Governo uruguaio aumenta lucros aos de cima e distribui cacetetes aos de baixo

 


Por Nicolás Centurión - Carta Maior

Se há uma coisa que pode ser reconhecida no governo de direita liderado por Luis Lacalle Pou no Uruguai é sua coerência. Nem mesmo a pandemia conseguiu parar – muito menos compensar – seu principal projeto de ajuste econômico, conhecido como LUC (Lei de Urgente Consideração). Nem mesmo a queda nas pesquisas sobre a avaliação do presidente, de 65% para 50%, em um declínio que tem se mostrado constante nos últimos meses.

Esta semana, vários acontecimentos revelam o caminho que o governo escolheu e que segue à risca. O objetivo é um só: a transferência de recursos de baixo para cima. Isso significa um fortalecimento da oligarquia uruguaia e o advento do capital estrangeiro para que o Uruguai continue sendo um país sem muitos obstáculos para os empresários que trazem seus negócios, ou para os capitais que vêm especular.

Para que isso aconteça, a classe trabalhadora e o movimento sindical devem estar sonolentos, tímidos e desorganizados. Os quinze anos da primavera progressista da Frente Amplio,com um governo de centro-esquerda, chegou ao seu fim e esse movimento acabou perdendo alguns músculos. A pandemia gerou incerteza. Mas como dita a história e aquele verso da murga “metele que son pies” (traduzindo ao português “vamos meter o pé”). E as organizações sociais estavam à altura da tarefa.

A coleta de 800 mil assinaturas para revogar a LUC, em março deste ano, fez com que o governo recuasse em algumas medidas ordenadas pelo próprio projeto de lei.O presidente interrompeu dois aumentos de tarifas, de combustível e eletricidade, porque viu que era muito negativo para os números das pesquisas. Alguns funcionários do governo até falaram em “suspender” a aplicação da LUC até depois do referendo sobre a mesma.

Nos últimos dias Lacalle Pou tentou aproximar do setor mais de centro-esquerda da Frente Ampla, anunciou uma reforma para o Hospital de Clínicas, que terminaria em 2030 e um novo acordo de livre comércio com a Turquia, e comentou que espera esse diálogo com a oposição, que avança com a presidência do ex-sindicalista Fernando Pereira. O mandatário admitiu que “talvez faltem concordâncias e um pouco de aproximação, principalmente em questões de longo prazo”.

Da mesma forma, as demandas dos trabalhadores continuam a ser sentidas. Cerca de 50 trabalhadores ligados ao SUTCRA (Sindicato Único do Transporte de Cargas e Filiais Correlatas) se sentaram na rua e interromperam a circulação de veículos no acesso norte ao porto de Montevidéu. Eles foram fortemente reprimidos pela polícia, em ação legalizada a partir da aplicação da LUC. “Estas são as novas regras do jogo”, justificou o secretário adjunto da Presidência, Álvaro Delgado.

A mesma coisa aconteceu semanas atrás, quando trabalhadores do setor de transportes interromperam a circulação no terminal de ônibus de Tres Cruces, na capital uruguaia. A polícia dispersou os manifestantes com balas de borracha. Os trabalhadores da empresa Copsa, por exemplo, estão há dois anos sem receber o décimo-terceiro salário, bônus de Natal e outros benefícios a licenças. Ademais, seu salário foi congelado durante o mesmo período, apesar da inflação.

Os salários e as aposentadorias no Uruguai não acompanham a taxa de aumento dos preços e dos impostos. Os aposentados receberam um aumento de insignificantes 250 pesos uruguaios (equivalente a 25 reais). O governo, por um ladotrabalha para encolher o Estado, e por outro ajusta e diminui o investimento, produzindo um déficit de 374 milhões de dólares, e que se arrastra há décadas, especialmente com os recursos entregues de mão beijada à Caixa Militar. Ou seja, há fundos para os repressores, mas não para os trabalhadores.

Enquanto isso, o presidente ainda não aparece nos restaurantes populares, onde as pessoas de setores pobres buscam pratos de comida a preço acessível. Ele passou o Natal com o contingente militar uruguaio no Congo. Obviamente, um evento publicitário para chamar a atenção para o seu eleitorado mais extremista, e ignorando as denúncias sobre os abusos sexuais cometidos por aqueles militares.

Em contraposição à realidade, muitos uruguaios continuam em busca de trabalho e tiveram um final de ano miserável. Um contraste com o agronegócio, que comemora exportações recordes e uma carga tributária que atingiu o mínimo dos últimos cinco anos.

Com essas pinceladas, pode-se concluir que existe dinheiro, tempo e vontade política e soluções dadas pelo governo, mas claro, isso depende de qual setor você pertence. Se você é trabalhador, pobre, estudante, sindicalista, mulher ou professor: a fila é longa. Talvez no dia 27 de março, com o referendo sobre a LUC, as regras do jogo possam ser alteradas.

Até o referendo do dia 27 de março de 2022, muitos serão os acontecimentos diários ligados ao debate público sobre a LUC, que será submetidaa consulta popular. O artigo 468 (impugnado) declara que “serão considerados ilegítimos os protestos que impeçam a livre circulação de pessoas, bens ou serviços, em espaços públicos ou privados de uso público”. O artigo 469 atribui ao Ministério do Interior a faculdade de adotar “as medidas cabíveis para preservar esses espaços”. Ou seja, para reprimir como achar conveniente, e impunemente.

Por outro lado, o artigo 392 (impugnado) diz que “o Estado defende um exercíciodo direito à greve, desde que pacífico, e o direito dos não grevistas de acesso e trabalho nos respectivos estabelecimentos e o direito dos dirigentes das empresas de entrarem no instalações livremente”. Cada artigo traz, no início, um resumo de seu conteúdo, e este diz significativamente “liberdade de trabalho e direito de gestão da empresa”, mas nada diz sobre um verdadeiro direito de greve.

Nicolás Centurión é psicólogo, membro da Rede Internacional de Estudos Sobre a Dívida Pública (RICDP) e analista associado ao Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE)

*Publicado originalmente em estrategia.la | Tradução de Victor Farinelli

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