Previdência: JN não informa. Faz assessoria de imprensa para bancos e governo; todos lucram, menos você

Previdência: JN não informa. Faz assessoria de imprensa para bancos e governo; todos lucram, menos você
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por Ângela Carrato e Eliara Santana*, especial para o Viomundo - 06/08/2019

O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, (DEM) quer aprovar, se possível ainda essa semana, em segundo turno, o projeto de Reforma da Previdência.
Para ele, quanto mais rápido a fatura estiver liquidada, melhor. Depois da Câmara, a reforma terá que ser votada, também, em dois turnos no Senado. A seu favor, o governo tem a liberação de emendas milionárias para os parlamentares, condicionadas a essa aprovação e o apoio irrestrito da mídia, Grupo Globo à frente.
Mesmo assim, a situação pode se complicar. Dentro das fileiras governistas são poucos os que ainda sustentam que a Reforma da Previdência resolverá todos os problemas do país, como foi vendido à população.
O “sucesso” dessa reforma agora começa a ser condicionado a outras medidas, como a Reforma Fiscal.
Some-se a isso que, para muitos governistas, pegou mal demais a declaração do presidente do banco Itaú, Cândido Bracher, que literalmente comemorou os altos índices de desemprego no Brasil (12%) por eles possibilitarem que os salários fiquem baixos.
Tudo isso acabou funcionando como combustível extra que promete esquentar os ânimos.
No próximo dia 13, os brasileiros voltam às ruas e o não à Reforma da Previdência estará presente, mesmo que a mídia corporativa brasileira continue fazendo o jogo dos banqueiros.
O caso mais emblemático é o do Jornal Nacional, principal telejornal da maior rede de televisão do país.
JN simplesmente abriu mão de fazer jornalismo optando por se transformar em uma espécie de assessoria de imprensa informal para os interesses do superministro da Economia, Paulo Guedes, e para o sistema financeiro nacional e internacional que o apoia.
Qualquer calouro de jornalismo sabe a diferença entre notícia, reportagem e assessoria de imprensa. Mas essa diferença é uma ilustre desconhecida para a maioria esmagadora da população.
A notícia se caracteriza por um texto informativo de interesse público, que narra algum fato recente ocorrido no país ou no mundo.
Toda notícia tem, no mínimo, dois lados: quem é a favor e quem é contra. A narração de uma notícia deve se pautar pela veracidade dos fatos e clareza da linguagem.
A reportagem, por sua vez, é marcada por uma estrutura textual maior e mais detalhada, citando-se fontes, entrevistas e dados.
Em comum, notícia e reportagem precisam responder, com a maior exatidão possível, seis perguntas fundamentais de cada acontecimento: o que, quem, onde, como, quando, por que.
Some-se a isso que, no universo informativo atual, uma dessas seis perguntas deveria merecer prioridade sobre as outras: por que. O essencial para qualquer pessoa é entender como determinado fato – uma ação do governo, de uma grande empresa ou da própria natureza – impacta a sua vida.
Assessoria de imprensa é uma estratégia de comunicação e divulgação, no âmbito das relações públicas e do marketing, seja para uma figura importante, um profissional, uma empresa ou governo. O pioneirismo na criação de assessoria de imprensa é dos estadunidenses, em 1829, no governo de Andrew Jackson.
Rapidamente a técnica se difundiu pelo mundo.
“NA MÃO DO CALANGO”
Nos dias atuais, o trabalho de uma assessoria de imprensa pode ser resumido em criar conteúdo positivo para o assessorado e repassá-lo a jornalistas de rádios, TVs, jornais, revistas, sites e outros formatos de mídia, a nível nacional ou internacional.
A partir daí, a bola está com o veículo, a quem cabe apurar se aquelas informações divulgadas correspondem à realidade. Se isso não ocorrer, a consequência é um noticiário deformado e riscos para a própria democracia.
Quando um telejornal, como o JN, “compra” a versão do ministro Paulo Guedes e do sistema financeiro e a divulga como sendo “a verdade”, está substituindo sua tarefa de informar pela atuação como assessoria de imprensa.
Na Europa e nos Estados Unidos, a postura adotada pelo JN na Reforma da Previdência já teria sido motivo para denúncias dos telespectadores ao ombudsman da emissora.
Fruto de décadas de efetivo jornalismo colocado em prática pela rede pública inglesa de rádio e televisão British Broadcasting Corporation (BBC) e pela estadunidense Public Broadcasting System (PBS), a população desses países dispõe de mecanismos para expressar suas críticas, e é bem mais sagaz para identificar interesses que se escondem sob o rótulo de “jornalismo”.
Como não existe mais emissora pública no Brasil – a TV Brasil, criada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi destruída por Temer e Bolsonaro -, nunca houve ombudsman no Grupo Globo e as mensagens dos telespectadores são selecionadas de acordo com a conveniência da emissora, o respeitável público fica, como se diz na gíria, “na mão do calango”.
Em 20 de fevereiro, Jair Bolsonaro, acompanhado do ministro Paulo Guedes e de dezenas de seguranças, atravessou a via que separa o Palácio do Planalto do Congresso Nacional, em Brasília para entregar aos presidentes da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ) e do Senado, David Alcolumbre (DEM-AP) a proposta de emenda constitucional da Previdência Social.
Mas antes, o JN já dava destaque ao assunto, definindo-o como “o mais importante para o atual governo”.
A título de exemplo, em 9 de janeiro, em matéria de quatro minutos (grande para os padrões do JN), a apresentadora Renata Vasconcellos e a repórter Zileide Silva se revessaram para mostrar que “só esse ano, o rombo no setor [Previdência] chegaria a R$ 218 bilhões” e que “medidas mais duras são necessária para que o sistema não entre em colapso”.
Apresentadora e repórter, entre caras e bocas, atestavam que a reforma era “inevitável”.
Ao contrário do que se esperaria de uma reportagem “inaugural”, Zileide ouviu apenas representantes do governo e do setor financeiro, para mostrar que o regime de capitalização, proposto por Guedes, é uma boa, “mesmo que alguns ajustes sejam necessários em relação ao modelo adotado no Chile”.
Nenhum representante de sindicato de trabalhadores ou centrais sindicais foi entrevistado. O mesmo acontecendo com as centenas de pesquisadores e especialistas que defendem que a Previdência não está quebrada, como é o caso da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (ANFIP) e da coordenadora nacional da Auditoria Cidadã da Dívida, Maria Lúcia Fattorelli.
Sobre a menção ao Chile, o JN não esclareceu que Guedes é conhecido como um “Chicago boy” – alusão ao grupo de economistas chilenos que formularam a política econômica da ditadura do general Augusto Pinochet (1973-1990).
Esses economistas foram pioneiros do pensamento neoliberal, antecipando no país latino-americano em quase uma década as duras medidas contra direitos sociais mais tarde adotadas por Margaret Thatcher no Reino Unido.
Guedes estudou na Faculdade de Economia de Chicago, morou no Chile e trabalhou com um dos graduados auxiliares de Pinochet.
Estudos das centrais sindicais brasileiras apontam que o Chile é também o país que fez, há quase 40 anos, uma reforma como a pretendida por Guedes, que além de retirar direitos, precarizou a aposentadoria dos trabalhadores e levou muitos idosos a cometerem suicídio.
O telespectador do JN não ficou sabendo de nada disso.
Voltando à matéria de 09/01, ela é também um exemplo de como se faz assessoria de imprensa travestida de jornalismo. Várias pessoas (fontes, no jargão jornalístico) foram ouvidas, mas todas pertencentes a um mesmo campo de interesse. Não há contraditório.
O que deveria ser uma informação e uma orientação para o cidadão, na prática ajuda a deformar o que é noticiado.
O toque extra de convencimento do JN em relação à da Reforma da Previdência, nessa e nas matérias seguintes, ficou por conta da arte que passou a acompanhá-las: silhueta de trabalhadores em movimento em um fundo verde, tendo em primeiro plano, em azul, a carteira de trabalho.
Verde e azul são cores frias, as mais tranquilas do espectro cromático. Num país onde mais de 12 milhões de pessoas estão desempregadas e a economia em pré-recessão, a carteira de trabalho virou objeto de desejo. Nada mais esperto do que associá-la à Reforma da Previdência.
AR DE CREDIBILIDADE
No mesmo dia em que entregou o projeto de Reforma da Previdência ao Congresso, Bolsonaro fez pronunciamento em cadeia nacional de rádio e televisão defendendo a medida e garantindo que ela visava acabar “com os privilégios do atual modelo”.
Estava dada a largada para o JN fazer jornalismo, se o JN quisesse fazer jornalismo.
Não foi isso o que aconteceu.
JN associou-se à gigantesca e milionária campanha de publicidade e marketing bancada pelo governo federal para convencer a população que perder direitos é uma boa, trabalhar até 80 anos é excelente e que não há nada demais em segmentos como militares, judiciário e o próprio parlamento ficarem fora.
Mais ainda: como faz o próprio governo federal, o JN também esconde de seus telespectadores que grandes devedores do agronegócio, da indústria, do comércio e dos bancos continuam isentos de pagarem suas dívidas, enquanto se torce o parafuso sobre os assalariados.
JN continuou fazendo matérias sobre a Reforma da Previdência, mas sempre enfocando a sua inevitabilidade “diante de uma população que envelhece em ritmo acelerado” e de um sistema “quebrado”. Outras opções de reforma sequer foram apresentadas ou discutidas.
Na mesma toada seguiram as falas de comentaristas políticos, como o onipresente Gerson Camarotti (TV Globo, rádio CBN e portal G1).
No comentário feito por Camarotti em 03/05 –
“Governo vive dilema na tramitação da PEC da Previdência na Comissão Especial da Câmara” – toda a discussão que deveria auxiliar a população a entender as mudanças que a reforma se propunha a fazer, foi substituída por cálculos de quantos parlamentares o governo efetivamente dispunha para aprovar a medida, sem que ela fosse “muito desidratada”.
O termo desidratado, aliás, parece ter sido escolhido a dedo para valorizar o projeto de Guedes e criticar qualquer tentativa de alterá-lo. Mais ainda: possibilitou assumir a sua defesa, sem o ônus de dizer isso abertamente.
Outro comentarista igualmente onipresente do Grupo Globo, Carlos Alberto Sardenberg, conseguiu superar o colega.
Do final de maio em diante, passou a cobrar, na TV Globo e também na rádio CBN, “maior empenho do presidente Bolsonaro para a aprovação da reforma”, destacando que “o ministro Paulo Guedes está praticamente sozinho nessa cruzada”.
UMA ASSESSORIA INTEGRADA
Para ser eficiente, uma campanha publicitária não pode agir sozinha. Ela deve estar em sintonia com o trabalho da mídia, o que lhe confere ar de credibilidade. Esse, aliás, é outro ponto em que a atuação do JN coincide com a de uma assessoria de imprensa.
Ao custo oficial de R$ 37 milhões, o governo federal lançou em 20 de maio, durante solenidade no Palácio do Planalto, uma campanha publicitária em defesa da Reforma da Previdência.
A campanha, que passou a ser veiculada em jornais, emissoras de rádio e televisão, internet, mídias sociais, outdoors, painéis de aeroportos, rodoviárias e estações de metrô, coincidentemente utilizava as mesmas cores da arte do JN e se propunha a responder perguntas dos brasileiros sobre a medida.
Integrado ao esquema oficial, JN deixou as respostas por conta do governo, limitando-se a dar suporte às pretensões do ministério da Economia.
Em poucos dias, todas as capitais brasileiras e principais cidades do interior se viram inundadas por publicidade a favor da “Nova Previdência”. Como se isso não bastasse, o governo Bolsonaro contratou os apresentadores da Rede TV! Luciana Gimenez, e do SBT, Ratinho, para defender a reforma em seus programas.
A Central Única dos Trabalhadores (CUT) denunciou a medida como “ilegal e imoral”, especialmente por parte de um governo “que diz que não tem dinheiro para nada”. Mas o telespectador do JN também não ficou sabendo disso.
No mesmo dia do lançamento da campanha publicitária oficial, o diretor do Grupo Globo, Paulo Tonet Camargo, vice-presidente de Relações Institucionais, foi recebido por Bolsonaro. Apesar de Bolsonaro já ter chamado a Globo de “inimigo”, o encontro sinalizou um pacto entre governo e emissora, no qual o JN se revelou o carro-chefe.
SÓ O INTERESSE DO CLIENTE
Não há dúvida de que o JN dispõe de profissionais capacitados para fazer jornalismo. Faltou, no entanto, a emissora querer fazer jornalismo.
Bastaria, por exemplo, ter dado espaço para entrevistas com trabalhadores, dirigentes sindicais, especialistas e estudiosos não alinhados ao sistema financeiro e ao governo.
Bastaria mostrar como funciona, em outros países, o sistema de previdência, com suas vantagens e problemas.
Bastaria ter coberto as inúmeras manifestações contrárias à reforma que se multiplicam pelo Brasil.
Bastaria ter divulgado as críticas aos privilégios mantidos e ampliados pela reforma para alguns setores (militares à frente), em aberta contradição ao discurso governista.
Como em todo o trabalho de assessoria de imprensa, o JN enfatizou apenas o interesse do cliente. E o cliente é o sistema financeiro nacional e internacional, ansioso para transformar as atuais pensões e aposentadorias em poupanças, sujeitas à variação do rendimento dos papéis em bolsa.
Basta lembrar que nesses primeiros meses de tramitação da Reforma, a Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa) subiu e desceu ao sabor das possibilidades que se desenhavam para a sua aprovação. Humores enfatizados pelo JN, como se só eles contassem.
Grande repercussão foi dada, também, à entrevista do ministro Guedes à revista Veja, quando ele ameaçou deixar o cargo e ir morar no exterior, caso “só ele” quisesse a reforma.
Matéria de cinco minutos do JN, exibida em 24 de maio, mostrou a fala de Guedes seguida por entrevistas de Bolsonaro e de representantes do mercado financeiro.
Nenhum representante dos trabalhadores ou do meio acadêmico foi ouvido. A matéria da repórter Cláudia Bomtempo, aliás, enfatizava termos como “desastre” para o país e o fim da “economia de mais de R$ 1 trilhão em 10 anos”, se a medida governamental não fosse aprovada.
Depois de tudo isso, o que era esperado como resultado de uma campanha integrada de mídia aconteceu. O apoio à Reforma da Previdência começou a crescer junto aos que serão os principais prejudicados.
Em maio, pesquisa encomendada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) ao IBOPE, indicava que seis em cada 10 brasileiros consideravam a reforma necessária, mesmo que apenas 36% dos entrevistados afirmassem ter conhecimento amplo ou conhecer os principais pontos da medida.
Às vésperas da aprovação em primeiro turno, outra pesquisa, dessa vez da Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas e SPC Brasil indicava mais uma “melhora” entre os que apoiavam a reforma. Num universo de 800 pessoas, sete entre cada dez se mostravam “favoráveis” à aprovação.
A mesma pesquisa apontava também que 81% dos entrevistados identificam algum aspecto negativo na proposta do governo e gostariam de ter maior esclarecimento sobre o assunto. As matérias no JN, no entanto, continuaram se limitando a mostrar que o governo já dispunha dos votos necessários para aprovar a medida.
No dia seguinte à aprovação, 11 de julho, uma longuíssima matéria (sete minutos) anunciava o resultado, quase em tom de comemoração.
E a comemoração só não foi perfeita, porque a repórter Zileide Silva, num ato falho, deixou escapar que à noite, quando da votação dos destaques, “o governo levou um susto”, com a oposição conseguindo aprovar a redução da idade para a aposentadoria dos professores.
Mais uma prova de que o cliente era o governo/sistema financeiro. Até porque, em termos jornalísticos, o que deveria merecer ênfase era a efetiva surpresa: a vitória dos professores.
Durante o recesso parlamentar, a Reforma da Previdência sumiu do JN e da própria TV Globo. O Globo Repórter de 12/07, por exemplo, abordou o frio extremo em países nórdicos.
Já no Fantástico, de 21/07, teve espaço para tudo, até para a participação brasileira nos Jogos Olímpicos daqui a um ano no Japão, mas nem uma palavra sobre Reforma da Previdência.
JN e a Globo, pelo visto, consideram o trabalho de assessoria praticamente encerrado. Resta saber o que pensa o cidadão brasileiro diante de taxas recordes de desemprego, de direitos trabalhistas reduzidos quase a pó e agora arriscados também a terem que trabalhar muito mais e se aposentarem (se conseguirem) com muito menos.
*Ângela Carrato é jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
*Eliara Santana é jornalista, doutoranda em Estudos Linguísticos pela PUC Minas/Capes.