''Gabriel Boric é o Chile numa frente muito ampla pela democracia e o desenvolvimento'', afirma escritor
Créditos da foto: Oposicionista e candidato do Aprovo a Dignidade,
Gabriel Boric lidera todas as pesquisas de intenção de voto à
presidência do Chile (AFP 2021/CNN)
Por Leonardo Wexell Severo - Carta Maior
“Gabriel Boric tem clara a necessidade de um grande bloco social e
político pelas mudanças, profundamente democrático, capaz de compreender
os desafios da ciência, da cultura, da educação e da integração
latino-americana”, afirmou o escritor e ensaísta Patrício Rivas. Autor
do livro Chile, um longo setembro, o histórico dirigente
do Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR), que combateu heroicamente
a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990), defende a coalizão contra o
retrocesso. Para o escritor, favorito às eleições presidenciais
chilenas pelo movimento Aprovo a Dignidade, Gabriel Boric rompe com a
lógica “herdeira do pinochetismo”. Rivas ressaltou que “as pessoas estão
fartas do neoliberalismo” e de todo o mal causado. “O Estado deve
passar a cumprir um papel central como motor do desenvolvimento”,
defendeu, frisando que “isso se dará, fundamentalmente, com uma política
de tributação das grandes empresas nacionais e estrangeiras e a efetiva
nacionalização de setores estratégicos como o lítio e o cobre”.
***
Patrício Rivas
Qual
a relação entre as mobilizações sociais e a conjuntura política atual,
de Convenção Constituinte, e das próximas eleições presidenciais e
parlamentares?
As grandes mobilizações sociais mudaram o
ciclo histórico e político do Chile. Esta é uma questão que precisa ser
levada em conta e a sério porque muitas vezes não se tiram as devidas
conclusões. Acredito que elas mudaram em quatro aspectos chaves a
sociedade chilena.
Em primeiro lugar, se retomou a velha tradição
chilena de capacidade de mobilização e luta nas ruas, que tem traços
cidadãos, culturais e políticos. As pessoas voltaram às ruas depois de
quase três décadas de um inverno colossal.
O segundo traço é que o
modelo político e econômico neoliberal chileno não foi capaz nem de
conter nem dar uma solução aos problemas, e somente os agravou. Há uma
perda de confiança nas instituições políticas herdeiras do pinochetismo.
Em
terceiro lugar, os partidos políticos de direita e inclusive os de
centro não compreenderam o que estava se passando, e eu diria que nem a
esquerda histórica chilena entendeu a situação. Quem compreendeu, antes
dos demais, foi a esquerda social deste novo ciclo, o movimento
estudantil e comunitário, gente que das mais diferentes maneiras havia
resistido coletivamente ao confronto com o neoliberalismo.
Em
quarto e último, o fato de que as pessoas se cansaram, ninguém aguentava
mais. E me parece que esse conceito de cansaço é extremamente
importante na política chilena atual: as pessoas não querem mais
continuar vivendo da forma em que viviam, inclusive a classe média.
E
aí explode o escândalo dos Pandora Papers e de todos os milhões de
dólares do presidente Sebástian Piñera depositados em paraísos
fiscais...
O tema dos Pandora Papers é um elemento a mais
na consciência cidadã e nas instituições políticas clássicas. Não é uma
grande surpresa, porque, lamentavelmente, o presidente Piñera tem
outros negócios e nunca foi muito claro a respeito dessa relação. O fato
é que isso tudo vai além. Esta investigação é a confirmação definitiva
do esgotamento do regime político chileno atual. Não dá mais, está
esgotado.
Os neoliberais sempre propagandearam o Chile como
um exemplo a ser seguido, que o caminho era a privatização, a
desnacionalização, a retirada de direitos, o modelo preconizado pelo
Consenso de Washington. Na prática, quais foram as consequências?
Acredito
que os neoliberais têm razão de colocar o Chile como exemplo em termos
do seu modelo, de sua visão de mundo. Mas se equivocaram porque acharam
que não iria haver reação, não avaliaram, não viram que a sociedade
estava acumulando e reagrupando forças. Por isso ficaram perplexos
diante das mobilizações de 2019.
Outro ponto é que o modelo
chileno funcionava enquanto a economia mundial e, também
latino-americana, funcionava. Vale lembrar que na década de 2000 a
América Latina viveu um tipo de pequena primavera, de crescimento, e
inclusive em alguns países houve uma considerável diminuição da pobreza.
Porém, esse não era um avanço estrutural.
O neoliberalismo diz
que jorra recursos abundantemente e os redistribui a todos, mas na
verdade ele pinga por conta-gotas para muitos, só é mesmo abundante para
bem poucos. É totalmente enganoso que todos vão receber algo.
Além
disso, modelos neoliberais como o chileno e latino-americano são de
dependência econômica e funcionam de uma forma bem clássica: quando a
economia mundial está em expansão exportam matérias-primas. E para que o
modelo siga funcionando seria preciso comprimir ainda mais o salário
dos trabalhadores. Isso só seria possível com uma terrível repressão,
uma reação da ultradireita que hoje em dia no Chile não é mais possível.
Então a derrubada do exemplo chileno tem a ver com o debilitamento do
neoliberalismo mundial.
Qual o papel do Estado, do investimento público, nesta mudança de modelo dominado por cartéis transnacionais?
Acredito
ser esta uma tarefa crucial, mas que não é fácil. Penso que as forças
sociais e políticas que vêm recuperando a esquerda – tanto a nova como a
esquerda histórica – podem iniciar um processo que não será concluído
em um único período presidencial. Quatro anos não bastam para mudar a
realidade chilena. Necessitaremos, portanto, um grande acordo, na
linguagem mais clássica um grande bloco histórico pelas mudanças, que
desse continuidade a estes anos. Porque há muitas coisas que são de
lenta redefinição.
Os desafios de um governo de esquerda agora no
Chile são ter uma ampla maioria para aprovar e aplicar os temas chaves,
que são as leis trabalhistas; a passagem a uma segunda fase exportadora
com maior valor agregado, a partir da industrialização; a
descentralização do Estado, com o investimento na regionalização
[atualmente todo o poder está extremamente concentrado em Santiago]; e
uma melhor inserção do país na economia mundial. Mas para isso
necessitamos um amplo acordo. Aí vem o paradoxo, porque na política não
há nada que venha de graça. E o paradoxo é que teremos de fazer uma
grande aliança em direção ao centro e isso pode nos debilitar pela
esquerda. Agora se fazemos alianças somente pela esquerda, nos
debilitamos pelo centro.
Há a necessidade de uma ampla frente.
Sim,
uma frente muito ampla de forças. Pelo que escutei de Boric, em suas
intervenções e escritos, ele tem claro esta necessidade. A questão não é
fácil. Não é pelo fato de eu querer isso que seja conseguido, mas é
este o desafio: um grande bloco social e político pelas mudanças,
profundamente democrático, capaz de entender o mundo atual, capaz de
compreender os desafios da ciência, da cultura, da educação, da
integração latino-americana – que é chave.
Ao mesmo tempo, é
preciso entender que, para jogar neste campo mundial, um país como o
Chile necessita exercer um papel de liderança, ser protagonista no Cone
Sul. Não pode depender nas relações internacionais apenas do comércio e
dos negócios, tem que fazer propostas políticas de integração. Todos
esses fatores dialogam com outros elementos que precisamos levar em
consideração: são dois tipos de opções políticas muito distintas que
estão se confrontando no Peru; como evolui a situação da Argentina e o
que vai ocorrer no Brasil. Porque este elenco do Cone Sul pode ser que
tenha se distanciado, mas sempre está se olhando como referência e como
reflexão.
Aqui é necessário ter uma integração mais pragmática
que a da Unasul (União de Nações Sul-Americanas), mas é preciso que
exista uma política de integração. Não somente por fatores que são
evidentes, como o de comércio e de intercâmbio, a livre circulação das
pessoas - isto é século 21. É também preciso ver como encarar os
negócios no novo quadro político mundial, em que a disputa entre os
Estados Unidos e a China vai ser cada vez mais forte. Como a América
Latina vai baixar suas cartas e jogar sua força em um contexto mundial
muito mais complexo.
Acredito que este é um tema central, que nos
obriga a uma análise bem pormenorizada. Aqui o Estado tem que jogar um
papel fundamental no desenvolvimento deste novo modelo chileno, a
democracia tem que ser o território. A educação é chave, pois mesmo que
haja avanços, temos déficits que precisam ser sanados na questão da
ciência e tecnologia. Não podemos continuar vendendo commodities ao
mundo. Muitos governantes dizem isso, mas fazem pouco. E a questão da
cultura, porque se não conseguimos chegar da política até a cultura, as
mudanças, as aberturas de mentalidade ficam extremamente frágeis.
E como garantir os recursos para viabilizar mudanças tão profundas?
Acredito
que há três passos que são fundamentais e que se complementam: o Estado
deve melhorar as políticas de impostos, a tributação. Esta é uma
questão importante porque há empresas nacionais e estrangeiras que pagam
poucos impostos. Podemos aumentar consideravelmente os recursos do
Estado somente melhorando a tributação, fazendo com que paguem os
devidos impostos.
A segunda questão é que recursos estratégicos
como o lítio, que o nosso país tem em abundância, devem ser parte de
empresas estatais, ou da Corporação Nacional de Cobre do Chile (Codelco)
ou de um novo projeto de recursos naturais chilenos. Isso é preciso
iniciar, porque a questão do lítio é urgente. Da mesma forma que o
cobre, obviamente.
A terceira medida é melhorar a saúde pública. E
aqui é preciso prestar muita atenção, porque com toda a precariedade da
saúde pública na América Latina, pois sabemos que funciona mal, se não
contássemos com seus serviços a pandemia de Covid teria sido ainda mais
terrível. O coronavírus nos demonstrou que sem Estado a quantidade de
mortos e a intensidade do sofrimento social teria sido muito maior.
Por
isso temos que fortalecer a saúde, a educação, a ciência, a cultura e a
construção de moradias populares, que com o aumento da migração
tornou-se uma questão emergencial.
E o papel da industrialização dentro do novo projeto?.
De
posse dos recursos da tributação e das nacionalizações, precisamos
melhorar e fortalecer o processo de industrialização da economia
chilena. O Estado precisa ter uma centralidade que o faça motor da
economia, da integração e do desenvolvimento das áreas chaves para o
atendimento à população e para as quais precisamos de mais recursos.
É
preciso maior eficácia. Há também um problema estrutural na economia
latino-americana, a baixa produtividade. Ela tem a ver com a falta de
incorporação de tecnologias avançadas, que podemos solucionar por meio
de créditos estatais às pequenas e médias empresas. Da mesma forma, é
preciso investir no aperfeiçoamento, por meio da especialização dos
trabalhadores. Porque não há como aumentar a produtividade sem aumentar o
desgaste do capital humano, por isso este é um tema essencial. As
pessoas acabam trabalhando muito e produzindo pouco, porque as
tecnologias são antiquadas e os modelos organizativos são bestiais, são
super exploradores. Daí a relevância do momento que estamos vivendo e do
novo modelo que vamos construir.
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