Senadora Isabel Allende: “Kast representa o oposto do que deve ser uma sociedade inclusiva e tolerante”
Isabel Allende é filha do legendário presidente Salvador Allende, que em 11 de setembro de 1973 foi derrubado pelo golpe de Estado apoiado por Washington que inaugurou uma das mais sanguinárias ditaduras da história da humanidade.
Ela exerceu vários mandatos de deputada nacional e atualmente é Senadora da República do Chile.
Em entrevista ao Brasil247 [vídeo na íntegra aqui] neste sábado, 18/12, véspera da votação do 2º turno da eleição presidencial do Chile, a senadora Isabel Allende explanou sobre a decisão do Partido Socialista de apoiar o candidato Gabriel Boric, da Frente Ampla e sobre a ameaça que o candidato de ultradireita José Antonio Kast representa para o país.
Apenas ficou definida a passagem de Boric e de Kast para o 2º turno, o Partido Socialista da senadora Isabel Allende não hesitou em declarar apoio incondicional ao candidato da Frente Ampla.
Perguntada sobre a decisão de apoiar Boric, a senadora explicou que o candidato de esquerda apoiado pela centro-esquerda se compromete com as mudanças sociais que o povo de Chile, a cidadania, e muitos manifestantes massivamente manifestaram nas ruas do país em outubro de 2019.
Para a senadora, a candidatura de Gabriel Boric recolhe as necessidades e os sentimentos das pessoas que se manifestaram por mais igualdade, por menos abusos contra o povo e menos injustiças.
“Boric não só representa estas mudanças, como a maneira de fazê-las gradualmente”, afirmou, complementando que o candidato da Frente Ampla “representa o que temos desejado sempre: ter um estado social de direitos; a garantia dos direitos mais básicos como educação, saúde, moradia, pensões”.
Na visão dela, Boric também representa uma mudança geracional e, por isso, incorpora valores que o candidato de direita, “que não é só de direita, pois é de uma direita muito mais extrema”, não acredita, como, por exemplo, os câmbios climáticos.
“Cremos que Gabriel nos representa porque a esta geração importa o desenvolvimento sustentável, o câmbio climático, a sociedade que vamos legar a novas gerações”, concluiu.
Além disso, disse Isabel Allende, Kast defende o conceito de família tradicional, e eliminaria o que acabamos de aprovar, o matrimônio igualitário. E também terminaria com o direito da mulher ao aborto mesmo nos casos de estupro, de gestação que ofereça risco à vida da mulher e de patologia congênita ou genética do feto que torne incompatível a vida extrauterina independente.
Para a senadora, Kast “é o antípoda do que cremos que deve ser una sociedade inclusiva, tolerante, onde existam diversas famílias e diversas orientações sexuais”.
Na entrevista, Isabel Allende abordou também o paradoxo entre o processo constituinte aponta para mudanças estruturais no país; e a força eleitoral impressionante do candidato que representa retrocessos democráticos, humanitários e civilizatórios.
“Essa é uma pergunta que todos nós nos fazemos, e que teremos que refletir mais profundamente”, afirma. Ela destaca, porém, que as revoltas de 2019 – o “estallido social” – por um lado, teve “significados maravilhosos” que desaguaram no processo constituinte, que permitirá que o Chile enterre a constituiçao pinochetista de 1980; mas, por outro lado, a violência daqueles embates gerou um clima de medo e incerteza no país.
“Então Kast iniciou um discurso que tem muito a ver com ordem, com restaurar a ordem”, ela disse, complementando que “ele reforçou muito os temores, por exemplo, com a imigração, e parte da cidadania aprova este discurso”. “Kast é um especialista em medo”, conclui.
Vale lembrar que a respeito deste tema, Kast propõe a construção de um fosso de 3 metros de profundidade por 3 metros de altura na fronteira que o país faz ao norte com o Perú e a Bolívia para impedir o ingresso de imigrantes. Além disso, propõe detenções ilegais e prisões clandestinas, ao estilo Guantánamo, para imigrantes.
Isabel Allende recorda que Kast empregou uma retórica anticomunista e criou fantasmas que assustaram as pessoas. Repetia o discurso ultrapassado de que o Partido Comunista manda na campanha de Boric, que o Chile se pareceria com a Venezuela, “e isso tudo penetrava muito profundamente no imaginário popular”.
“Então esse candidato surge com esse discurso, deixando para trás uma direita tradicional e conseguindo com esse discurso muito mais extremo a conquista dessa cidadania. E isso é preocupante e doloroso. Considero nosso fracasso como centro-esquerda”, reconhece.Ela entende que esses discursos de medo conseguem capturar tão profundamente cidadãos que acabam assimilando ideias autoritárias como “a mão pesada no combate ao crime, contra o imigrante, a amargura do povo Mapuche etc. É doloroso. É por isso que considero, até certo ponto, nosso fracasso”.
Questionada sobre a possibilidade de Kast não aceitar a derrota e gerar um impasse como ocorreu na invasão do Capitólio nos EUA, na recusa de Keiko Fujimori em acatar a vitória de Pedro Carrillo no Perú e como Bolsonaro ameaça fazer no Brasil no pleito de 2022, a senadora Isabel Allende não acredita que isso possa acontecer: “me custaria muito crer nisso”.
Embora seja esperado um resultado apertado, ela sente que poderá haver uma surpresa com o comparecimento elevado de jovens para votar. Se isso acontecer, diz ela, “não há dúvida de que eles estão com o Boric e querem que a Convenção Constitucional faça o seu dever de casa e tenha uma nova Constituição. Podemos vencer e com uma distância importante, mas depende muito de eles votarem porque no 1º turno não votaram de forma tão massiva. Então aqui depende muito dos jovens para votar”.
Na opinião dela, se se confirmar o aumento do comparecimento da juventude para votar, a diferença de votos deixará de ser apertada, o resultado será inquestionável e então Kast perderá totalmente o argumento para tentar produzir um impasse aos moldes dos seus homólogos de ultradireita mundo afora.
A senadora ainda respondeu ao questionamento sobre eventual paralelo entre a geração política do Governo da Unidade Popular de Salvador Allende e a atual geração que poderá assumir o Governo do país com a Frente Ampla.
Isabel entende que não são gerações comparáveis. “Hoje é um mundo bastante diferente, globalizado e, além disso, temos uma tarefa desafiadora que é recuperar credibilidade na política. Os partidos, hoje em dia, mundialmente estão desacreditados, perderam a confiança, a [identidade com a] cidadania”, afirmou.
E, finalmente, a respeito de um eventual governo Boric da Frente Ampla, ela acredita que Boric impulsionará o trabalho da Assembleia Constituinte, “dará todas as facilidades para que a Consituinte termine bem o seu trabalho e lhe dê todas as facilidades para seu trabalho autônomo para que aprove o novo texto constitucional”.
“Acredito que este novo texto vai finalmente caminhar para um estado social de direitos, como falamos antes, para garantir direitos reais aos cidadãos, os direitos básicos de que falamos, como moradia, saúde, previdência e também, claro, direitos, como meio ambiente, acesso à água. Em suma, creio que é muito importante que esta nova Constituição caminhe em direção a esse estado social de direito”, disse.
“Oxalá um dia o aborto também será livre para as mulheres decidirem se desejam ou não continuar a gravidez, etcétera, etcétera”, disse Isabel Allende.
Confiante na vitória de Boric neste domingo, 19/12, a senadora Isabel Allende disse estar realmente torcendo “para que o Boric vença e que marchemos para uma sociedade que seja mais tolerante que seja mais própria do século 21”.
“Acredito que essas novas gerações estão obrigadas a trabalhar por uma sociedade que deixe um mundo muito melhor para as novas gerações que virão. Que inclusive não cometam os nossos erros”, concluiu a senadora Isabel Allende a esta entrevista exclusiva ao Brasil247 realizada diretamente em Santiago do Chile por Jeferson Miola.
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