Coletivizar o mal-estar

Foto de Miguel Bruna/Unsplash.


 Por Joaquín Fortanet - no Esquerda.net

Sentimos o mal-estar de mil modos diferentes, não fazemos o suficiente, não temos tempo, intuimos que nunca seremos os melhores, afundamo-nos, colapsamos, sentimo-nos sujeitos radicalmente vulneráveis, esgotados, doentes, inadequados, como se os contornos das nossas mentes e corpos fossem plásticos, moldáveis por uma realidade inapelável que marca sempre o ritmo acelerado do que é, do que somos, do que deveríamos ser. Até que essa dureza nos rompe e que tudo se torna líquido como se nos tivessem instalado na necessidade imanente de continuar, de nunca parar, de não chegar e, face a esta interpelação, a nossa resposta escapa-se, transbordados face à tarefa impossível. Incapazes já de formular nada que não seja silêncio e detenção.

Owen Jones, no seu livro Chavs, perguntava-se pelo sentido e alcance do que chamava a “diabolização da classe operária”, ou seja, o processo através do qual se começou a desprestigiar a pertença à classe operária até ao ponto desta estar esvaziada de conteúdo na atualidade. Num sentido, a reflexão de Jones tem a ver com o perigo de abandonar a noção de classe e a urgência de revisitá-la tendo em conta as diferenças específicas que a compõem. Mas, ao mesmo tempo, o seu texto contém outra reflexão paralela que tem a ver com o processo concreto através do qual o neoliberalismo, que se desenvolveu a partir da época Thatcher, estabeleceu as condições de possibilidade do desaparecimento da noção de classe operária. E grande parte destas estratégias tiveram que ver, segundo Jones, com o trabalho realizado sobre a auto-perceção do indivíduo e os seus processos subjetivos de identificação. Estabeleceu-se a ideia que a pobreza, o desemprego, em definitivo, o fracasso do sonho do empreendedor era devido a defeitos individuais. Se as pessoas são pobres ou não têm emprego é culpa sua, do seu carácter, da sua falta de aspirações, da sua má gestão: merecem-no.

A responsabilidade individual do fracasso

Para Jones, a chave está na rutura da sintonia entre os processos de identificação e os processo materiais. E na consequência de tudo isso: esvaziada a noção de classe operária, os integrantes desta classe, que passam a identificar-se como classe média, ficam sem os meios de proteção e resposta política que a noção de classe lhes conferia. Brevemente: a classe esvazia-se porque é um contrapeso à responsabilização individual da pobreza. A noção de classe operária impedia que se atribuísse a culpa da pobreza de forma meramente individual, que o desemprego fosse devido ao carácter ou à falta de gestão dos indivíduos. O que pode ser interessante, para além da reflexão acerca do papel da classe no desenvolvimento neoliberal, é que Jones coloca a perda de comunidade como uma das estratégias que conduzem à responsabilização individual do fracasso e à proliferação de discursos de ódio contra esta classe até por parte de quem a integra materialmente. Ninguém quer que se lhe atribua a responsabilidade individual do fracasso. O ódio é o colocar em prática de uma distância cínica face aos perdedores.

Mas, apesar de tudo, perdemos o trabalho, perdemos a saúde, a batalha contra a doença, as competições e as oportunidades. Perdemos sempre. Convertidos em seres eletivos e aspiracionais, a perda passa a ser, por um lado, inassumível – sinal de fracasso individual – e, por outro, consubstancial às nossas vidas. Vivemos presos na contradição entre a aspiração de sermos os melhores indivíduos e as profundas e inexoráveis estruturas materiais que determinam tais posições. A competitividade, a meritocracia ou a excelência são as palavras tortas que batem no coração desse estranho casino em que vivemos e que acaba por nos destroçar porque, por muitas fichas que lancemos ao tabuleiro, estamos sozinhos face à imensidão da banca.

Mudar as mentes

Nos finais dos anos 1970, Stuart Hall desenhou com precisão um horizonte teórico que, de certa forma, ainda é o nosso. Manifestando uma profunda preocupação teórica com a derrocada da esquerda inglesa face ao thatcherismo, reconheceu a capacidade profunda do novo neoliberalismo em determinar o pensamento popular e alcançar uma posição hegemónica. A economia era apenas o método, tratava-se de mudar as mentes, afirmava Thatcher.

Duas estratégias principais do neoliberalismo que Hall determinou tinham a ver com, por um lado, a proliferação do ódio dirigido que se traduz na ideologia conservadora – nação, lei, tradição – e, por outro, com a criação de uma nova subjetividade baseada num individualismo competitivo radical. Se tivéssemos que definir a traços largos esta nova subjetividade que se perfilou na hegemonia cultural neoliberal, estes poderiam ser a conversão do sujeito em empresário de si e a privatização da vida.

A nossa vida é nossa, privada, usamos o tempo, empregamo-lo, trabalhamo-lo, até ao ponto em que nada da nossa vida seja alheio ao império do útil. Moldamos, sem ser de forma demasiado consciente, os nossos atos, escolhas, os nossos caminhos, gestos e relações sociais como se fossem investimentos do empresário de si que somos. Gastos numa constante campanha de auto-promoção, a relação com os outros é essencialmente competitiva, como se o reconhecimento passasse por impor com êxito a nossa marca, como se agora apenas fossemos uma marca que deve ocultar a sua fragilidade, que deve evitar as mil formas do fracasso com uma cosmética perfeita.

Mas o profundo mal-estar que se enraíza no seio da nossa marca e que nos surge como uma ameaça é também, ao mesmo tempo, o elemento mais adequado que se levanta contra essa vida, tentando interrompê-la, forçando-nos a parar. A rebelião da vida contra a nossa vida.

No livro Os fantasmas da minha vida, Mark Fisher apresentava-nos algumas reflexões sobre esse mal-estar liminar que parece ter-se convertido num dos fantasmas que nos assombram. Centra-se no facto de se entender o mal-estar em termos de interioridade. Umas das bem sucedidas estratégias da subjetividade neoliberal é precisamente ter imposto uma compreensão privada do mal-estar. Como se o stress fosse apenas um afeto psicológico que não tem a raiz da sua compreensão nas condições laborais e sociais que nos rodeiam. A privatização do stress, a privatização da doença, do mal-estar em geral, são, para Fisher, o sinal da despolitização dos nossos tempos. O indivíduos culpam-se a si próprios mais do que às estruturas sociais. E foram induzidos a crer que tais estruturas não têm nenhum papel numa vida que é apenas uma questão de atitude, de luta, de esforço de competência sã. Assim, o mal-estar torna-se individual e deve tratar-se unicamente numa perspetiva interna – psicológica, farmacológica, mindfulness. No limite, é considerado como uma responsabilidade do indivíduo, que fica investido como culpado, ignorando as condições materiais do seu enraizamento.

Vulneráveis

Mas, como Judith Butler nos relembra em Repensar a vulnerabilidade e a resistência, a vulnerabilidade que nos assedia, que poderíamos relacionar com esse mal-estar difuso, não é constitutiva do ser humano. Não pertence à nossa natureza nem é uma questão antropológica de primeira ordem. A vulnerabilidade apenas surge no contexto de uma relação desigual de forças. A vulnerabilidade, como o mal-estar, é a consequência de relações de poder face às quais estamos numa posição subalterna – face à polícia, face ao sistema judicial, face à medicina, face aos professores. É, de certa forma, a marca que prefigura uma posição de resistência face a esta vida que arrastamos. O grande problema do mal-estar é que não podemos entendê-lo do ponto de vista coletivo da relação de forças porque, precisamente, a quebra do seu gradiente coletivo é a causa dele se nos apresentar como algo apenas nosso. E, por isso, converte-se num abismo intransponível para o qual apenas nos oferecem soluções comportamentais. Contudo, através da análise material do mal-estar, talvez seja possível encontrar outras causas, abrir o caminho para a sua coletivização, dar o passo para poder compartilhá-lo, entendê-lo como uma possível rede contra-comportamental.

Coletivizar o mal-estar não quererá dizer apenas encontrar as condições materiais do seu enraizamento. Coletivizar o mal-estar significará compreender que o fracasso nunca é meramente individual, mas coletivo. Ter uma coletividade que assume o peso de um mal-estar específico significará partilhar desconforto, dor, cuidados, diferenças, soluções, ansiedades.

Coletivizar o mal-estar implicará politizá-lo, e politizar o mal-estar implicará também exercer a crítica contra a autoridade de todas essas verdades e relações de poder que nos forjaram, pedindo-lhes credenciais. Interromper coletivamente alguns dos mecanismos que o propiciam. E também por desativar algumas dessas inércias do ódio que não eram nada mais do que a distância cínica que a nossa visão da marca procurava impor face ao fracasso.


Joaquín Fortanet é professor de Filosofia de Universidade de Saragoça.

Texto publicado originalmente no El Salto(link is external)Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.

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