Os crimes contra o jornalismo na Europa

Por Celso Japiassu - na Carta Maior 


:: Leia mais: Especial 'O novo velho continente e suas contradições' ::

Nos últimos cinco anos, 22 jornais pelo mundo foram fechados devido à pressão de governos em represália a matérias publicadas contra seus interesses. Muitos conseguiram sobreviver precariamente em edições online depois de terem colaboradores presos, sofrerem censura direta, perseguições fiscais e muitos processos judiciais que os inviabilizaram. Fica às vezes no público a impressão de que o fechamento foi devido a má administração ou desinteresse dos leitores quando na verdade foram sufocados e, podemos dizer, assassinados.



***

A liberdade de imprensa é um dos mais importantes valores das democracias. Porém nada irrita mais os que estão no poder ou os que se julgam poderosos do que uma notícia que vai contra os seus interesses. Esta é a razão da pressão e do boicote de governos e dos políticos e também do crime organizado sobre a mídia e os jornalistas. Os telefonemas e visitas ameaçadores podem se transformar e muitas vezes se transformam em assassinato. Tem sido assim em todo o mundo. No ano passado foram mortos 50 jornalistas em diferentes países. O México, com dez crimes de morte, lidera a horrível estatística. Quatrocentos jornalistas foram presos em 2020 e levados às mais diferentes masmorras do mundo. Na Europa, onde haveria maior liberdade de imprensa quando comparada com outras regiões, segundo a ONG Repórteres Sem Fronteira, os jornalistas também não escapam de atentados, chantagens, ameaças e mesmo de serem mortos.

Dez jornalistas assassinados num único ano, em 2017, fizeram tocar o alarme na União Europeia. Na Bulgária, Victoria Marinova foi violada antes de ser morta. Daphne Caruana Galizia, que investigava lavagem de dinheiro por membros do governo em Malta, foi morta por uma bomba que explodiu dentro de seu carro enquanto ela dirigia. E na Eslováquia Ján Kuciak e sua noiva Martina Kusnírová foram assassinados a tiros na casa em que viviam. Ele investigava a corrupção de empresários e políticos. São apenas três dos casos ocorridos naquele ano.

O número de mulheres jornalistas assassinadas também tem aumentado além de sofrerem assédio, ameaças e agressões sexuais

Cinco balas

Faz duas semanas, em pleno centro da civilizada cidade de Amsterdam, na Holanda, o jornalista investigativo Peter De Fries foi morto com cinco tiros, um deles na cabeça. Peter escrevia sobre corrupção e narcotráfico. O caso chocou a Holanda e o mundo do jornalismo na Europa por ter acontecido num país sem grandes conflitos sociais e com imprensa livre. Mostrou também o risco crescente a que se expõem os jornalistas quando tratam de casos que envolvem corrupção e narcotráfico.

Peter De Fries (Marcel Van Hoorn/EPA)

"Os vínculos entre traficantes de drogas e políticos permanecem, e jornalistas que se atrevem a cobrir essas e outras questões relacionadas continuam sendo alvos de assassinatos bárbaros", disse Repórteres sem Fronteira.

O juiz e promotor italiano Nicola Grattieri chamou a atenção para o fato de que, segundo ele, não só a Holanda como também a Alemanha, a Bélgica e a França tratam com descaso a influência do crime organizado e sua capacidade de desestabilizar a sociedade.

A União Europeia se disse alarmada com a incidência desses crimes e a vice-presidente da Comissão Europeia responsável pela agenda de valores e transparência, Vera Jourová, disse que planeja medidas para fortalecer a liberdade de imprensa, tornar as redes sociais mais responsáveis e proteger o processo democrático.

A ONU instituiu o 3 de maio como Dia Mundial da Liberdade de Imprensa e enfatizou que nenhuma democracia está completa sem o acesso a informações transparentes e de confiança. Acrescentou que esta é a base que permite construir instituições justas e imparciais, ao responsabilizar os líderes e ao afirmar a verdade a quem está no poder.

“Os fatos, e não as mentiras, devem guiar as pessoas quando escolhem os seus representantes. No entanto, embora a tecnologia tenha transformado a forma como recebemos e partilhamos informações, às vezes também é usada para enganar a opinião pública ou para alimentar a violência e o ódio”, disse o secretário-geral Antônio Guterres e acrescentou “Os fatos, e não as mentiras, devem guiar as pessoas quando escolhem os seus representantes. No entanto, embora a tecnologia tenha transformado a forma como recebemos e partilhamos informações, às vezes também é usada para enganar a opinião pública ou para alimentar a violência e o ódio.”

Os governos

Os jornalistas sofrem também pressão, ameaça e chantagem dos governos. A Hungria vive desde o ano passado em estado de emergência e a legislação pune a divulgação de notícias falsas. O primeiro-ministro Viktor Orbán, de extrema direita, tem usado essa disposição legal contra o que é publicado com críticas desfavoráveis a ele próprio ou a seu governo. A Polônia e a Eslovênia, que se situam na órbita de influência da Hungria, seguem o exemplo. Na semana passada, tratei aqui nesta coluna da perseguição aos jornalistas na Eslovênia, cujo primeiro-ministro, Janez Jansa, preside atualmente a União Europeia por conta do rodízio previsto na constituição da UE. Substitui o democrático primeiro-ministro de Portugal, Antônio Costa, que foi o presidente nos últimos seis meses.

Julian Assange (Henry Nicholls/Reuters)

No Reino Unido, em cumplicidade com os Estados Unidos, o caso Julian Assange é um exemplo de perseguição a um jornalista e à independência profissional que todos os jornalistas deveriam exercer. Faz dez anos que Assange trava uma batalha judicial por sua liberdade. Ele continua preso em Londres e ameaçado de extradição para os Estados Unidos, que pretendem sentenciá-lo a até 175 anos de prisão, o que equivale dizer prisão perpétua. Ele estaria sujeito também à pena de morte, enquadrado nas leis antiespionagem. O crime de Assange foi o de transformar em notícia o que o governo estadunidense queria manter como informação secreta, como a ocorrência de crimes de guerra no Iraque.

Nos últimos cinco anos, 22 jornais pelo mundo foram fechados devido à pressão de governos em represália a matérias publicadas contra seus interesses. Muitos conseguiram sobreviver precariamente em edições online depois de terem colaboradores presos, sofrerem censura direta, perseguições fiscais e muitos processos judiciais que os inviabilizaram. Fica às vezes no público a impressão de que o fechamento foi devido a má administração ou desinteresse dos leitores quando na verdade foram sufocados e, podemos dizer, assassinados.

Yorgos Karaivaz (Reprodução/Athens Magazine)

Segundo a UNESCO, só no ano de 2018 cerca de 100 jornalistas foram mortos e centenas estavam presos por terem divulgado notícias que desagradaram os governos.

O site russo Proekt.Media opera na modalidade de sites de guerrilha, sem redações tradicionais e financiados por doações. Quando anunciou que iria publicar uma reportagem sobre o enriquecimento ilegal do ministro do interior do governo Putin, Vladimir Kolokoltsev, sofreu uma batida policial, três dos seus jornalistas foram presos, entre eles o editor-chefe Roman Badanin. Foram submetidos a interrogatório policial, apreendidos seus computadores e telefones celulares antes de serem liberados. A intimidação do Proekt.Media é parte da perseguição que vem sendo feita contra jornalistas pelo governo russo.

No que a polícia chamou de crime quase perfeito, o jornalista grego Yorgos Karaivaz foi morto em abril com dez tiros, na porta de sua casa. Foi o quarto jornalista assassinado na União Europeia em tempos recentes. Ele fazia uma reportagem sobre uma rede de acompanhantes de luxo da qual fazia parte uma famosa estrela da televisão.

"Mataram Yorgos mas ainda existem sete mil jornalistas vivos na Grécia. Não vamos esquecê-lo e vamos trabalhar para descobrir tudo sobre esse crime e transformar em notícia o que for descoberto", disse Katia Makri, sua colega na rede de televisão em que Yorgos trabalhava.

Comentários