Maconha terapêutica e o olho gordo das corporações
Por Coletivo Dar - no Outras Palavras - 21/07/2021
Por Gabriela Moncau, do Coletivo DAR
A regulamentação do uso terapêutico da maconha é a porta de entrada pra legalização no Brasil. Isso já dava pra sacar há anos e os motivos são vários. Um deles, sem dúvida, é a luta incansável – protagonizada por mulheres – de pessoas que não aceitam se submeter a uma lei injusta em detrimento do remédio necessário pra que elas ou suas pessoas amadas possam viver bem. Em digna desobediência, as associações e as redes solidárias de pessoas que cultivam – clandestinas ou não – vêm se espalhando pelo país.
Outro motivo é o de que esse tema parece sensibilizar mais a sociedade do que outros argumentos antiproibicionistas. A defesa de que as pessoas devem poder escolher o que fazer com seu próprio corpo; a constatação de que a guerra às drogas é uma desculpa usada pelo Estado pra seguir com sua política racista e classista de mortes e grades; ou mesmo a defesa de que todo mundo deve ter o direito ao prazer e que isso pode incluir o uso de drogas – todos esses argumentos parecem colar menos. Por outro lado, tem sido mais raro que as pessoas sejam contra, por exemplo, que uma criança acesse o único remédio que dá alívio para suas crises epilépticas. Cabe a nós argumentar como todas essas questões são inseparáveis.
Mas em que pé que tamo nessa babilônia que a gente chama de Brasil? Se os potenciais terapêuticos da maconha vêm abrindo caminho pra legalização, essa porta que já tá com a frestinha aberta tá apontando pra onde?
O debate anda quente e já da pistas importantes pra responder essas perguntas. Mas antes de entrar propriamente nisso, vale lembrar: desde 2015 é permitido o uso compassivo do canabidiol no Brasil. Isso quer dizer que a pessoa pode importar o remédio, mas só depois de já ter tentado outros tratamentos sem sucesso. Em 2017, a Anvisa registrou o primeiro medicamento fitoterápico a base de maconha (o Mevatyl), um spray oral com THC e CBD para tratamento de espasmos decorrentes de esclerose múltipla. Em 2019 a Anvisa regulamentou a venda de produtos a base de maconha nas farmácias; e em 2020 registrou mais um produto do tipo. Sabe quanto custam esses remédios? Se não souber, chuta. A dica é: as pessoas que conseguem comprar são as mesmas que já podem fumar seu beck sem ter medo de, pela cor da pele e o bairro onde tão, serem presas ou mortas pela nossa gloriosa polícia militar. O frasquinho vem com 30 ml e custa de R$2000 a R$2500. É isso mesmo que cê leu. A maconha terapêutica tá legalizada há alguns anos no Brasil – pros ricos.
O PL 399 e como ele consegue desagradar quase todo mundo
O Projeto de Lei 399/2015 tem sido tema de muita discussão porque recentemente voltou para a votação na Câmara dos Deputados. Escrito originalmente pelo deputado Fábio Mitidieri (PSD-SE), depois teve o texto substituído pelo relator Luciano Ducci (PSB-PR). O texto prevê a legalização do cultivo e da venda de extratos, substratos e pedaços da planta no Brasil, restrito a pessoas jurídicas e pra fins medicinais e industriais.
Aqui um resuminho dos pontos principais do PL 399/15:
> Legaliza que empresas façam cultivo, processamento, pesquisa e comercialização da maconha pra fins medicinais e industriais no Brasil;
> Só permite que sejam usadas sementes e mudas certificadas e os medicamentos têm que ter seus teores de CBD e THC testados;
> Autoriza que instituições de pesquisa trabalhem com maconha;
> Não permite que sejam feitos produtos pra serem fumados. Só extratos, substratos ou partes da planta;
> As Farmácias Vivas do SUS vão poder cultivar e processar os medicamentos;
> Autoriza a produção e comercialização de cânhamo industrial (cosméticos, tecidos, fibras, comidas que não deem brisa, etc.);
> Já as associações de pacientes, pra se habilitarem, precisam se adequar a uma lista imensa de condicionantes que exige uma estrutura comparável a de um laboratório farmacêutico. Só vão estar dentro da lei as associações que tiverem muita grana. (Se você quiser ver um resumo das exigências, ta no PS, finzim do texto).
O PL foi aprovado (em votação acirrada) em uma comissão da Câmara dos Deputados no dia 8 de junho. Ainda vai ser apreciado pelo plenário, porque 128 deputados entraram com recurso e, se aprovado, vai pro Senado. Caso passe pelos senadores, vai pras mãos do Bolsonaro (que já disse que vai vetar). O congresso ainda pode derrubar o veto presidencial se isso for votado com maioria absoluta nas duas casas. Mas tudo pode mudar aí pelos tortuosos caminhos das negociatas e burocracias institucionais.
Fato é que, por um lado, a extrema direita chia e usa o tema pra fazer o cirquinho de sempre – com direito a declarações ridículas, moralistas e empurrõezinhos. Osmar Trevas encabeçando, como sempre, a defesa da guerra às drogas. Argumentou que se aprovado esse que seria “o marco regulatório da maconha”, o Brasil se transformaria num “narco-Estado” – como se não fosse isso o que a gente vive hoje, justamente porque o mercado ilegal sustenta a máfia e a corrupção em todas as instâncias estatais. Roberto Jefferson, com sua intocável índole, ameaçou punir os deputados do seu partido (PTB) que votassem a favor do projeto. Já Bolsonaro segue reforçando uma das suas tão conhecidas obsessões: quando não tá fazendo piada de tiozão homofóbico e falando de pinto (tipo essa, essa, essa ou essa vez), tá fazendo algum outro tipo de piada preconceituosa e absolutamente sem graça sobre maconha (tipo aqui, aqui ou aqui).
Mas não foi só a direita bolsonarista-conservadora-neopentecostal que não gostou do projeto. É verdade que tem pontos interessantes – e na real acho que a palavra interessante não é a melhor, porque são coisas que deveriam ser óbvias. Mas enfim, aí a gente se dá conta que nossas lutas são por coisas bastante óbvias. Destaco o fim da proibição da pesquisa científica com maconha e a inclusão do cultivo e processamento da planta na Farmácia Viva do SUS. Só que tem outras questões muito revoltantes. Vamos a elas.
O debate aqui não é técnico sobre artigo y ou z de um projeto de lei. Estamos falando sobre que tipo de legalização está ganhando espaço no Brasil, quem vai se beneficiar dela e quem vai seguir na mira da repressão.
Não é só que o uso recreativo (e o debate sobre a nebulosa fronteira entre recreativo e terapêutico rende outro texto), o uso religioso ou ritualístico e o autocultivo não estão no projeto. Nem que não tem nenhuma menção a qualquer tipo de reparação às populações pobres e negras historicamente massacradas com a guerra às drogas. Difícil esperar isso de um Estado cuja engrenagem é justamente essa.
Fato é que o caminho está se abrindo pro agronegócio e a indústria farmacêutica e se fechando pra grande parte das associações de pacientes e de cultivo. Elas: as principais responsáveis pela sensibilização social que em grande parte impulsiona, justamente, a possibilidade de uma regulamentação da maconha pra fins terapêuticos.
Os setores que historicamente se beneficiam com a guerra às drogas vão ser, de novo, os que mais vão se beneficiar com uma regulamentação desse tipo. Da mesma forma que o proibicionismo, hipocritamente, se propagandeia como se fosse uma defesa da saúde (como se quisesse extinguir da face da terra substâncias que supostamente fazem mal à população); agora – mais uma vez em nome da saúde – a perspectiva de legalização que ganha espaço é uma que prioriza que o milenar uso dessa planta se reduza aos domínios de gigantes complexos empresariais que estimulam continuamente o consumo, na busca do crescimento dos seus lucros e interesses privados.
Entre tantos setores desagradados pelo PL, alguns o veem com bons olho$. A produção industrial de maconha é um atrativo comercial pra setores do agronegócio, da indústria têxtil, de produtos estéticos, dermatológicos e alimentícios. O próprio relator Luciano Ducci deu entrevista dizendo que o potencial agrícola desse mercado vai chegar “a US$ 166 bilhões no mundo em cinco anos” e que do ponto de vista da indústria farmacêutica, a ideia é abrir espaço pra gigantes canadenses, estadunidenses e israelenses. Entre as empresas interessadas, estão a Canopy Growth Corporation (com seu braço Spectrum Therapeutics) e a Aurora Cannabis Inc.
Nem tudo que reluz é ouro
Talvez alguém argumente que sim, não é o ideal, mas que pelo menos é um pequeno avanço, uma redução de danos. Que não é também que as associações sejam legalizadas hoje em dia né?, que algumas seguirão sendo criminalizadas mas que, ao menos, algumas outras não. Pode ser que essa pessoa tenha razão (o que não tira aquele embrulho no estômago de demandas tão cruciais serem arrancadas a conta-gotas e com negociatas e contrapartidas bizarras). Mas pra além disso, um dos desafios que temos, enquanto antiproibicionistas, é o de distinguir o que são avanços insuficientes do que são armadilhas.
A própria Lei de Drogas (11.343/2006) é o exemplo clássico. Alterada pela última vez em 2006, ela define que a pessoa usuária não responde mais a esse crime com pena de prisão. Parecia algo insuficiente, mas positivo. Junto com isso, no entanto, a lei passou a determinar que a pessoa acusada de tráfico não pode aguardar o julgamento em liberdade e aumentou a pena de prisão pra esse crime (hoje é de 5 a 15 anos). Como bem sabemos, os critérios usados por policiais, delegados e juízes pra considerar alguém usuário ou traficante não são naaada racistas e classistas. O resultado do aparente avanço na mudança da lei de drogas foi catastrófico. Em 2006, quando essa versão começou a valer, eram 31.520 pessoas presas por tráfico de drogas nos presídios brasileiros. Hoje são 232.341.
No caso dessa proposta de regulamentação do uso terapêutico da maconha, seria de uma ingenuidade tão grande quanto bonita imaginar que, vivendo no capitalismo, gigantes indústrias não abocanhariam a imensa parte desse mercado bilionário. Mas o mais inaceitável é que, ao mesmo tempo em que essas grandes empresas vão mitigar sua insaciável sede por lucro, as iniciativas autônomas de autocultivo, associativismo e produção independente do próprio remédio sejam, de novo, criminalizadas. Que o suposto reconhecimento estatal da estupidez que é proibir as pessoas de acessarem uma planta barata que pode melhorar suas condições de vida se dê, de novo, criando entre elas uma barreira pela qual só passa quem tem dinheiro.
Hoje as poucas pessoas e grupos que supostamente podem cultivar a planta conseguiram isso com pontuais autorizações judiciais, e só pra fins terapêuticos. É o caso da paraibana Abrace Esperança, da carioca Apepi (Associação de Apoio à Pesquisa e a Pacientes de Cannabis) e da paulista Cultive (Associação de Cannabis e Saúde). Digo supostamente porque não raras vezes esses grupos são invadidos pela polícia, como aconteceu com a Apepi e mais recentemente com a Abracanabis. Essa última, que nem cultivo faz, teve sua sede invadida por policiais que, ao invés de mandado judicial, carregavam fuzis.
Se aprovada uma regulamentação nos moldes desse projeto, por que a justiça daria ou manteria habeas corpus pra que associações de pequeno porte, fora dos requisitos de laboratório profissional, possam plantar em paz? Por que as já minúsculas brechas judiciais seriam mantidas ou concedidas pra que uma pessoa tenha suas plantinhas no quintal, se a lei que passaria a valer privilegia o remédio industrializado e caro nas farmácias?
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