Paulo Freire em cartas de esperança e boniteza

  Por Coordenação e Equipe Editorial do Projeto Paulo Freire 100 anos - Na Carta Maior - 20/04/2021

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A presente obra se insere no contexto das celebrações dos 100 anos de nascimento do grande educador brasileiro, Paulo Freire (1921-1997). Trata-se do primeiro volume de uma trilogia denominada Cartas a Paulo Freire – Escritas por quem ousa esperançar, que busca, de um lado, contribuir com discussões sobre a atualidade do pensamento de Freire, em linguagem acessível e plataformas abertas, e ampliar as possibilidades dialógicas para além das redes acadêmicas e institucionais; e, de outro, revelar a boniteza dos saberes, do pensamento e da ação dos que insistem, iluminados pelo legado freireano, em esperançar um presente sem as correntes do passado e sem medo do futuro.

As cartas, como destacam historiadores da comunicação, são a mãe de todos os gêneros textuais. Há registros que garantem que elas começaram a circular há mais de quatro mil anos antes da Era Cristã. Na Bíblia, o Novo Testamento tem 21 livros escritos nesse formato. As comunidades cristãs foram animadas pelas cartas de Paulo, Pedro, Timóteo, Judas, João e Tiago. A história das diferentes sociedades tem nas missivas, como também são chamadas, um território significativo de fontes. Há quem afirme que o desenvolvimento da Ciência moderna se deve, em grande medida, à troca de correspondências entre os chamados filósofos naturais sobre seus estudos e o resultado de seus experimentos em diferentes partes do mundo. Os primeiros periódicos científicos editados entre os séculos XVII e XVIII, na Europa, publicavam notas e cartas.

O gênero conquistou mentes e corações – da religião, passando pela filosofia, história, ciência, política até a literatura e a educação. Difícil encontrar entre os chamados autores clássicos, da antiguidade aos nossos dias, um que não tenha dedicado parte de seu tempo ao diálogo, por meio de correspondências, com diferentes interlocutores e não as tenham tornado públicas, em livros, por exemplo, em algum momento de suas vidas. No Brasil, o primeiro registro que se tem notícia foi a Carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei D. Manuel. Nossa literatura é pródiga em cartas. E Paulo Freire soube, como ninguém, se apropriar do gênero, recolocando a educação no território do coloquial e do afetivo.

Uma parte significativa da obra de Freire foi redigida no formato de cartas, destacando-se, entre elas, as Cartas a Guiné-Bissau (1977); Cartas aos animadores e às animadoras culturais de São Tomé do Príncipe (1980); Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar (1993); Cartas a Cristina (1994); e Pedagogia da indignação (2000). Todas e todos que viveram e trabalharam diretamente com ele são unânimes em afirmar sua paixão pelas cartas. A própria Nita Freire, viúva do educador, em livro belíssimo, Paulo Freire: uma história de vida (2006), publicou várias cartas que ele escreveu para diferentes pessoas, demonstrando seu afeto amoroso e comprometido, politicamente, com um mundo mais humano.

Como bem destaca Pereira Coelho (2011), Freire escreveu e recebeu cartas de pessoas de diversas partes do mundo: dos trabalhadores sem-terra, dos amigos, dos religiosos e de chefes de Estado. Ainda segundo o mesmo autor, Freire dizia que o gênero carta é dialógico e pedagógico por sua própria natureza; era um convite permanente ao diálogo. Quem escrevia saía da centralidade do ego e provocava a participação do outro. Mas, para que que isso acontecesse, ninguém poderia prescindir da humildade, da amorosidade, da tolerância, da paciência e, também, da coragem. É que, quando escrevia, Freire o fazia com intencionalidade e com posições políticas claras contra qualquer forma de opressão.

Ousamos dizer que as cartas desta coletânea estão fortemente marcadas pelo compromisso com práticas dialógicas e com a coragem de desocultar as mentiras dominantes (vivemos a idade de fake news) e restaurar a necessidade da esperança, que, como dizia o mestre, sozinha, não ganha a luta, mas sem ela a luta fraqueja e titubeia (FREIRE, 1992). Em Freire, a principal missão do educador ou educadora progressista (ele fazia questão do adjetivo) é desvelar as possibilidades para a esperança. Pouco podemos fazer enquanto desesperançados ou desesperados; a luta, assim, é suicida, um corpo-a-corpo puramente vingativo. A nossa ação político-ética eficaz, ou a nossa briga, para usar uma expressão de Freire, deve ser contra a negação do sonho e da esperança (FREIRE, 1992).

Trazemos, aqui, como sinalizam os nossos objetivos, cartas de saudades, de amorosidade, de boniteza, de lembranças, de reconhecimento e de reafirmação de um legado que marcou profundamente a história da educação brasileira. Cartas, também, de atualização de leituras de mundo e de ousadias de reinvenção e esperançar. E cartas, ainda, que denunciam um tempo infeliz de morte, de muita dor, tristeza, mal-estar, medo, desesperança, descaso, que, “ensopado” de uma pedagogia cruel, não só tem mostrado as entranhas da pulsão de morte da dominação moderna, como tem precarizado, sob todos os aspectos, nossas formas de viver e ser no mundo (SOUSA SANTOS, 2020).

O Projeto Cartas

A Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) abriga em sua estrutura de graduação e pós-graduação lato e stricto sensu vários grupos de estudos e pesquisa de inspiração freireana e tem no seu corpo docente, discente e técnico vários seguidores do patrono da Educação brasileira. Foi nesse coletivo de saberes que se construiu o projeto editorial Cartas, seguindo Freire (2003) em seu princípio norteador: as cartas deveriam se resguardar da arrogância, da suficiência, da certeza ‘demasiada certa’ do acerto, do elitismo teoricista e da subestimação dos saberes do leitor.

Lançamos, então, um convite amplo, sem fronteiras, travas acadêmicas, barreiras institucionais, que ganhou corpo, vida e alma e correu Brasil afora, pelas redes sociais, mobilizando professoras e professores, da Educação Básica ao Ensino Superior, para o desafio de escrever cartas ao grande mestre. E, como provocação, recomendamos a leitura/releitura da sempre atual Carta aos Professores, publicada por Freire em 1993, no livro Professora sim, Tia não – cartas a quem ousa ensinar, hoje na 24ª edição.

Estabelecemos datas diferentes para o recebimento, considerando que, para possibilitar a publicação do maior número de cartas, consensuamos a construção de uma trilogia, cujos volumes, individualizados, seriam lançados em meses diferentes entre março e setembro do ano do centenário. Imaginamos o primeiro volume com ênfase em cartas do Brasil; o segundo contemplando cartas também da América Latina; e o terceiro com uma atenção especial para o que chamamos de Cartas Africanas. Nenhum deles, porém, excluindo cartas de uma ou de outra região, mas, todos, buscando construir redes dialógicas.

Para se ter uma ideia da recepção, só para este volume, o projeto recebeu dezenas de cartas de professoras e professores de todas as regiões, as quais chamam atenção pela boniteza. E no legado freireano, como mostraremos adiante, boniteza tem um significado todo especial: encontra-se de mãos dadas com a decência e com a seriedade. Em diálogo com autores e autoras, a equipe editorial fez pequenos ajustes de natureza linguística e de formatação, preservando estilos, sotaques e, principalmente, a integridade dos conteúdos. Para este volume foram selecionadas 70 cartas, recebidas de professores e professoras de 20 estados, pertencidas e marcadas pela diversidade, inclusive territorial.

Algumas correspondências se aproximam de um ensaio; outras, de um relato de experiência ou de uma peça propositiva; e, outras, ainda, trazem o encanto da poesia e da literatura de cordel para um diálogo franco, respeitoso, criativo e emocionante com o patrono da Educação brasileira e seus seguidores no mundo. Todas, sem exceção, reforçando os ensinamentos do mestre: a superação das injustiças demanda a transformação das estruturas iníquas e implica o exercício articulado da imaginação de um mundo menos feio e menos cruel. Implica a imaginação de um mundo com que sonhamos, de um mundo que ainda não é, de um mundo diferente do que aí está e ao qual precisamos dar forma.

A distribuição dos conteúdos no livro não segue uma organização linear e hierárquica de classificação de autores e temas. Na realidade, construímos, a partir das leituras, cinco territórios de pertencimento. Ao primeiro, de natureza mais conjuntural, demos o nome de “Lendo o mundo”. Nele, encontram-se 17 cartas que tratam de temas como os desafios da educação num mundo pandêmico e a conjuntura de morte que experimentamos a partir da pandemia do novo coronavírus. O segundo território recebeu o nome de “Aprendências” e reúne pouco mais de 20 cartas com temas que vão da reinvenção do ser e fazer escola, passando pela consciência do inacabado, a educação como exercício de humildade até a relação de Paulo Freire com a Pedagogia de Jesus.

No terceiro território, “Esperançando”, reunimos 15 cartas com temáticas que tratam de sonhos, do tempo de esperançar, das lutas por um mundo melhor, do Paulo Freire que vive hoje, da escuta e da escola como vida em emancipação. Já ao quarto território, demos o nome de “Comunhão” por abrigar um conjunto de 11 cartas coletivas com experiências de educação popular, projetos de extensão, grupos de estudos e ação que têm a educação libertadora como foco e Freire como um de seus iluminadores. Dentre os temas, ninguém aprende sozinho, repensar o pensado, a educação precisa de mais andorinhas, e conversas em torno da boniteza. E, por falar em boniteza, é este o tema do quinto território. Aqui foram reunidas 5 cartas em versos, literatura de cordel, cartas híbridas (em prosa e verso) e cartas que são verdadeiros poemas. Os temas de “Boniteza” destacam a educação com amorosidade, o respeito à experiência e trazem uma ode aos que insistem em esperançar um mundo novo.

Sinalizamos anteriormente que a boniteza em Freire tem um significado especial: não diz respeito ao belo ocidental e colonizador, que valoriza a aparência em detrimento da essência das coisas. A boniteza é instigada por desafios, pelo reconhecimento dos nossos limites e pela vontade de superá-los. A boniteza se compõe da razão ética que se abre ao diálogo e à experiência de reconhecimento da nossa incompletude. Ela vem do ensinar e aprender com alegria, do enfrentamento da dominação, da luta pela liberdade e da qualidade que tem a prática educativa de ser política. Trazendo para os dias de hoje, como as cartas aqui o fazem, boniteza que vem do enfrentamento desse tempo de morte e, sobretudo, do enfrentamento da negação autoritária do sonho, da utopia, da esperança.

Paraíba, março de 2021

Coordenação e Equipe Editorial do Projeto Paulo Freire 100 anos.

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