Operação Condor: Justiça da Argentina inicia ação por sequestro de brasileiro
Créditos da foto: (Joaquín Salguero) |
Por Redação Página/12 - na Carta Maior
Desde o início dos Anos 70, o ditador brasileiro Emilio Garrastazú Médici – muitas vezes elogiado por Jair Bolsonaro –contou com a cumplicidade do regime militar argentino para realizar uma caça silenciosa aos opositores que atuavam na resistência democrática.
Uma das primeiras dessas ações coordenadas ocorreu no inverno de 1971, quando a Polícia Federal sequestrou Edmur Péricles Camargo, um militante do PCB (Partido Comunista Brasileiro) no aeroporto de Ezeiza, na Argentina, que vinha sendo seguido por serviços de vários países. Desde então ele está desaparecido.
Cinquenta anos após o crime, nesta quinta-feira, o investigador Jair Krischke, maior pesquisador sobre a Operação Condor no Brasil,e Adolfo Pérez Esquivel, ganhador do Prêmio Nobel da Paz de 1980, denunciarão o caso à Justiça Federal argentina.
“Estou muito confiante de que nossa denúncia prosperará, tenho grandes expectativas de que a justiça argentina esclareça esses crimes imprescritíveis e faça o que a justiça de meu país não fez, que não processou criminalmente nenhum repressor da ditadura”, disse o incansável Krischke, depois de ter travado batalhas judiciais no Brasil e no exterior.
Krischker completou dizendo que “o Brasil sofreu uma terrível e muito longa ditadura de 21 anos, que, além de permanecer impune até hoje, é tida como modelo por Bolsonaro e pelos militares que o cercam”.
Ezeiza
“No dia 16 de junho de 1971, Edmur Péricles Camargo estava dentro de um avião da empresa de Lan Chile, no voo 317 que vinha de Santiago.Na época, Lan Chile era uma companhia aérea estatal. Eram mais ou menos quatro da tarde quando os policiais argentinos entraram na aeronave e reconheceram Edmur, que estava sentado. Ele foi detido sem mandado e retirado à força do avião. A visão de Edmur não era muito boa quando foi preso. Ele foi brutalmente torturado e perdeu a visão de um olho”, relatou Krischke, que também é chefe do MJDH (Movimento por Justiça e Direitos Humanos).
“Eles o colocaram em um veículo e o levaram para o Aeroparque. No dia seguinte, um avião da Força Aérea Brasileira chegou bem cedo, antes das seis da manhã, o levaram a uma base aérea militar do Galeão, no Rio de Janeiro. Tudo o que estamos falando aqui está muito bem documentado”, garante Krischke.
Na ação judicial, que será apresentada formalmente na próxima quinta-feira (30/12), serão anexados papeis secretos obtidos no Brasil pelo MJDH e na Argentina pela Comissão Provincial da Memória, presidida por Pérez Esquivel, e cujo secretário é Roberto Cipriano, que também participa da ação como autor.
Cartas para Goulart
“O Edmur era conhecido como ‘Gauchão’, eu o conheci pessoalmente nos Anos 60, era um homem robusto, um cara de muito bom humor, que, em janeiro de 1971, foi deportado do Brasil para o Chile, onde já governava Salvador Allende, que recebeu a muitos outros perseguidos que corriam o risco de serem eliminados no Brasil”, lembra Krischke.
“Os militares não tiveram escolha a não ser mandá-lo ao Chile, junto com outros 69 presos políticos, em troca da libertação de Giovanni Enrico Bucher, embaixador suíço no Brasil que havia sido sequestrado por um grupo guerrilheiro sob o comando do ex-capitão do Exército, Carlos Lamarca”, conta o investigador, recordando a captura do diplomata suíço no Rio de Janeiro, em dezembro de 1970, episódio que teve sabor da humilhação para o então presidente Garrastazú Médici.
Foi o mais longo cativeiro de uma pessoa sequestrada durante a ditadura, e o responsável pela ação foi um militar dissidente, Lamarca, que mais tarde seria assassinado.
Com o golpe de 1964, a ala conservadora pró-americana consolidou-se no exército contra uma minoria, embora importante. Uma corrente de oficiais nacionalistas e sargentos que defendiam o presidente João Goulart.
Em 1964, logo após ser derrubado, João “Jango” Goulart se instalou em Montevidéu, onde vivia uma legião de exilados, como o coronel democrático Jefferson Cardim Osorio, que terminou sendo sequestrado em 1970 em Buenos Aires, em outra operação argentino-brasileira, que também contou com apoio uruguaio.
Ao lado do presidente deposto estavam democratas mais ou menos moderados, figuras de grupos de esquerda e até membros da resistência armada, como o próprio Edmur Péricles Camargo.Para essas facções, entre as quais não faltavam diferenças, Goulart foi uma figura com peso suficiente para liderar um processo de reconstrução democrática forjado no que se chamou de “Frente Ampla”.
Essa Frente, consolidada em Montevidéu, passou a contar com o apoio de políticos de direita que se arrependeram de ter apoiado o golpe.“Quando Edmur foi sequestrado em Buenos Aires, ele só fazia uma escala, porque o destino final de sua viagem era Montevidéu. Sua missão era entregar a Goulart três cartas enviadas por opositores da ditadura que estavam no Chile, que queriam articular-se com os que estavam no Uruguai”, explica Krischke.
Seguir a pista
Jair Krischke argumenta que se a justiça argentina esclarecer o crime contra Camargo será dado um passo para a desconstrução da teia de cumplicidades entre militares, serviços de inteligência e diplomatas participantes do aparato repressivo sul-americano surgido naqueles anos, e que “tem cúmplices que querem manter o secretismo até hoje”.
É possível que surjam elementos que permitam revelar “o quanto ainda falta saber sobre aOperação Condor, porque depois de pesquisar o assunto por muitos anos estou convencido de que o Condor foi uma ideia que surgiu no Brasil, mas como nada foi. investigado em meu país, o Condor brasileiro é o Condor menos conhecido”.
“A Operação Condor se consolidou formalmente no Chile em 1975, mas temos este caso de Edmur em 1971 e outros mais ou menos contemporâneos que nos mostram que a rede já funcionava antes”, recordou.
Operação Condor não era apenas repressão
A Operação Condor costuma ser reduzida ao seu aspecto repressivo, já que essa faceta se completa com sua função de instrumento a serviço da estratégia brasileira de desestabilizar governos democráticos e estimular o estabelecimento de ditaduras inspiradas na doutrina de segurança nacional.
Desde que chegaram ao Planalto, em 1964, os generais brasileiros contribuíram com dinheiro, informações e técnicas repressivas aos militares sediciosos que mais tarde tomariam o poder no Uruguai, no Chile e na Bolívia, como foi evidenciado em centenas de documentos cujos segredos foram desclassificados em anos seguintes.
Bolsonaro
Krischke entende que o processo judicial na Argentina pode ter repercussões no Brasil e inclusive afetar a imagem de Bolsonaro, cuja biografia está ligada à ditadura.
“Acho que esse julgamento pode ser uma má notícia para Bolsonaro e sua política de falsificar a história. Ele afirma que a ditadura era um tempo de calma e prosperidade, que a economia do Brasil crescia e eles viviam no melhor dos mundos e o caso mostra que essa versão é falsa”.
Krischke espera que, a partir desse julgamento, seja feito um “trabalho de esclarecimento de fora para dentro do Brasil”, e traz como exemplo o processo da Operação Condor realizado na justiça italiana, com o qual o investigador colaborou, e onde vários repressores brasileiros foram processados, apesar do fato de que nenhum deles foi condenado.“Se o caso avançar no tribunal argentino, haverá no Brasil questionamentos sobre por que a lei de anistia militar ainda não foi revogada”.
Questionado sobre a possibilidade de o caso ser reproduzido no Brasil, Krischke responde: “Não acho que isso vá acontecer, mas poderia sim ir à Corte Interamericana de Direitos Humanos, ou para outros fóruns internacionais onde a imagem do Brasil e de Bolsonaro são muito ruins. Recordemos que Bolsonaro acumula vários processos nessa Corte, e que também foi denunciado no Tribunal Penal Internacional”.
*Publicado originalmente em Página/12 | Tradução de Victor Farinelli
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