Manlio Dinucci: Nenhuma lição aprendida da catástrofe afegã
Rede Voltaire | Roma (Itália) | 23 de Agosto de 2021
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No seu discurso de 16 de Agosto, na Casa Branca, o Presidente Biden fez uma declaração lapidária: "A nossa missão no Afeganistão nunca teve como objectivo a construção de uma nação, nunca teve a intenção de criar uma democracia unificada e centralizada". Uma pedra tumular, colocada pelo próprio Presidente dos Estados Unidos, na narrativa oficial que acompanhou, durante vinte anos, a "missão no Afeganistão", na qual a Itália também dispendeu vidas humanas e dinheiro público no valor de biliões de euros. "O nosso único interesse nacional vital no Afeganistão permanece hoje, o que sempre foi: evitar um ataque terrorista à pátria americana", explicou Biden. Mas as suas palavras são ensombradas pelo Washington Post que, desejando esvaziar o seu armário de esqueletos das ‘fake news’ espalhadas ao longo de vinte anos, emprega o título: "Os Presidentes e líderes militares dos Estados Unidos enganaram deliberadamente o público sobre a guerra americana mais longa, tra-vada no Afeganistão durante duas décadas".
O público tem sido "deliberadamente enganado" desde que, em Outubro de 2001, os Estados Unidos, flanqueados pela Grã-Bretanha, atacaram e invadiram o Afeganistão com a motivação de caçar Osama bin Laden, perse-guido como o instigador do ataque terrorista de 11 de Setembro (cuja versão oficial metia água por todos os lados). O verdadeiro objectivo da guerra era a ocupação deste território de importância geoestratégica primária, fazendo fronteira com as três antigas repúblicas soviéticas da Ásia Central (Turquemenistão, Uzbequistão e Tajiquistão) e com o Irão, o Paquistão e a China (a região autónoma de Xinjiang Uygur). Já nesta altura havia fortes sinais de uma aproximação entre a China e a Rússia: em 17 de Julho de 2001, os Presidentes Jang Zemin e Vladimir Putin assinaram o "Tratado de Boa Vizinhança e Cooperação Amigável", descrito como um "marco" nas relações entre os dois países. Washington considerava a aliança emergente entre a China e a Rússia como uma ameaça aos interesses dos EUA na Ásia, num momento crítico em que os EUA tentavam preencher, antes dos outros, o vazio deixado pela desagregação da URSS na Ásia Central. "Existe a possibilidade de surgir na Ásia um rival militar com uma base de recursos formidável", advertia o Pentágono num relatório de 30 de Setembro de 2001.
O que estava realmente em jogo foi demonstrado pelo facto de que, em Agosto de 2003, a NATO sob comando USA, ter subitamente assumido "o papel de liderança da ISAF", a "Força Internacional de Assistência à Segurança" criada pelas Nações Unidas em Dezembro de 2001, sem nessa altura, ter qualquer autorização para fazê-lo. Desde então, mais de 50 países, membros e parceiros da NATO, participaram na guerra do Afeganistão, sob comando USA.
O balanço político e militar desta guerra, que derramou rios de sangue e queimou enormes re-cursos, é catastrófico: centenas de milhares de mortes de civis, provocadas pelas operações de guerra, mais um número incalculável de "mortes indirectas" devido à pobreza e às doenças provocadas pela guerra. Só os Estados Unidos - documentado no New York Times - já gastaram mais de 2,500 biliões de dólares nela. Para treinar e armar 300 mil soldados governamentais que, desbaratados em poucos dias perante o avanço dos talibãs, os Estados Unidos gastaram cerca de 90 biliões de dólares. Mais de 10 biliões de dólares, investidos em operações antidroga, resultaram na quadruplicação da superfície cultivada com ópio, tanto que o Afeganistão fornece hoje 80% do ópio produzido ilegalmente no mundo.
Emblemática é a história de Ashraf Ghani, o Presidente que fugiu para o exílio dourado. Edu-cado na Universidade Americana em Beirute, seguiu uma carreira nas universidades de Columbia, Berkeley, Harvard e Johns Hopkins nos EUA, e no Banco Mundial em Washington. Em 2004, como Ministro das Finanças, obteve um "pacote de assistência" de 27,5 biliões de dólares dos países "doadores", entre os quais a Itália. Em 2014, num país em guerra sob a ocupação USA/NATO, foi oficialmente nomeado presidente com 55% dos votos. Em 2015, o Presidente Mattarella recebeu-o com todas as honras no Quirinale, juntamente com a Ministra da Defesa, Pinotti, que se tinha encontrado com ele um ano antes em Cabul.
Esta experiência catastrófica vem juntar-se àquelas que a Itália já viveu como resultado de ter participado, em violação da sua própria Constituição, nas guerras da NATO desde os Balcãs até ao Médio Oriente e ao Norte de África. No entanto, nenhuma lição foi aprendida pelas forças políticas com assento no parlamento. Enquanto em Washington o próprio Presidente destrói o castelo de mentiras sobre os "elevados objectivos humanitários" com que se justificava a participação italiana na guerra do Afeganistão, em Roma, como no romance 1984, de Orwell, a História está a ser apagada.
Maria Luísa de Vasconcellos
Fonte
Il Manifesto (Itália)
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