Sergio Saraiva: O Ur-Fascismo brasileiro e Bolsonaro como sua consequência
Por Sergio Saraiva - no blog Concertos Gerais - novembro 15, 2019
Nada é mais poderoso que uma ideia cujo tempo chegou. E se essa ideia e seu tempo forem o fascismo?
Esse parece ser momento atual vivido pelo Brasil – e em grande parte pelo mundo, um retrocesso ao fascismo.
Nosso momento de fascismo, porém, não começa agora – antes, deveríamos marcá-lo em 2013 – a ressaca e a inflexão da nossa socialdemocracia – e atinge seu ápice com a chegada da família Bolsonaro ao poder.
Mas não nos deixemos iludir: Bolsonaro é consequência e não inspiração ou causa do Ur -Fascismo brasileiro.
Ur Fascismo e o momento brasileiro.
”Ur-Fascismo”, é uma palestra que o filósofo Umberto Eco proferiu na Universidade Columbia, em abril de 1995. Já se vai há 25 anos. E relata acontecimentos vividos por Eco na Itália fascista de Benito Mussolini na década de 40 do século passado.
Mas como o fascismo é eterno, descreve a perfeição o Brasil de Bolsonaro de 2019.
Porém, antes, talvez devamos nos perguntar o que motiva o renascimento desse fascismo?
A explicação de Eco ajusta-se como uma luva ao momento brasileiro pós-Lula, ou antes, anti-Lula.
Explica Eco:
“O Ur-Fascismo provém da frustração individual ou social. O que explica por que uma das características dos fascismos históricos tem sido o apelo às classes médias frustradas, desvalorizadas por alguma crise econômica ou humilhação política, assustadas pela pressão dos grupos sociais subalternos”.
Não é preciso muito esforço de memória para lembrar de como nossas classes-médias reagiram em relação a melhoria da condição social dos pobres na era Lula. Dividir com eles espaço em aeroportos se tornou ofensivo e em shopping center chegou a virar caso de polícia.
Continua Eco:
“Em nosso tempo, em que os velhos “proletários” estão se transformando em pequena burguesia (e o lumpesinato se auto exclui da cena política), o fascismo encontrará nessa nova maioria seu auditório”.
E os que ascenderam com Lula tampouco deixaram de se aburguesar. Como explicou Mano Brown em uma entrevista ao Le Monde: “Lula deu oportunidade para que as pessoas tivessem coisas; agora essas pessoas querem a polícia para proteger as coisas que elas têm”.
Ou ainda:
“A primeira característica de um Ur-Fascismo é o culto da tradição. O tradicionalismo implica a recusa da modernidade. O iluminismo, a idade da Razão, é visto como o início da depravação moderna. Nesse sentido, o Ur-Fascismo pode ser definido como “irracionalismo”. Como consequência, não pode existir avanço do saber. A verdade já foi anunciada de uma vez por todas, e só podemos continuar a interpretar sua obscura mensagem – contida em alguma “verdade primitiva”.
Em um tempo de completa transformação como o atual, onde o que se chama de 4ª revolução industrial ou “economia 4.0” está transformando o mundo e as relações sociais e econômicas em algo que não sabemos o que será – mas não será o que conhecemos, até aqui – o apelo ao tradicionalismo é antes de mais nada um refúgio. E tome-se “menino veste azul e menina veste rosa”, “tradicional família brasileira”, “Deus e Pátria” e terraplanismo.
E ainda nesse campo, vejamos como Eco identifica no fascismo muitas das atitudes de Bolsonaro, dos seus filhos e dos seus seguidores:
“O Ur-Fascista transfere sua vontade de poder para questões sexuais. Esta é a origem do machismo (que implica desdém pelas mulheres e uma condenação intolerante de hábitos sexuais não-conformistas, da castidade à homossexualidade). Como o sexo também é um jogo difícil de jogar, o herói Ur-Fascista joga com as armas, que são seu Ersatz fálico: seus jogos de guerra são devidos a uma invidia penis permanente”.
Se Umberto Eco tentasse descrever o momento brasileiro, escreveria o mesmo.
O momento do Brasil atual é o do fascismo.
Mas Umberto Eco também nos dá o ferramental lógico que nos permite entender como alguém medíocre e grosseirão como Bolsonaro pode ser apoiado por um leque tão diverso da sociedade brasileira – desde o semianalfabeto neopentecostal ao procurador do Ministério Público Federal.
A correia de transmissão do Ur Fascismo e os apoiadores de Bolsonaro
Sim, Bolsonaro tem apoio, e muito. Isso é algo que as força progressistas que lhe fazem oposição devem levar em consideração. Mas não, não por qualquer talento especial de Bolsonaro – que ele não os tem. Bolsonaro é só um ícone para personificar o “Ur-Fascismo brasileiro”.
Acompanhemos o raciocínio de Eco:
1- 2 – 3 – 4 – ou – abc bcd cde def
“Suponhamos que exista uma série de grupos políticos.
O grupo 1 é caracterizado pelos aspectos “abc”, o grupo 2, pelos aspectos “bcd” e assim por diante.
2 (bcd) é semelhante a 1 (abc) na medida em que têm dois aspectos em comum. 3 (cde) é semelhante a 2 (bcd) e é semelhante a 1 (abc) – têm em comum o aspecto “c”.
O caso mais curioso é dado pelo 4 (def), obviamente semelhante a 3 (cde) e a 2 (bcd), mas sem nenhuma característica em comum com 1 (abc). Contudo, em virtude da ininterrupta série de decrescentes similaridades entre 1 e 4, permanece, por uma espécie de transitoriedade ilusória, um ar de família entre 4 e 1.
O termo “fascismo” adapta-se a tudo porque é possível eliminar de um regime fascista um ou mais aspectos, e ele continuará sempre a ser reconhecido como fascista”.
Genial.
Os apoiadores de Bolsonaro
Agora, vamos utilizar essa teoria – 1 – 2 – 3 – 4 – ou – abc bcd cde def – para explicarmos o Ur-Fascismo brasileiro.
Para tanto, vamos nos valer do trabalho de Isabela Oliveira Kalil – doutora em antropologia pela USP e professora da Fundação Escola de Sociologia e Política e da PUC. Em suas pesquisas, ela identificou 16 grupos que formam o bolsonarismo.
O estudo foi – ou seria – publicado em uma edição da revista Veja que, contudo, não consegui localizar.
A saber:
Meritocratas – pessoas de classe média alta com elevado nível de escolarização. São empresários e profissionais liberais (médicos, advogados, engenheiros) e gostam de enfatizar que “venceram pelo mérito”. Têm um acentuado sentimento antipetista e clareza do que vem a ser um Estado liberal. Afirmam que as discussões em relação a gênero e sexualidade são secundárias.
Pessoas do bem – brasileiros de classe-média com mais de 35 anos e que aparentemente defendem as instituições de Estado. Acreditam que a Polícia Federal poderia substituir o Supremo Tribunal Federal e uma intervenção militar seria bem-vinda. São antipetista e apontam a corrupção e a impunidade como os maiores problemas do país.
Militares e ex-militares – homens e mulheres que têm ou tiveram carreiras dentro das Forças Armadas ou corporações policiais. Vinculam a ascensão das facções criminosas e a escalada da criminalidade ao sucateamento das instituições e à negligência dos governos de esquerda com a segurança pública.
Monarquistas – desprezam ideias à esquerda. Não reconhecem a proclamação da República, por não ter tido apoio popular. Defendem a divisão do poder entre o chefe de Estado, com o monarca da linhagem Orleans e Bragança, e o chefe de governo eleito. Apoiam Bolsonaro pelo discurso pró-militar.
Homes viris – defendem a ideia de que o cidadão deve ter o direito de fazer justiça com as próprias mãos. Formam um grupo majoritariamente jovem com idades entre 20 e 35 anos. Oriundo de diferentes classes sociais. Veem no porte de armas uma solução para a violência urbana – identificada como o maior dos problemas sociais.
Fiéis religiosos – fiéis de todas as faixas etárias que defendem a “família tradicional”- pai, mãe e filhos. Acreditam que esse modelo de família está ameaçado. Atribuem à esquerda – principalmente ao PT – o motivo da inversão de “valores” no país em favor do que chamam de “ditadura gayzista”.
Líderes religiosos – são padres, pastores e cantores evangélicos. Figuras que exercem forte influência doutrinária. Arautos do que é considerado formas de conduta adequadas e integras. Repudiam o que chamam de “ideologia de gênero” e o “kit gay”. São críticos do feminismo, principalmente no que diz respeito ao aborto.
Femininas e “bolsogatas” – mulheres de 20 a 30 anos de classe-média alta ou classe alta. São independentes financeiramente e contra a “vitimização”. Usam o termo “feminina” em oposição à “feminista”. Repudiam o assédio e violência e se alinham ao discurso anticorrupção.
Etnias de direita – pessoas negras, indígenas, orientais e imigrantes. Acreditam que os governos de esquerda fragmentam a “unidade nacional” e que Bolsonaro poderia “unificar” o país com base na ideia de que “o Brasil é um só”. Defendem o fim das cotas em alguns casos e criticam o que consideram “vitimismo”.
Homossexuais conservadores – grupo essencialmente masculino. Não são uma grande base de apoio de Bolsonaro, embora sejam essenciais para afastar o discurso da homofobia. Opõem –se ao discurso LGBT e acham que temas como corrupção e combate à violência se sobrepõem aos seus direitos.
Periféricos de direita – são oriundos das classes sociais mais baixas e defensores do “Estado mínimo”. Incluem profissionais com carteira assinada, autônomos, pequenos empreendedores, desempregado e trabalhadores informais. Têm um discurso de revolta contra a violência e a impunidade
Mães de direita – mulheres de 30 a 50 anos de classe-média baixa, com filhos em idade escolar. Afirmam não ter preconceito de gênero nem ser contra a união de pessoas do mesmo sexo, mas acham que as crianças devem ser “protegidas” dessa realidade. Temem a “doutrinação marxista” na educação.
Estudantes pela liberdade – jovens universitários ou estudantes do ensino médio. Eles se veem privados da participação em grêmios e centros acadêmicos em razão de seus posicionamentos políticos. Criticam políticas afirmativas e vislumbram na “doutrina marxista” uma grande ameaça à educação.
Nerds, gamers, hackers e haters – grupo também majoritariamente masculino, formado por jovens com idades entre 16 e 34 anos. Foram os principais responsáveis pela construção da imagem do “mito”. Agem geralmente de forma organizada e costumam fazer campanhas de assédio on-line contra perfis progressistas, feministas, de lésbicas e gays.
Influenciadores digitais – liberais e conservadores. Produzem conteúdo para as redes sociais. Alguns se lançaram candidatos e foram eleitos. Não se veem inteiramente contemplados por Bolsonaro, seja política, seja moral ou economicamente, mas acreditam que, no momento, ele representa a melhor alternativa.
Isentos – normalmente expressão suas opiniões políticas apenas em círculos mais restritos de amigos ou em reuniões familiares. Tem forte sentimento antipetista, anticorrupção e antissistema. A defesa de Bolsonaro é circunstancial por significar a “saída do PT”. É o grupo que tem apresentado as maiores defecções.
Todos esses grupos, minorias isoladamente, encontraram entre si e em Bolsonaro algum ponto em comum que lhes deu um sentimento de união. O antipetismo e antilulismo os maiores deles.
Quousque tandem abutere Catilina patientia nostra
Até quando viveremos sob a égide desse neofascismo ou Ur-Fascimo?
Pelo tempo em que ele for uma ideia força. Mas esse tempo deve ser breve.
Primeiro, porque o fascismo é antes de mais nada o momento dos medíocres. Não trará as soluções esperadas. Principalmente em relação aos interesses tão variados, quando não antagônicos, dos grupos que formam o bolsonarismo. O fascismo quando no poder é seu principal inimigo por si próprio.
Segundo, porque a revolução tecnológica em curso não pede autorização, ela simplesmente ocorre. E, se Marx estiver certo, ao mudar a infraestrutura, a superestrutura se altera como consequência. Alguém vê Bolsonaro ou o bolsonarismo como condutores de futuro?
Por fim, Maiakovski: “o mar da história é agitado”.