Aníbal Malvar: Europa, vassala dos Estados Unidos

 

Créditos da foto: ''Os Estados Unidos são o ópio da Europa'' (iStock)

 Por Aníbal Malvar - na Carta Maior - 29/08/2021

 Não sei nada sobre geopolítica, ou macroeconomia ou bobagens assim, então não preste tanta atenção em mim. Mas esse divórcio entre os Estados Unidos e a Europa, por causa da situação no Afeganistão, é muito promissor para mim. É incrível como um país tão pequeno pode mudar o cenário político internacional. Foi o que aconteceu no final do Século XIX com Cuba, onde os Estados Unidos iniciaram seu projeto de expansão comercial/militar ao sul do continente, que se reproduziu com diversos episódios sangrentos nas décadas seguintes e até hoje. Eduardo Galeano contou isso muito bem em “As Veias Abertas da América Latina”. Os Estados Unidos apoiaram continuamente os golpes militares/comerciais mais sangrentos realizados ao sul do Rio Bravo (os militares nacionais promoveram sua ignorância, seu ódio e sua ganância, e os EUA ajudaram com o dinheiro, sendo a Argentina de Rafael Videla e o Chile de Augusto Pinochet os mais conhecidos exemplos). Mais recentemente, os Estados Unidos financiaram o golpe judicial que permitiu a chegada do fascista Jair Bolsonaro ao poder no Brasil, a tentativa de defenestração de Evo Morales na Bolívia (quem poderia imaginar isso), ou o lawfare contra Cristina Kirchner na Argentina. São apenas alguns exemplos de uma lista de exemplos que produziu muitos mais nestes últimos anos.



É por isso que fico muito excitado, geopoliticamente falando, cada vez que a Europa se distancia dos Estados Unidos. Não que nós, europeus, sejamos um exemplo de igualdade, liberdade e fraternidade. Porque, hoje, nós repatriamos em Ceuta as crianças que fogem da prostituição, da exploração e do abandono na África, para dar apenas alguns selos dickensianos a essa contradição. Mas os Estados Unidos, mostrados cinematograficamente como um exemplo de democracia, é na verdade um império que se dedica sistematicamente a abortar democracias ao redor do mundo há mais de um século. E a Europa se presta a ser o seu cúmplice perfeito. Os Estados Unidos são a democracia mais antidemocrática em meu dicionário de paradoxos. Não sei se é no de vocês que me estão lendo. Já disse que não sou especialista nesses assuntos internacionais, e meu julgamento pode estar equivocado.

Por essa ignorância confessada, sempre me pareceu um tanto embaraçoso, como europeu e como terráqueo em geral, aquela vassalagem diplomática típica dos europeus para com os Estados Unidos. É por isso que adoro ver que, agora, os Estados Unidos e a Europa estão se distanciando. Acontece que os Estados Unidos fizeram um acordo com o Talibã para permitir que as tropas norte-americanas possam deixar o Afeganistão até o dia 31 de agosto. O mesmo acordo condena os europeus, não terão meios para repatriar seus funcionários que ainda estão naquele país. Em outras palavras, a gigante Europa precisa se ajoelhar diante dos Estados Unidos e implorar a Joe Biden para que este concorde com uma prorrogação do prazo com o Talibã. Nem mesmo podemos depender de nós mesmos para isso. Que poderoso é o gigante europeu! Um gigante que não é de nada.

Pensei o mesmo no início da pandemia, quando não havia máscaras na Europa. A OMS (Organização Mundial da Saúde) decidiu não recomendar o uso de máscaras. Que barbaridade! Mas a origem dessa decisão é ainda mais vergonhosa: quando perceberam que os assim chamados “países desenvolvidos” não tinham sequer condições de produzir suas próprias máscaras, entenderam que, devido a essa situação se reconhecessem oficialmente que as máscaras são necessárias poderiam gerar um pânico que levaria ao caos social, com roubos e saques a farmácias e bazares. Somos capazes de desenhar robôs de automação que lavam as nossas roupas, limpam nossas casas, bonecas infláveis que satisfazem nossas necessidades sexuais, bisturis que nos embelezam mais do que um pincel de Michelangelo, tanques que nos defendem de todos os nossos inimigos imaginários e inexistentes. Mas não tínhamos uma indústria capaz de fabricar alguns milhões de máscaras, e este problema nos voltou a colocar de joelhos, em quatro diferentes momentos durante esta pandemia. E me refiro a máscaras muito simples, um trapo e duas tiras de elástico, só isso. Nos colocamos à mercê dos fabricantes asiáticos, pois a nossa indústria têxtil prefere trabalhar com plantas clandestinas daquele continente, algumas que trabalham com mão-de-obra infantil e semiescravizada, e em meio ao desespero causado pela pandemia, os aviões que nos traziam as máscaras demoravam a chegar, pois preferiam desviar seu trajeto ao império que pagava mais. Só depois que elas chegaram, meses depois, a OMS recomendou o seu uso.

Agora, os gigantes europeus percebem não apenas que não sabemos e não podemos fazer máscaras, mas que tampouco podemos tirar algumas centenas de pessoas de Cabul sem a ajuda paterna dos Estados Unidos. E os Estados Unidos preferem seguir as ordens do Talibã, o que significa ignorar nossos apelos para incluir nossos funcionários nos esforços para deixar o Afeganistão até o final deste mês, deixando muitas pessoas abandonadas ao terror das máfias fundamentalistas do ópio. Espero que a Europa encontre a sua própria solução e que nenhuma vida se perca, mas tenho a impressão de que os meus desejos não serão atendidos.

Fico feliz que a Europa esteja se distanciando dos Estados Unidos, porque os Estados Unidos são o ópio da Europa. Olhamos para eles e dependemos deles, baseados na falsa suposição de que são a democracia perfeita. Mas, enquanto isso, assistimos todos os dias na televisão casos como o da manada de policiais espancando pessoas negras no Harlem até a morte. Insisto que não sei nada sobre geopolítica e bobagens desse tipo, mas ver a Europa se desviar da vassalagem aos Estados Unidos não me parece uma má ideia, muito pelo contrário. Ignorante e democraticamente falando.

Aníbal Malvar é escritor e jornalista espanhol, colunista do diario Público.es

*Publicado originalmente em 'Público' | Tradução de Victor Farinelli

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