Thierry Meyssan: Os bastidores das relações Estados-Unidos/Irão

Ao mandar assassinar no Iraque o General iraniano Qassem Soleimani, o Presidente Trump quase teria provocado a Terceira Guerra Mundial. É mais ou menos a versão da Oposição nos EUA e da imprensa internacional. Para Thierry Meyssan, aquilo que se passa nos bastidores é muito diferente do show em cena. Neste, caminhamos para uma retirada militar coordenada dos Estados Unidos e do Irão no Médio-Oriente.

REDE VOLTAIRE | DAMASCO (SÍRIA) | 15 DE JANEIRO DE 2020


JPEG - 31.7 kb
Ao evocar a «crise dos reféns» de 1979, que opôs o Presidente Carter ao Irão, o Presidente Trump reforçou o orgulho dos Estados Unidos. Mas essa história não passou de uma apresentação tendenciosa do jornalista Walter Cronkrite. Ao referir-se a ela, ele lançava uma mensagem ao Irão que tinha sabido negociar, em seu proveito, um feliz desenlace com o Presidente Reagan.

Dois países divididos

As relações entre os EUA e o Irão são tanto mais difíceis de compreender quanto estes dois Estados estão profundamente divididos :
- Os Estados Unidos são governados pelo Presidente Donald Trump, mas todos os especialistas veem que a Administração federal se lhe opõe fortemente, não aplica as suas instruções e participa do processo parlamentar em curso para a sua destituição.
• Não se trata aqui de uma divisão política entre Republicanos e Democratas, uma vez que o Presidente Trump não é oriundo deste partido, mesmo tendo obtido a investidura, mas de uma clivagem cultural: a das três Guerras civis anglo-saxónicas (a guerra civil britânica, a independência norte-americana e a guerra da secessão americana). Hoje, ela opõe a cultura dos rednecks, herdeiros da «conquista do Oeste», e a dos puritanos, herdeiros dos «Pais Peregrinos» do Mayflower [1].
- Existem dois poderes concorrentes no Irão: de um lado, o Governo do Xeque Hassan Rohani e, do outro, o Guia da Revolução, o Aiatola Ali Khamenei. Contrariamente ao que afirmam os média (mídia-br) ocidentais, não é este ou aquele grupo que paralisa o país, mas, sim a luta de morte que estes dois grupos estão travando um contra o outro.
• O Presidente Rohani representa os interesses da burguesia de Teerão e Isfahan, comerciantes voltados para o comércio internacional e duramente atingidos pelas sanções dos EUA. O Xeque Rohani é um amigo de longa data do "Estado Profundo" dos EUA: ele foi o primeiro contacto iraniano da Administração Reagan e de Israel durante o escândalo Irão-Contras, em 1985. Foi ele que apresentou Hachemi Rafsanjani aos homens de Oliver North, permitindo-lhe comprar armas, tornar-se o Comandante-chefe dos exércitos e acessoriamente o homem mais rico do país, depois Presidente da República Islâmica. O Xeque Rohani foi escolhido pela Administração Obama e por Ali-Akbar Velayati durante as negociações secretas de Omã, em 2013, para acabar com o nacionalismo laico do Presidente Mahmud Ahmadinejad e restabelecer as relações entre os dois países.
• Pelo contrário, o Guia da Revolução é uma função criada pelo Imã Rouhollah Khomeini no modelo do sábio da República de Platão —não há nada de muçulmano nisso—. O Aiatola Khamenei é suposto garantir que as decisões políticas não violem os princípios do Islão e os da Revolução anti-imperialista de 1978. É ele quem dirige a milícia dos Guardas da Revolução, da qual o General Qassem Soleimani fazia parte. Dispõe de um orçamento extremamente variável segundo as flutuações imprevistas das receitas petrolíferas. É pois ele —e não o governo Rohani— que é o mais afectado pelas sanções dos EUA. No decurso dos últimos anos, tentou impor-se como referência no seio do Islão em geral, convidando para Teerão todos os chefes religiosos e políticos do mundo muçulmano, aqui incluídos os seus mais ferozes adversários.
A maior parte das decisões tomadas por um ou outro dos poderes, tanto nos EUA como no Irão, é imediatamente contrariada pelos seus adversários internos.
Uma outra dificuldade para compreender o que se passa provem das mentiras que estas duas potências acumularam durante anos, das quais várias ainda estão muito presentes. Citaremos apenas aquelas que foram evocadas nos últimos dias:
- Jamais houve qualquer crise de reféns, em 1979. O pessoal diplomático dos EUA que foi feito prisioneiro foi preso em flagrante delito de espionagem. A embaixada em Teerão era o quartel-general da CIA para todo o Médio-Oriente. Não foram os Iranianos, mas, sim os Estados Unidos quem violou as obrigações do estatuto diplomático. Dois Marines da guarda da embaixada denunciaram as actuações da CIA, o material de espionagem ainda é visível nas instalações da embaixada e os documentos ultra-secretos apreendidos no local foram publicados em mais de 80 volumes.
- A República Islâmica do Irão nunca reconheceu o Estado de Israel, mas nunca teve como objectivo destruir a população judaica. Ela defende o princípio de «um homem, um voto», enquanto continua a considerar que isso também se aplica a todos os Palestinianos que emigraram e adquiriram uma nacionalidade estrangeira. Ela apresentou, em 2019, um projecto de referendo de autodeterminação na Palestina geográfica (quer dizer, tanto em Israel como na Palestina política) ao Conselho de Segurança da ONU.
- O Irão e Israel não são inimigos irredutíveis uma vez que exploram em conjunto o pipeline Eilat-Ashkelon, propriedade comum dos dois Estados [2]
- O Irão cessou toda a pesquisa sobre a arma atómica, em 1988, quando o Imã Khomeini declarou as armas de destruição maciça incompatíveis com sua visão do Islão. Os documentos roubados por Israel, e revelados pelo seu Primeiro-ministro Benjamin Netanyahu em 2018, atestam que as pesquisas subsequentes diziam apenas respeito a um gerador de ondas de choque (peça que entra no fabrico de um detonador de bomba atómica) [3]. Não se trata de uma peça "nuclear", mas, sim mecânica podendo servir para outros fins.
JPEG - 38.9 kb
Visto do Ocidente, o Presidente Trump acaba de juntar Qassem Soleimani ao seu quadro de caça de terroristas assassinados. Mas visto do Médio-Oriente, ele acaba de mudar de campo : depois de ter abatido o Califa Abu Bakr al-Baghdadi, matou o principal inimigo do Daesh (E.I.), Qassem Soleimani.

O assassinato do herói

Partindo destas premissas, examinemos o assassinato do General Qassem Soleimani e a crise que ele provocou.
O General Soleimani era um soldado de excepção. Ele iniciou a sua carreira durante a guerra imposta pelo Iraque (1980-88). As suas Forças Especiais, a secção Al-Quods (ou seja, Jerusalém em árabe e em persa), socorreram todas as populações do Médio-Oriente vítimas do imperialismo. Esteve, por exemplo, ao lado do sayyed libanês Hassan Nasrallah e do General sírio Hassan Turkmani em Beirute, enfrentando o ataque israelita em 2006. Ele fazia a distinção entre o imperialismo e os Estados Unidos e negociou inúmeras vezes com Washington, propondo mesmo alianças detalhadas, como por exemplo em 2001 com o Presidente George Bush Jr. contra os Talibã afegãos. No entanto, a partir de Maio de 2018, ele apenas foi autorizado a bater-se ao lado das comunidades xiitas. Violando o cessar-fogo da guerra de 1973, lançou ataques contra Israel a partir do território sírio, colocando Damasco no maior embaraço.
O Presidente Trump tinha, é certo, compreendido o papel militar que ele desempenhava às ordens do Aiatola Khamenei, mas não o símbolo em que se tinha tornado e a admiração de que gozava em quase todas as academias militares do mundo. Ele assumiu um risco major ao autorizar a sua eliminação e estropiou a sua própria reputação no Médio-Oriente. De facto, enquanto Presidente norte-americano não havia parado de se opor ao apoio do seu país à Alcaida e ao Daesh (EI), tornou-se agora responsável pela morte de um homem que incarnou, em muitos teatros de operação, este combate sem tréguas. Não vale a pena perdermos tempo quanto ao carácter ilegal deste assassinato. O que, aliás, não acrescenta muito mais quanto ao comportamento dos Estados Unidos desde a sua criação.
O assassinato de Qassem Suleimani seguiu-se à designação por Washington dos Guardas da Revolução como uma «organização terrorista» (sic). Os Iranianos partilham o forte sentimento de constituir um Povo, uma Civilização. A sua morte reunificou, portanto, provisoriamente os dois Poderes políticos numa única emoção. Milhões de pessoas saíram às ruas durante os seus cortejos fúnebres.
Quando ficou claro que esta morte não desencadearia a Terceira Guerra Mundial, e apenas nesse momento, Israel reivindicou via CBS ter confirmado ao Pentágono a localização do General Soleimani e via o New York Times ter sido informado da operação, com antecedência. Informações inverificáveis.
JPEG - 73.7 kb

Não haverá confronto

Todos os média ocidentais expuseram os planos de resposta iranianos em vigor há vários anos. Mas não foi a partir desses planos que o Presidente Rohani ou o Guia Khamenei reflectiram. Os Iranianos não são crianças que se desafiam no pátio de uma escola. Eles formam uma Nação. Os dois chefes reagiram, pois, em função do superior interesse do seu país, tal como o concebem. Não se deve, portanto, atribuir importância às tonitruantes declarações apelando à vingança. Não haverá vingança iraniana do mesmo modo como não houve vingança do Hezbolla pelo assassínio ilegal por Israel de Imad Moughniyah, em 2008, em Damasco.
Para o Xeque Rohani, independentemente da morte do General Soleimani, é indispensável reconectar com Washington. Até agora, ele considerou que a Administração Obama fora o interlocutor que lhe permitira aceder ao Poder. Donald Trump não passava de um acidente de percurso citado para ser destituído desde o início da sua presidência (Russiagate e agora Ukrainegate). Assim, ele rejeitara os seus numerosos apelos à negociação. Ora, o Presidente Trump continua e poderá ficar por lá nos quatro próximos anos. Atingida pelas sanções ilegais, a economia iraniana está no fundo. A reacção de empatia internacional ao assassínio ilegal do General Soleimani permite-lhe, portanto, abordar estas negociações não numa posição de inferioridade, mas de força.
Para o Aiatola Khamenei, não apenas os Estados Unidos são predadores do Irão, desde há um século, mas Donald Trump não é um homem de palavra. Não que ele não tenha cumprido as suas promessas, mas porque não cumpriu as do seu predecessor. O Acordo dos 5 + 1 foi aprovado pelo Conselho de Segurança da ONU. O Irão considerava-o como uma lei gravada em mármore. Ora, Donald Trump rasgou-a, o que tinha perfeitamente o direito de fazer. A par deste acordo público, um outro secreto definia a repartição de influências no Médio-Oriente. Este segundo texto foi igualmente anulado pelo Presidente Trump e é este que ele pretende renegociar bilateralmente.
Rapidamente o Irão anunciou não respeitar mais o Acordo dos 5 + 1, enquanto os deputados xiitas iraquianos exigiram a partida das tropas norte-americanas do seu país. Contrariamente ao que julgaram entender os média ocidentais, estas duas decisões não foram subidas de parada, antes ofertas de paz. O Acordo dos 5 + 1 já não existe desde a retirada dos EUA. O Irão reconhece-o, depois de ter em vão tentado salvá-lo. A saída das tropas dos EUA não apenas do Iraque, mas de todo o Médio-Oriente é um compromisso assumido por Donald Trump durante a sua campanha presidencial. Ele não a pode concretizar tendo em conta a oposição da sua Administração. O Irão alinha-se com ele.
As manifestações anti-iranianas no Líbano e no Iraque e contra o regime no Irão pararam de súbito.
O poderoso lóbi das petrolíferas dos EUA deram o seu apoio ao Presidente Trump pondo em causa a «Doutrina Carter». Em 1980, o Presidente Jimmy Carter afirmara que o petróleo do Golfo era indispensávcl para a economia dos EUA. Por conseguinte, o CentCom foi criado pelo seu sucessor e o Pentágono garantiu o acesso das empresas dos EUA ao petróleo do Golfo. Mas hoje em dia, os Estados Unidos são auto-suficientes em matéria de energia. Já não têm mais necessidade desse petróleo, nem, por conseguinte, de enviar as suas tropas para essa região. Para eles, o jogo mudou. Já não se trata de se apropriarem mais do petróleo árabe-persa, mas de controlar as trocas petrolíferas mundiais.
Os dirigentes políticos não souberam adaptar-se ao desenvolvimento dos meios de comunicação. Falam demais e muito rápido. Assumem posições e não sabem como voltar atrás. Tendo proferido inacreditáveis apelos à vingança, os Guardas da Revolução tinham que reagir. Mas responsáveis, não podiam piorar as coisas. Portanto, optaram por bombardear duas bases militares dos EUA no Iraque sem causar vítimas. Exactamente como a França, os Estados Unidos e o Reino Unido tinham proferido condenações da Síria por ter, pretensamente, utilizado armas químicas. Depois, por fim, bombardearam uma base militar vazia sem lá causar vítimas (embora tenham provocado um incêndio em redor da base que as causou).
O "Estado Profundo" dos EUA, que aconselhara mal o Presidente Trump, fez surgir uma voz no principal canal de televisão do Irão a apelar à morte do Presidente Trump. A voz prometeu US $ 80 milhões de dólares de recompensa. Agora, se o Presidente for assassinado, não será necessário realizar uma investigação, o Irão será considerado a priori como culpado. No entanto, quando o Imã Khomeini apelou à morte de Salman Rushdie não havia nenhuma recompensa. Esta maneira de actuar tem muito mais a ver com o Far West (o «Oeste Selavagem» da América-ndT).
Durante este período difícil, os Guardas da Revolução abateram por erro um avião comercial ucraniano que levantava (decolava-br) de Teerão. O embaixador do Reino Unido organizou, então, uma pequena manifestação exigindo a demissão do Aiatola Khamenei. Este episódio baralha as cartas e priva a milícia da sua vantagem enquanto vítima.
Escusado será dizer que os Estados Unidos não deixarão nada sem contrapartida. A sua retirada militar só se fará em coordenação com a retirada militar iraniana. O General Qassem Soleimani encarnava precisamente o avanço militar iraniano. É este duplo recuo que é actualmente negociado. Desde já, assistimos a um recuo dos EUA da Síria e do Iraque para o Kuwait. O episódio da carta enviada, depois anulada, do General William Sheely III anunciando a partida das tropas dos EUA do Iraque atesta que estas negociações estão realmente em curso.
Os princípios da paz podem ser estabelecidos desde já, mas ela não acontecerá a seguir.
- Durante o luto pelo General Soleimani, não é possível para o Irão admitir publicamente ter concluído um acordo com seu assassino.
- Um acordo só será válido se for aprovado pelo Iraque, pelo Líbano, pela Síria, pela Turquia e, claro, pela Rússia (apesar de estrebuchar bastante, o Reino Unido não tem meios para o fazer falhar). Será, portanto, de toda a conveniência encená-lo numa conferência regional.
Qassem Soleimani ficaria seguramente orgulhoso da sua existência, se a sua morte servisse para estabelecer a paz regional.
Tradução
Alva
***
[1] “Os Estados Unidos vão reformar-se, ou dilacerar-se?”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 26 de Outubro de 2016.
[2] “Israel e o Irão exploram conjuntamente o oleoduto Eilat-Ashkelon”, Tradução Alva, Rede Voltaire, 9 de Janeiro de 2018.
[3] "Shock Wave Generator for Iran’sNuclear Weapons Program:More than a Feasibility Study », David Albright and Olli Heinonen, FDD, May 7, 2019. (PDF - 4.3 Mo).
***

Thierry MeyssanIntelectual francês, presidente-fundador da Rede Voltaire e da conferência Axis for Peace. As suas análises sobre política externa publicam-se na imprensa árabe, latino-americana e russa. Última obra em francês: Sous nos yeux. Du 11-Septembre à Donald Trump. Outra obras : L’Effroyable imposture: Tome 2, Manipulations et désinformations (ed. JP Bertrand, 2007). Última obra publicada em Castelhano (espanhol): La gran impostura II. Manipulación y desinformación en los medios de comunicación (Monte Ávila Editores, 2008).