Thierry Meyssan: A Rússia prepara o levantar da cortina
Rede Voltaire | Paris (França) | 27 de Outubro de 2021
« Porquê uma Ialta 2 ? », 15 de Junho de 2021.
« Biden-Putin, mais uma Ialta 2 do que uma nova Berlim », 22 de Junho de 2021.
« A arquitetura política do novo Médio-Oriente », 9 de Setembro de 2021.
« Rumo à paz na Síria e no Líbano », 28 de Setembro de 2021.
A aplicação das conclusões da Cimeira (Cúpula-br) EUA-Rússia de Genebra (dita « Ialta II »), de 16 de Junho de 2021, continua. Parece que as concessões de Washington a Moscovo (Moscou-br) parecem ser muito mais importantes do que se pensava. O Presidente Vladimir Putin prossegue a colocação em ordem do mundo não apenas no Médio-Oriente Alargado, mas também em África e na Ásia. Em quatro meses mudanças substanciais são já observáveis. Segundo a tradição russa, nada é anunciado, mas tudo será revelado em bloco quando as coisas se tornarem irreversíveis.
Os Anglo-Saxões aceitaram a derrota
No início de Setembro de 2021, os Estados Unidos deram a perceber que autorizavam o Hezbolla a violar as leis dos EUA de embargo à Síria e ao Irão e a aceitar combustível iraniano, via Síria. A seguir, a Jordânia reabriu a sua fronteira com a Síria. Por fim, a imprensa anglo-saxónica iniciou uma série de artigos visando ilibar o Presidente Bashar al-Assad dos crimes de que o acusavam e a reabilitá-lo. Tudo começou com um artigo do The Observer, depois a edição dominical do The Guardian titulando « O pária Assad a ser vendido ao Ocidente como a chave da paz no Próximo-Oriente » [1].
Passando de umas para outras, a Newsweek fez capa inteira do Presidente sírio colocando em “gordas” : « Ele está de volta », seguido pela legenda: « Num triunfo sobre os Estados Unidos, o líder sírio Bashar al-Assad reclama um lugar na cena mundial » [2]. A versão digital do semanário vai ao fundo da questão com a legenda de uma fotografia falando do « suposto » ataque químico na Ghutta, ocasião em que os Presidentes Norte-Americanos e Francês, Barack Obama e François Hollande, haviam nominalmente acusado o « regime criminoso » de ter cruzado « a linha vermelha ». Adeus, portanto, à retórica do « Bashar deve partir! »
A derrota militar que o Presidente Joe Biden admitira em Genebra, em Junho, é agora assimilada pela imprensa anglo-saxónica. Ao restante Ocidente só lhe resta seguir isso.
A retoma da Síria na cena internacional está em curso : a Interpol tomou medidas correctivas para pôr fim à sua marginalização, o Rei Abdallah II da Jordânia e o Xeque Mohamed bin Zayed dos Emirados Árabes Unidos declararam que haviam falado com o Presidente Assad. O Alto Comissário da ONU para Refugiados, Filippo Grandi, viajou discretamente para Damasco para debater, finalmente, o regresso dos expatriados. Ora, os Ocidentais opuseram-se a isto durante uma década e pagavam generosamente aos países que os abrigavam para, acima de tudo, não os deixar voltar a casa.
A Turquia vítima do seu duplo jogo
O Presidente turco, Recep Tayyip Erdoğan, apresentou ao Parlamento a recondução da missão do Exército no combate aos terroristas curdos do PKK no Iraque e na Síria ; dois países onde mantêm ocupações ilegalmente.
Ele faz um jogo duplo : membro da OTAN, negoceia armas com Washington (80 aviões de combate F-16 e 60 kits de modernização para a sua frota), enquanto negoceia outras com Moscovo, à qual comprou já S-400s ; um jogo arriscado que está a chegar ao seu fim. Washington e Moscovo trazem armas para a Síria e poderão ter-se unido para remeter Ancara ao seu lugar, tal como o fizeram, em 1956, com Londres, Telavive e Paris aquando da Expedição do Suez. Contrariamente às aparências, a Rússia sabe que não conseguirá separar a Turquia dos Estados Unidos. Ela bate-se contra o Exército turco na Líbia e na Síria, lembra-se do envolvimento pessoal do Presidente Erdoğan na Chechénia e, mais em geral da oposição entre a Rússia e os Otomanos.
O Exército sírio encerrou vitoriosamente a batalha de Daraa (Sul da Síria), permitindo à Jordânia reabrir a sua fronteira comum. Aí, os jiadistas preferiram depor as armas do que se refugiar em Idleb sob protecção do Exército turco. Agora, as tropas sírias concentram-se diante da ocupada província de Idleb (Norte do país), prontas a libertar o seu território.
A imprensa ocidental não deu noticias sobre esta terrível batalha, sendo subentendido que Daraa não teria podido ser libertada sem a discreta retirada de Israel e dos Estados Unidos. A população, que tanto sofreu, parece, de momento, odiar tanto os seus compatriotas como os aliados de ontem que a abandonaram.
A Turquia vira progressivamente todos os seus parceiros contra si. Concorre com os Estados Unidos e a França em África. O seu Exército bate-se na Líbia. Ela dispõe de uma base militar na Somália, acolhe no seu território militares malianos para treino, vende armamento à Etiópia e ao Burkina Faso e assinou um acordo de cooperação com o Níger (isto sem falar da sua base militar no Catar e do seu envolvimento no Azerbaijão).
O caso Osman Kavala, do nome do empresário de negócios de esquerda que se tornou o homem de George Soros na Turquia, preso em 2017, não augura nada bom. Uma dezena de Estados —incluindo Estados Unidos, a França e a Alemanha— fez circular nas redes sociais uma carta exigindo a libertação imediata do réu, acusado de estar envolvido na tentativa de golpe militar de 15 de Julho de 2016. Em 22 de Outubro, o Presidente Erdoğan reagiu, atacando os embaixadores envolvidos, com a sua habitual arrogância: « Acham que podem dar lições à Turquia? Por quem se tomam ? »
A posição pessoal do Presidente Erdoğan parece cada vez mais delicada. Um vento de rebelião sopra no seu próprio Partido político. Ele poderá vir a ser culpado pelos seus se as coisas correrem mal para o país em Idleb.
O Líbano entre o amanhã radioso e a guerra civil
O Presidente Joe Biden parece decidido a deixar o Líbano à Rússia e a explorar as reservas de gás e de petróleo situadas entre o Líbano e Israel. Ele enviou o seu conselheiro de longa data, o Israelo-Americano Amos Hochstein, para fazer o vai-e-vêm entre Beirute e Telavive. A sua presença atesta a extrema importância do assunto. Este oficial do Tsahal (FDI) foi conselheiro de Joe Biden quando ele era Vice-Presidente dos Estados Unidos. À época, em 2015, já tinha lidado com este processo e quase tinha chegado a um acordo. Pode ter êxito, já que, embora sendo um empresário amoral, conhece tão bem o dossier político como as dificuldades técnicas da exploração de hidrocarbonetos. Ele pressiona para a exploração das reservas mesmo sem resolver a espinhosa questão das fronteiras marítimas. Os dois países poderão operar em conjunto e dividir os lucros mediante acordo prévio.
No Líbano, os líderes dos grupos confessionais tentam todas as manobras possíveis para conservar o seu poder em declínio, mesmo que isso signifique destruir o futuro do país.
O Parlamento aprovou já durante a noite duas emendas à lei eleitoral. A primeira visa antecipar a data da eleição legislativa, prevista inicialmente para 8 de Maio, a ser realizada em 27 de Março. Os muçulmanos exigiam poder realizar capazmente a sua campanha já que ela coincidia com o mês da festa do Ramadão. Mas a nova data aparecia como um meio de impedir o General Abbas Ibrahim, Chefe da contra-espionagem, de poder ser eleito e de suceder ao Presidente do Parlamento, Nabbi Berry. A Constituição exige, com efeito, que os altos funcionários para poder entrar na política deixem as suas funções seis meses antes.
O Presidente Emmanuel Macron tinha previsto enviar tropas francesas para « proteger » as secções de voto. Ora, em 8 de Maio, provavelmente ele já não será o Presidente da República Francesa e nada garante que o seu sucessor aprovará a sua decisão. Pelo contrário, em 27 de Março ele estará ainda aos comandos.
A segunda emenda modifica a maneira como os expatriados poderão votar. Eles não elegerão deputados do estrangeiro, antes votarão em deputados da sua circunscrição eleitoral. Alguns esperam assim modificar substancialmente os resultados. Resumindo, tudo isto é pouco importante na medida em que o sistema eleitoral fixa previamente o número de deputados por grupo confessional sem relação com a realidade demográfica; um belo exemplo de eleição sem democracia.
O outro grande debate, é a investigação sobre a explosão do porto de Beirute, em 4 de Agosto de 2020. O Juiz Tarek Bitar choca com uma série de imunidades, a começar pela do antigo Primeiro-Ministro Hassan Diab, que no término das suas funções fugiu para o Estados Unidos e é alvo de um mandado de detenção. O Hezbolla, que suportou o peso da investigação sobre o assassinato de Rafiq Hariri, não pretende que a investigação siga esse exemplo, mas esbarra no sigilo da investigação. Por fim, ele exigiu, com veemência, a renúncia do juiz e organizou uma manifestação nesse sentido. Mas ao chegar em frente a um bairro cristão, o desfile foi atacado por membros das Forças Libanesas de Samir Geagea. Eles mataram sete xiitas e feriram uma trintena de outros. O espectro da guerra civil reacende-se. Não se sabe se as Forças Libanesas agiram por conta própria ou, de forma premeditada, por instigação da Arábia Saudita, da qual o cristão Samir Geagea se tornou o campeão.
A lenta reaproximação dos irmãos inimigos, Israel e o Irão
Moscovo aborda a questão do conflito israelo-iraniano como um todo. Os dois Estados mantêm um discurso ultra-beligerante um contra o outro, mas a sua prática é completamente diferente. Eles agem, na realidade, juntos contra certas tendências políticas domésticas. A queda de Benjamin Netanyahu (discípulo do pensador colonialista Vladimir Jabotinsky) abre a via à reconciliação.
Enquanto os Estados Unidos decretaram sanções contra Teerão para a forçar a abandonar o seu programa nuclear militar, a Rússia nunca acreditou que depois de 1988 este tenha prosseguido. Durante as negociações dos 5 + 1, de 2013-15, que resultaram no Acordo de Viena sobre a energia nuclear iraniana, Moscovo não exigia o fim do programa nuclear, mas a possibilidade de garantir que ele não se tornasse militar. Esta continua a ser a sua posição. As discussões actuais concentram-se em detalhes técnicos, tais como a instalação de câmaras de controle (monitoramento-br) nas centrais (usinas-br) iranianas.
A lentidão com que Teerão trata este problema joga contra si. Certo, o governo Raïssi negoceia entretanto com a Arábia Saudita, o que demora a normalização das suas relações com Israel. O Presidente Ebrahim Raïssi espera conseguir uma divisão de papéis com Riade e anunciá-lo no momento em que cederá no concernente à vigilância nuclear, mas os Sauditas impacientam-se e podem também causar estragos como se viu com o ataque contra os manifestantes do Hezbolla em Beirute.
Os Israelitas (Israelenses-br), esses, sublinham que Teerão não se apoia apenas nas comunidades xiitas estrangeiras, tal como afirma, mas, sim em todas as forças anti-israelitas, quer sejam xiitas ou não. Veja-se, o Irão fornece armas ao Hamas sunita. O que é uma aliança tanto mais perigosa quanto o Hamas é o ramo palestiniano da Confraria dos Irmãos Muçulmanos, apoiado pela Turquia e pelo Catar, e não pela Arábia Saudita. Na comunidade muçulmana, já não há, portanto, mais dois campos (xiitas/sunitas), mas três (Irão/Arábia Saudita/Turquia e Catar).
Moscovo avança pacientemente com Telavive. Trata-se de levar Israel a restituir à Síria os Golã ocupados, dando-lhe garantias sobre a não-agressividade do Irão e a sua retirada da Síria.
O Mali teme a França e aspira à protecção da Rússia
A derrota ocidental na Síria tem consequências imprevistas em África. Todos perceberam bem que a Ordem do Mundo deu uma volta e que vale mais ser aliado de Moscovo que dos Ocidentais. Se alguns Estados africanos buscam apenas diversificar os seus apoios militares dirigindo-se à Turquia, a República Centro-Africana e o Mali foram os primeiros a pôr em questão a ajuda ocidental.
Desde 2018, a Rússia apoia o governo Centro-Africano na resolução dos conflitos tribais mantidos pela França que mergulharam o país na guerra civil. Mas Moscovo recusou enviar as suas tropas enquanto a situação permanecesse instável e preferiu enviar uma empresa militar privada, o Grupo Wagner de Yevgeny Prigojine. Em 2019, o governo assinou um acordo de paz com os 14 principais grupos armados do país. O país estabilizou, mas o governo não controla senão ainda uma pequena parte.
O Mali é uma vítima directa do derrube da Jamahiriya Árabe Líbia em 2011. Muamar Kadhafi trabalhava pela reconciliação de árabes e negros, o seu assassínio despertou séculos de guerra, restabelecendo por um lado a escravidão no seu país e, por outro lado, o desejo de dominação árabe sobre as populações negras no Mali. É esse conflito que se exprime através da investida jiadista árabe no Norte do país. De momento, as forças francesas da Operação Barkhane estão tentando impedir a reconstituição de um Emirado islâmico no Sahel. Na prática, isso significa impedir a conquista de uma zona à população negra sedentária por jiadistas árabes nómadas, mas não em lutar contra as suas organizações.
Em 8 de Outubro, o Primeiro-Ministro maliano, Choguel Kokalla Maïga, furou o abcesso, declarando à RIA Novosti que a própria França estava a formar jiadistas no seu campo de Kidal, no qual havia interditado a entrada de forças malianas [3]. A entrevista foi largamente difundida pelas televisões russas, mas não chegou às ondas francesas. No máximo, o Le Monde publicou uma actualização de Choguel Kokalla Maïga, mas na qual ele desmente apenas as suas negociações com o Grupo Wagner enquanto confirma que fala com Moscovo… do Grupo Wagner.
A acusação de instrumentalização de jiadistas é muito plausível: no início da sua intervenção, a França havia atrasado os seus militares para dar tempo ao enquadramento catariano dos jiadistas em retirar. Outros jiadistas, na Síria desta vez, organizaram manifestações para denunciar o jogo duplo francês que os apoiava no Médio-Oriente mas declarava combatê-los em África. Quando o Ministro russo dos Negócios Estrangeiros (Relações Exteriores-br), Serguei Lavrov, se mostrou espantado junto do seu homólogo francês, à época, Laurent Fabius, este respondera-lhe rindo que isso era a realpolitik.
A Junta do Coronel Assimi Goïta (discípulo do revolucionário terceiro-mundista Thomas Sankara) está em negociações com a Rússia para se defender dos jiadistas enquadrados pela França. Moscovo deverá proceder como na República Centro-Africana e enviar um milhar de homens do Grupo Wagner para restabelecer a paz civil. O pagamento da empresa militar privada russa deverá ser feito pela Argélia.
O equilíbrio de forças está posto em questão
Uma após a outra, a China [4] e a Coreia do Norte terão lançado mísseis hipersónicos. A China nega, mas a Coreia do Norte proclama-o alto e bom som. Especialistas dos EUA, deputados dos EUA e Generais dos EUA estão apavorados porque o seu país não consegue dominar esta tecnologia que os torna vulneráveis. Este tipo de mísseis baseia-se numa tecnologia soviética. O Presidente Vladimir Putin anunciara à Assembleia Federal, em 2019, que a Rússia estava a ponto de conseguir equipar estes mísseis com cargas atómicas, capazes de atingir qualquer parte da Terra sem serem interceptados [5]. Visto que parece impossível que a China, e mais ainda a Coreia do Norte, tenham subitamente alcançado esse nível técnico, os peritos são unânimes em considerar que a Rússia lhes terá dado uma versão da sua própria arma.
Esta transferência de tecnologia terá tido lugar antes do anúncio da Aliança Austrália/Reino Unido/EUA (AUKUS). O que reduz a nada os esforços de Washington face a Pequim e Pyongyang. Os Ocidentais não apenas sofreram uma terrível derrota na Síria, que os obriga a aceitar uma Nova Ordem Mundial, o seu « escudo anti-mísseis » é superável e os seus exércitos estão agora totalmente ultrapassados.
TraduçãoAlva
[1] «Assad the outcast being sold to the west as key to peace in Middle East», Martin Chulot, The Observer, September 26, 2021.
[2] «Bachar is Back», Tom O’Connor, Newsweek, Octobrer 22, 2021.
[3] « Премьер Мали обвинил Францию в подготовке террористов », РИА Новости, 8 октября 2021.
[4] « China’s leap in hypersonic missile technology shakes US intellligence », Demetri Sevastopoulo & Kathlin Hille, Financial Times, October 18, 2021.
[5] “Excerto do Vladimir Putin Discurso na Assembleia Federal Russa”, Vladimir Putin, Tradução Maria Luísa de Vasconcellos, Rede Voltaire, 20 de Fevereiro de 2019.
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