Nassif: Xadrez da privatização do Serpro e Dataprev

Por Luis Nassif - no GGN - 10/09/2019

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Em dois artigos, procurei mostrar o comércio de bancos de dados que se criou no país.
Vamos, primeiro, entender o modelo de negócios das bigdatas.

Peça 1 – o modelo de negócio

Uma base de dados trabalhada, tem as seguintes aplicações comerciais:
Marketing – juntando várias bases de dados, é possível identificar hábitos de consumo. De interesse do varejo.
Proteção ao crédito – montagem de cadastro positivo ou negativo, de amplo interesse de empresas em geral.
Estratégias políticas – identificar tendências de grupos homogêneos e testar hipóteses de teses políticas.
Segurança nacional – se a falta de controle sobre os dados pessoais, nas redes sociais, colocou sob risco a democracia americana, quais os riscos de se ter o controle das principais bases de dados públicas em mãos de grupos privados?

Peça 2 – os negócios nebulosos

Há pouca informação e transparência sobre o valor das bases de dados, em um cenário de bigdatas. Essa falta de transparência tem permitido dois tipos de jogadas.
Uma delas, a doação de bancos de dados públicos para empresas privadas, como ocorreu com o Cadin (Cadastro de Inadimplentes) do estado de São Paulo, doado pelo então governador José Serra à Serasa-Experian. Pouco tempo depois a Experian adquiriu de Verônica Serra um site de email marketing por R$ 120 milhões, contra preço de mercado de, no máximo, R$ 30 milhões.
Outra forma, é a inversão da doação. A empresa – no caso a Neoway – recebe a base de dados de todos os funcionários da Prefeitura de São Paulo. Irá trabalhar a base, que será monetizada para outros clientes. Mas, no contrato, esse trabalho na base de dados é caracterizado como doação da empresa à Prefeitura.

Peça 3 – as implicações jurídicas e políticas

O fator Cambridge Analytics já revelou o caráter corrosivo do uso maciço de bases de dados. E mencionava especificamente bases de dados privadas, como Facebook e Twitter.
Politicamente, o uso privado de bases de dados públicas traz riscos ainda maiores. De um lado, pode ajudar nos trabalhos de identificar fraudes contra o setor público. Mas também poderá ser utilizado como filtro político-ideológico para monitorar funcionários públicos. Ou o uso de dados fiscais em guerras comerciais.
O caso Dolly-Coca Cola é ilustrativo. A Dolly não é flor que se cheire. E o cerco a que foi submetido pela Secretaria da Fazenda de São Paulo, com sistemas da Neoway, pode ser considerado um feito fiscal. Mas a empresa acusou expressamente a Neoway de estar a serviço da arqui-inimiga Coca-Cola atuando como a Kroll – a superempresa americana de espionagem empresarial.
Pode ter sido denúncia vazia, mas em uma empresa com acesso a todos os dados fiscais de um governo, e trabalhando para clientes privados, há um claro conflito de interesses. E se essa empresa passasse a trabalhar para governos estrangeiros? Por aí se entende como o fator segurança nacional fica exposto, especialmente quando se fala em privatizar os dois maiores bancos de dados públicos: do Serpro e da Dataprev.

Peça 4 – as bases de dados privatizáveis

A Dataprev tem como principal cliente o Instituto Nacional de Seguro Social (INSS). São mais de 34,5 milhões de aposentados e pensionistas. Hoje em dia, já existe um amplo mercado informal, com o uso de dados pessoais por instituições que trabalham com crédito consignado. Além disso, é responsável pelos programas da rede de atendimento do INSS e do Sistema Nacional do Emprego, por todos os registros de nascimento e óbito.
Já o Serpro, além do sistema de interoperabilidade das diferentes redes públicas, processa dados do Imposto de Renda de Pessoas Físicas e Jurídicas, sobre CPF, Carteira de Motorista, importação e exportação, controle portuário, passaportes e repasses federais, registro de veículos roubados em todo o país, dados da Agência Brasileira de Inteligência, entre outros.
Ainda não existe legislação capaz de proteger a população contra vazamentos.

Peça 5 – os negócios obscuros

A Neoway se tornou uma empresa de mais de um bilhão de dólares explorando as zonas cinzentas do mercado de bancos de dados públicos. Montou um modelo de negócios com altas taxas de intermediação. E deixa por conta dos intermediários os negócios obscuros. Foi assim com o pagamento de propina na Petrobras, que a colocou no meio da Lava Jato.
A Neoway é ligada à LIDE, a empresa de eventos do governador João Dória Jr. Entrou na Prefeitura de São Paulo pelas mãos de Dória. Hoje em dia, é de copa e cozinha do prefeito Bruno Covas.
Não é a única empresa a atuar nesse mercado. Recentemente, a Estadão denunciou o controle do banco de dados do lixo de São Paulo pela empresa Green . Toda empresa que produz mais de 200 litros de lixo por dia e não tem direito à coleta domiciliar gratuita, é obrigada a se cadastrar e deve pagar pela retirada do material e sua designação. A Green, por sua vez, é dona da Greening Inovação e Sustentabilidade. O controle do banco de dados lhe deu uma vantagem central sobre os concorrentes, para oferecer serviços ambientais para as empresas.
Não apenas isso.
Hoje em dia, há duas pessoas chave no processo de privatização dos bancos de dados públicos.
O primeiro é Paulo Antonio Spencer Uebel, Secretário Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital . O outro é Caio Mário Paes de Andrade, presidente do Serpro.
O que ambos têm em comum?
Na condição de Secretário Municipal de Gestão da Prefeitura de São Paulo, Uebel foi quem assinou o contrato com a Neoway. É integrante da LIDE, do então prefeito João Dória Jr. E sócio da Webforce, fundo de investimento que investe em startups e empresas de tecnologia.
Caio Mário é um dos pioneiros da Internet. Participou das grandes jogadas da Telemar, no início da privatização, com compras e vendas milionárias de sites, incluindo o hpG, site de hospedagem, em um momento em que não havia clareza sobre a precipitação dos ativos. Também é sócio da Webforce.
Não é por outro motivo que a Neoway se tornou uma frequentadora assídua dos gabinetes do Ministério da Economia.

Peça 6 – o papel do MPF

Todo esse cenário deve chamar a atenção do Ministério Público e dos Tribunais de Conta. Mas não apenas isso. É função da Procuradoria Geral da República uma provocação ao Supremo Tribunal Federal para definir um mínimo de ordem e coordenação a esse mercado de bigdatas. Não apenas pelos negócios nebulosos que pode gerar, mas, também, pelos riscos que traz não apenas à privacidade dos cidadãos, mas à própria segurança nacional.
O controle das bases de dados públicas tornará  essas empresas muitas vezes mais letais do que Cambridge Analytics e similares, com implicações diretas na política.