As aventuras belicosas de um império caduco
Inconsciente de sua pequenez, o Reino Unido espalha conflitos insólitos – da conspiração para o golpe na Bolívia a planos anti-Rússia. Tem o amparo de sua ex-colônia, os EUA. Decadente mas perverso, mostra que é grave não saber envelhecer
OutrasPalavras - por Eduardo J. Vior - 05/04/2021
A relação entre a elite dirigente dos Estados Unidos e sua homóloga da Grã-Bretanha se parece à desses homens que, mesmo crescidos, não conseguem se tornar independentes de suas mães já velhotas e senis, mas dominadoras, tanto quanto dominadas por delírios de grandeza. Na inconsciência da sua debilidade, elas se metem vez por outra em aventuras arriscadas, buscando perversamente arrastar seus filhos ao seu socorro, como prova de amor incondicional.
Já estão longe os tempos do Empire. Durante 45 anos, a Grã-Bretanha foi bem acolhida na União Europeia, mas o círculo áulico que rodeia e se entrelaça com a família real se cansou de pelejar com a hegemonia franco-alemã e sonha em recuperar a grandeza perdida. Por isso, instrumentalizou e manipulou seu povo até conquistar o Brexit. Agora, essa gente anseia por navegar de novo, triunfante, por pelo menos quatro dos sete mares que antes tinham por hábito assolar. O Ministério da Defesa do Reino Unido (UKDM) publicou na segunda-feira da semana passada seu relatório sobre “Defesa em uma era competitiva”, que dá continuidade às formulações do “Livro Branco de Defesa”, dado a conhecer há quinze dias.
Naquele sábado, 20 de março, o mesmo Ministério informou sobre a formação de uma força-tarefa, para combater “o terrorismo russo”. Isso aconteceu poucos dias depois de vir a público o informe do site DeclassifiedUK.com sobre a intervenção britânica no golpe de Estado da Bolívia, em novembro de 2019, e um mês após a mesma organização não-governamental denunciar o papel do príncipe Charles como traficante de armas para as sanguinárias monarquias da Península Arábica. A velha senhora se dispõe a muito, ninguém sabe com que meios, mas, sim, é certo que, se algo lhe sai mal, seu filho mais velho do outro lado do Atlântico vai ter que ampará-la.
Na estratégia de modernização das Forças Armadas britânicas que veio a público na segunda seguinte, 22 de março, o governo qualificou a Rússia como “a maior ameaça nuclear e militar convencional” para a segurança europeia e expressou seu desejo de que tal modernização propicie a Londres a oportunidade para intensificar sua presença no Ártico, tanto quanto nos mares Negro e Báltico. “A modernização das forças armadas russas, a capacidade de integrar toda a atividade do Estado e um maior apetite pelo risco tornaram a Rússia um ator capaz e imprevisível” se lê no item 1.4 do documento intitulado Defence in a competitive age (“Defesa em uma era competitiva”).
Como resposta, propõe que “grandes investimentos em uma nova geração de fragatas de guerra antissubmarina e um enfoque na interoperabilidade profunda com aliados como Estados Unidos, França, Noruega e Holanda permitam ao Reino Unido conservar seu papel histórico (…) para garantir nossa liberdade de operar no Atlântico Norte e reforçar os aliados europeus”. Nesse sentido, Londres tem intenção de fortalecer os laços com Ucrânia, Grécia, Turquia, Bulgária e Romênia, para “garantir a liberdade de navegação e segurança” no Mar Negro. Do mesmo modo, planeja aumentar sua presença militar na África, tanto quanto nos oceanos Índico e Pacífico.
Simultaneamente, em consonância com essa nova/velha ideia, no sábado, 20 de março, o general Sir Mark Carleton-Smith, chefe do Estado-Maior do Exército, anunciou a constituição de uma nova força operativa conjunta que reunirá as forças especiais do Exército (SAS) e o Serviço Secreto de Inteligência (SIS, mais conhecido como MI6), para “combater as intervenções russas em todo o mundo”. Note-se bem: Russas! Ao mesmo tempo o Exército planeja constituir uma nova Brigada de Operações Especiais para atuar nas áreas de “grande ameaça” em ultramar pelo custo módico de 120 milhões de libras (165 milhões de dólares). Num diálogo com o Daily Telegraph o alto chefe militar informou que a nova Brigada vai intervir “em áreas inimigas e de grande ameaça, juntamente com aliados regulares e irregulares, formais e informais”, ou seja, com mercenários e terroristas.
A notícia foi dada a conhecer pouco antes que o Ministério publicasse aquele documento do Comando da Defesa, como parte da revisão integral da política exterior, de defesa, segurança e desenvolvimento. Espera-se que o Exército receba um adicional de três bilhões de libras esterlinas (4,13 bilhões de dólares) no orçamento público, ainda que sejam também anunciados cortes significativos. O governo propõe remodelar o Exército para adaptá-lo às modalidades de guerra do século XXI, com menos infantaria e mais operações especiais.
Esses anúncios, na realidade, apenas oficializam ações já em curso. No último dia 8 de março, por exemplo, o historiador Mark Curtis e o jornalista Matt Kennard demonstraram, em um relatório sobre a derrubada de Evo Morales, publicado no site Declassified UK (sediado na África do Sul desde que se tornou alvo da censura militar britânica), de que forma aquele golpe de Estado foi executado por ordem do Foreign Office [equivalente ao Ministério das Relações Exteriores] e de alguns departamentos da CIA norte-americana, sem passar pela administração Trump. A participação britânica no golpe tinha como objetivo se apropriar do lítio boliviano, e foi urdida fazendo uso da conexão que os britânicos mantêm desde os tempos da Guerra Fria com a minoria croata de Santa Cruz de la Sierra, descendente direta dos ustacha nazistas que, após a Segunda Guerra Mundial, foram realocados no Oriente boliviano.
Mark Curtis e Matthew Kennard notam no seu relatório que os Estados Unidos não participaram oficialmente do golpe contra Evo Morales, mas que vários funcionários da CIA ajudaram a orquestrá-lo. O pessoal encarregado de preparar a operação era principalmente britânico. Os autores asseveram também que a embaixada britânica na Bolívia forneceu à OEA os dados que viriam a ser utilizados para “provar” a suposta fraude na eleição presidencial. Os fatos vêm a confirmar o trabalho investigativo do historiador britânico.
Num outro cenário, em novembro último, após 44 dias de guerra no Alto Karabakh, a Armênia teve que firmar um cessar-fogo com o Azerbaijão e aceitar a perda de uma grande parte dos territórios em disputa. O que ocorreu foi que Londres aproveitou a confusão formada com a eleição presidencial norte-americana para tirar vantagem de Washington, buscar excluir a Rússia do jogo no sul do Cáucaso e assim voltar ao Grande Jogo do século XIX, quando os britânicos eram aliados do Império Otomano contra a Rússia czarista. Mas Moscou se deu conta e impôs aos contendores um cessar-fogo que freou a possibilidade de um novo massacre dos armênios [N. do T.: O primeiro genocídio armênio (ou curdo), que teria vitimado em torno de um milhão e meio de pessoas, foi perpetrado pelo Império Otomano (hoje Turquia) em 1915, em plena Primeira Guerra Mundial, como tática de limpeza étnica. O Azerbaijão é parte do mundo linguístico turco. A cautela de Moscou em defender seus históricos aliados armênios parece ser explicada em parte por se recusar a se ver arrastado para mais uma guerra por procuração, como se havia tentado fazer na Geórgia, e em parte para não proporcionar apoio ao primeiro-ministro armênio Nikol Pashinyan, caracteristicamente pró-ocidental, e que ascendeu ao poder por meio de uma “revolução colorida” patrocinada pelo Ocidente. Agora, sob pressão das Forças Armadas armênias, Pashinyan acaba de anunciar que deixará o poder em abril.]
Em consonância ao movimento de voltar ao Grande Jogo, Boris Johnson colocou o diretor geral do Ministério de Relações Exteriores, Richard Moore, na condução do MI6. Esse novo chefe da Inteligência Militar foi embaixador em Ancara, fala turco com desenvoltura e é amigo pessoal do presidente Recep Tayyip Erdogan.
Richard Moore é, além disso, amigo pessoal do príncipe Charles, que, por seu lado, é patrono do Centro de Estudos Islâmicos de Oxford (Oxford Centre for Islamic Studies), onde há 25 anos são formados os intelectuais da Irmandade Muçulmana, responsáveis por lançar as bases para os diversos grupos fundamentalistas islâmicos atuais. Como embaixador britânico em Ancara de 2014 a 2017, Richard Moore ajudou Erdogan a se converter em protetor dessa sociedade secreta radical. Já em 2014, Moore tinha coorganizado a retirada britânica da Síria, uma vez que Londres, que havia apoiado ali os jihadistas com fins a levar adiante seus próprios objetivos coloniais, constatara que aquela guerra tinha se tornado não mais que uma operação norte-americana para desagregar e dominar o Oriente Médio.
Outra matéria, publicada em 24 de fevereiro último, também pelo site Declassified UK, intitulada “Charles da Arábia” [em paráfrase a Lawrence da Arábia], descreve como o príncipe Charles vem agindo na Península Arábica como “um representante de alto nível das empresas britânicas de armamento, para fortalecer os regimes autocráticos do Golfo”. Na matéria são contabilizados 95 encontros do herdeiro da coroa com as famílias reais do Oriente Médio, enquanto o total de encontros entre membros da realeza britânica e das monarquias do Golfo chega a 217. O artigo sublinha que todas as viagens de Charles aos países da Península foram feitas por expressa solicitação do Foreign Office e destaca o quanto o Príncipe de Gales ajudou a cimentar as relações com aquelas monarquias, promovendo, ao mesmo tempo, vendas de 14,5 bilhões de libras esterlinas (quase 20 bilhões de dólares) em equipamento militar.
Como demonstra a denúncia italiana do sequestro de 29 milhões de doses da vacina da AstraZeneca, escondidas em um depósito no norte do país, para serem exportadas ilegalmente para a Grã-Bretanha ― exatamente no momento em que os países europeus protestam contra a empresa pelas doses prometidas mas nunca entregues ―, o Reino Unido não demonstra quaisquer escrúpulos na luta por restaurar sua hegemonia. A monarquia britânica não se resigna a sua decadência, tampouco tem qualquer pejo em arrastar os Estados Unidos para um novo ciclo de guerras de grandes proporções.
Aproveitando-se da sua origem aristocrática, sua educação no Eton College e em Oxford, sua intimidade com os clubes conservadores e sua estreita amizade com os royals, Boris Johnson se candidata a restaurador da “grandeza” britânica. Para escapar da hegemonia franco-alemã, retirou o reino da União Europeia. Para assegurar o controle sobre os recursos petrolíferos, de outra parte, cimenta sua aliança com Turquia, Azerbaijão e monarquias árabes, enquanto mantém vivas as guerras na Líbia e no Iêmen. Para se apropriar dos novos recursos da indústria de energia (o lítio), por seu turno, promoveu o golpe de estado na Bolívia. Finalmente, para garantir uma cadeira nos privilégios do poder mundial, reiniciou o “Grande Jogo” do século XIX contra a Rússia, fortalece seu controle sobre o Atlântico Sul (por meio das ilhas Malvinas, ponta de lança para a conquista da Antártica), sobre o Oceano Índico e apoia o cerco norte-americano contra a China no Mar Meridional de China.
Obviamente, os recursos não dão para tanto, mas o Reino Unido usa as suas alianças de outrora com as elites coloniais no Sul Global, assim como sua experiência em intrigas e conspirações, para abusar da incapacidade e cegueira da elite norte-americana. Às vezes consegue ir adiante, cria conflitos e obriga os Estados Unidos a lhe salvar de enrascadas, e às vezes cresce à sombra do seu aliado maior. No entanto, nunca deixará de ser um império caduco que, apesar da sua debilidade, se nega a deter suas atitudes daninhas. Há tempos essa velha senhora delirante já devia ter sido internada em um hospício, mas seu filho dileto não se atreve. Enquanto continuar solta, o mundo não terá paz.
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