Sergio Saraiva: Brasil, um gigante sonâmbulo marchando entre o sonho, a consciência de si e o pesadelo.

Um relato feito a quente de como vi as manifestações de Junho de 2013.

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22 de junho de 2013 – não pretendia postar nada sobre a onda de protestos que varreu o Brasil nas duas últimas semanas, antes da semana que vem.
A próxima semana é decisiva para saber que rumos tomarão os movimentos reivindicatórios. Com a saída do MPL, inteligente, aliás, demonstrando que a moçada é rápida na leitura da situação, o movimento será o que seus novos líderes puderem colocar de povo na rua.
A pulverização parece ser o caminho natural, e o esvaziamento uma realidade bem palpável.
Mas, até que isso ocorra, muita coisa pode acontecer para o bem e para o mal.
Para o mal, o caminho é claro. O vandalismo da turma da extrema direita associada à criminalidade comum. Nesse sentido a mensagem da presidente Dilma foi clara: não deverão ser confundidos com manifestantes. Ao assumir essa posição, a presidente libera os governadores para reprimi-los. Foi uma postura corajosa.
Para o bem, seria os grupos sociais perceberem que podem soltar as suas vozes que serão ouvidos.  Mas com muitas causas em jogo ao mesmo tempo e sem um objetivo claramente definido e agregador, como foi a redução do preço da passagem, a chance de se fazer ouvir é pequena.
Novo risco, o de pequenos grupos com uma causa justa, porém, de pouco impacto no imaginário popular, decidirem por ações midiáticas e extremadas, serem confundidos com os vândalos e gerarem na população o desejo de uma “volta à normalidade” e as consequências disso.
Há tantas outras possibilidades menores, tal como a direita conseguir manter o povo mobilizado contra “tudo isso que está aí” e impor o grito de “que se vão todos”.
Enfim, é por isso que eu preferia e ainda prefiro esperar.
Mas algum retrospecto já pode ser feito, ainda que baseado nas minhas memória e leitura.
1 – 11 de junho de 2013, terça da semana passada– um grupo de estudantes mobilizados pela internet pertencente a um ainda desconhecido MPL – movimento pelo passe livre, após vários protestos em anos anteriores sem muito sucesso, consegue finalmente reunir um número significativo de manifestantes – uns 5 mil. Número suficiente para parar a Avenida Paulista, aqui em São Paulo.
A polícia os reprime, mas havia subestimado a capacidade de organização e disposição de luta desse grupo.  Os jornais do dia seguinte trazem fotos de policiais feridos, com a cabeça sangrando, derrubados das suas motocicletas e pisoteados.
Os jornais são rápidos em qualificar os manifestantes, “grupelho de baderneiros”, e pedir mais repressão.
Voz solitária, Janio de Freitas critica a violência policial contra os estudantes e contra o direito de manifestação. Comento num post: ele ainda não viu violência; terça os policiais apanharam, na quinta vão bater.
2 – quinta-feira – como esperado, nova manifestação, agora maior em número. A “vitória” contra polícia agregou novos participantes. Entra em cena a Polícia de Choque e o que se assiste não pode ser classificado como repressão policial, foi mais um caso de vingança policial, como foi comentado por alguém com muita propriedade.
Aqui há um ponto de viragem, o primeiro. A truculência da polícia é indiscriminada e não poupa os jornalistas que cobriam o evento. Vários são feridos e agora há um rosto para simbolizar o que aconteceu. A jornalista da Folha, loirinha, franzina e com o supercílio dilacerado por uma bala de borracha.
Feridos os seus, a imprensa muda de posição, acua o governador e a polícia. A manifestação é um direito democrático. Sempre foi, aliás.
E então, o “grupelho de baderneiros” se transmuta em “defensores da liberdade”, nas folhas dos jornais e telas de TV. Vemos os rostos deles e ouvimos sua voz. São os nossos filhos.
3 – 17 de junho de 2013, segunda-feira desta semana. Um gigantesco grupo de indignados sai às ruas. A polícia não pode usar seu método padrão de “contenção de distúrbios”.  Uma polifonia de muitas causas é ouvida. Não são mais vinte centavos, é “tudo isso que está aí”.
E aqui ocorre outro ponto de viragem do movimento.  A Globo é hostilizada, seus jornalistas são impedidos pelos manifestantes de cobrir alguns protestos e o cubo com o logotipo da emissora sai dos microfones, por medida de segurança.
A partir daí, tudo muda e a poderosa emissora, dona de mais de 50% da mídia deste país, abre a caixa de ferramentas. É hora de mudar o rumo dessa prosa. O povo comum é convocado a sair às ruas para participar da “grande festa da democracia” e atende à convocação. Algo como um “carnaval cívico” se instala pelo país. Protesto e festa, indignação e euforia, pelo país a fora.
Está estabelecido o efeito diluição. Todas as causas são causa nenhuma ou aquela que eu quiser que seja. Grande manobra, há que reconhecer a competência e poder da Globo.
Quarta-feira – Haddad reduz o valor passagem, e Alckmin também. Mas Alckmin já não está mais nos noticiários, Dilma foi colocada no olho do furacão.
Vitória do movimento MPL. Quem notou isso?
4 – 20 de junho de 2013, quinta-feira – o povo está nas ruas comemorando. Ganhamos mais uma final. Bandeiras do Brasil sobre os ombros e o indefectível canto: “Eu sou brasileiro, com muito orgulho …”
Brasília tomada.  O movimento subvertido.
As bandeiras dos partidos de esquerda, que no início do movimento eram evitadas para não permitir uma mal intencionada interpretação dos meios de comunicação, estão agora proibidas pelos novos donos da rua – a classe média reacionária.
Oportunistas postam vídeos na internet festejando a grande vitória popular; nenhum deles esteve nas passeatas, obviamente.
Pelas ruas, alegria popular, o grito inútil de “sem violência”, o grito interesseiro de “sem partido” e violência e vandalismo.
O MPL se retira com um copo meio cheio e meio vazio. É hora de recolhimento para contabilizar perdas e ganhos.
Nas ruas, abandonado à própria sorte, um gigante sonâmbulo marchando entre o sonho, a consciência de si e o pesadelo.
Um milhão e meio de pessoas que por algum motivo julgaram importante se juntarem em multidão; um fantástico capital político a espera de quem ponha a coroa na própria cabeça, antes que um aventureiro o faça.