Como a privatização de duas estatais coloca em risco a segurança dos seus dados
Iniciativa privada pode não garantir segurança de dados sigilosos armazenados por Serpro e Dataprev
Estatais são responsáveis por número expressivo de informações; especialistas avaliam o risco de venda, vazamento e boicote desses dados / Julia Joppien/Unsplash |
Na lista de estatais que o governo Bolsonaro inseriu no chamado Programa de Parcerias de Investimento (PPI) e que podem ser privatizadas estão duas das maiores empresas de tecnologia do país, o Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro) e a Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência (Dataprev).
São empresas lucrativas e líderes no setor de Tecnologia da Informação (TI). No ano de 2018, por exemplo, o Serpro teve lucro de R$ 457 milhões e superou em vendas a gigantes como Cisco, Google, Sap e Oracle, consolidando-se como a terceira maior do setor no país, atrás somente da HP e da IBM.
Com crescimento de 273% em relação a 2017, a estatal foi considerada a melhor do setor pelo prêmio "Melhores e Maiores 2019", realizado desde 1974 pela revista Exame e considerado o mais importante do mercado brasileiro. A Dataprev é segunda colocada do ranking.
Serpro e Dataprev também foram consideradas as empresas que mais geraram riqueza por empregado. Em 2018, cada trabalhador do Sepro gerou US$ 104,6 mil, enquanto na Dataprev cada empregado gerou US$ 85,6 mil.
O que fazem
Presentes na vida de praticamente todas as brasileiras e brasileiros, mas pouco conhecidas da população, essas estatais são responsáveis pelo armazenamento e segurança de um número considerável de dados e informações de diversas áreas.
Sob a guarda do Serpro, estão por exemplo, todas as informações sobre as declarações de imposto de renda de pessoas físicas e jurídicas, dados de notas fiscais de microempreendedores individuais, pequenas, médias e grandes empresas, informações sobre o comércio exterior, toda a execução orçamentaria do governo, o controle da arrecadação e repasses para estados e municípios, dados sobre a gestão de trânsito – emplacamento de veículos, informações sobre condutores e histórico de multas - e até mesmo os detalhes sobre o banco de doação de órgãos no país.
A Dataprev processa mensalmente cerca de 35 milhões de benefícios previdenciários, cuida do seguro desemprego, do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados, do Cadastro Nacional de Informações Sociais, do Sistema de Benefícios do INSS, da Intermediação de Mão de Obra e do Cadastro Brasileiro de Ocupação.
O novo petróleo
A possibilidade de privatização de tudo isso, assusta quem atua no setor. O principal temor diz respeito à soberania dos dados dos brasileiros. Sob o controle de empresas privadas haveria grande risco de que interesses comerciais colocassem a segurança dessas informações em segundo plano. Especialistas avaliam também o risco de venda, vazamento e boicote desses dados.
O analista da Dataprev, Ugo Cavalcanti, diz ser possível afirma que o risco existe porque já há casos de problemas dessa natureza envolvendo empresas privadas em diversos países, inclusive no Brasil. Ele lembra por exemplo que o uso ilegal de dados vem influenciando até mesmo processos eleitorais nos últimos anos. “Esses dados podem sim ser manipulados, trabalhados e fornecidos para empresas que têm muito a ganhar com essas informações. São seguradoras, bancos, planos de saúde, financeiras, todas elas interessadas nesses dados. O risco existe e é altíssimo”, comenta.
Como elas visam o lucro elas dizem 'se você não me pagar eu paro meu serviço'
Entre especialistas de TI não é raro que se trate os dados como o novo petróleo pelo valor que eles têm. Atualmente, as tecnologias usadas para análise dessas informações exploram o conhecimento por trás delas. É esse conhecimento que é valioso. Por meio desse processo é possível traçar perfis, direcionar discursos e influenciar decisões. Como a intenção principal de uma empresa privada é o lucro, a própria prestação do serviço, poderia ser prejudicada, caso os ganhos não fossem satisfatórios.
“As empresas privadas tendem a elevar os seus preços, sabendo que o estado está na mão delas, como se fosse uma faca no pescoço do estado. Como elas visam o lucro elas dizem 'se você não me pagar eu paro meu serviço' e é aí que está o risco de deixar esses milhões de benefícios com uma empresa privada que pode, a qualquer momento, querer ganhar mais do que deve e interromper o serviço”, explica Cavalcanti.
Não há histórico de invasão
Para garantir a segurança dos dados estratégicos para o país, as duas empresas públicas de tecnologia da informação contam com sistemas de controle criteriosos e certificações que garantem capacidade e disponibilidade de dados. Ou seja, se o sistema cai, uma nova estrutura vai continuar provendo os serviços praticamente sem interrupção.
Os dados são armazenados em centros de operações que ficam em três diferentes cidades e que contam com vigilância constante. Todos os computadores estão em salas blindadas, com monitoramento humano e eletrônico 24 horas e controle rígido de acesso. O analista do Serpro e representante da Organização dos Trabalhadores da Empresa no Rio Grande do Sul, Leonardo Nichelatti afirma que não há na empresa histórico de invasão.
“As máquinas ficam dentro de uma sala cofre, dada a sensibilidade dos dados. Ou seja, resiste a incêndio, resiste a terremoto, resiste a ataque a bomba e acesso a esses dados é somente via infraestrutura própria do Serpro. Todo acesso é monitorado e nós temos um grupo de resposta a ataques que é referência no Brasil. Você não encontrar noticia de hacker que invadiu, por exemplo, o sistema do importo de renda no Brasil.”
O governo afirma que qualquer processo relativo aos dados da população brasileira será feito respeitando a Lei Geral de Proteção. Mas Leonardo ressalta que a norma ainda não está em vigor e que as multas previstas não são significativas para empresas que valem bilhões de dólares.
Privatização em curso
Na esfera política, representantes dos trabalhadores afirmam que, apesar de não noticiado, o processo de privatização já começou.
Vera Guasso, secretaria geral do Sindicato dos Trabalhadores em Processamento de Dados do Rio Grande do Sul e integrante da Coordenação da Frente Nacional dos Trabalhadores em Informática relata que os indicados pelo governo para levar o processo a frente não conhecem a realidade das empresas e denuncia que alguns têm ligação com empresas privadas de TI.
“Nós estamos falando de dados da população desde o nascimento, todas as questões de saúde, quanto elas ganham, no que trabalharam, seus CPFs, quanto pagaram de imposto de renda, se elas tiveram alguma doença ao longo da vida, toda essa gama de informações está dentro do Serpro e do Dataprev. São informações muito delicadas. Essas informações em poder privado, elas podem sim cair em lugares indevidos.”
Vera critica o que chama de enxugamento das duas estatais, o que considera uma preparação para a privatização. No caso do Sepro, por exemplo, já há informações sobre fechamentos de mais de vinte escritórios e a intenção de um Plano de Demissão Voluntária.
A reportagem do Brasil de Fato entrou em contato com as duas estatais. Questionada sobre as garantias de segurança dos dados dos brasileiros, a assessoria da Dataprev afirmou que o tema privatização está sendo tratado pelo Ministério da Economia e Casa Civil da Presidência da República.
Já a assessoria do Sepro informou que o órgão passa por um processo de transformação e de reestruturação para aumentar a eficiência operacional e garantir a transformação digital no país. Segundo nota enviada à reportagem, vários estudos estão em andamento, seguindo as diretrizes de governo, mas ainda não há uma definição de quais ações e de quando serão implementadas.
Edição: Rodrigo Chagas