar com os paraísos fiscais e a evasão fiscal das empresas.
- Saúde universal de qualidade, financiada pelo governo e fornecida publicamente
- Proteção social universal que ofereça segurança de renda para todos.
- financiamento urgente para a adaptação, perdas e danos e um mundo livre de combustíveis fósseis
- Fim da violência de gênero: investimento para ajudar a fortalecer os direitos das mulheres
- Combater as desigualdades entre os ricos e a maioria: fazer valer os direitos humanos dos trabalhadores e das pessoas
- Combater as desigualdades entre países ricos e pobres: uma renúncia às normas de propriedade intelectual
- Redistribuir o poder na política e no setor privado para que funcione para a maioria: fazer dos trabalhadores o centro na tomada de decisões corporativas e aumentar a representação política de mulheres, grupos raciais e pessoas da classe trabalhadora
De fato, o relatório aponta um cenário devastador e mortífero; aponta também soluções ousadas a serem implementadas, em especial pelos governos. No entanto, é preciso pensar e muito claramente que os gigantes econômicos, o sistema financeiro, os conglomerados capturam e capturam os governos, com o apoio essencial de um outro sistema que também tem um super poderio econômico, o midiático. Portanto, é um problema gravíssimo e que precisa ser debatido e enfrentado. A questão é como.
Eliara Santana é uma jornalista brasileira e Doutora em Linguística e Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), com especialização em Análise do Discurso. Ela atualmente desenvolve pesquisa sobre a desinfodemia no Brasil em interlocução com diferentes grupos de pesquisa.
Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN
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