Boaventura de Sousa Santos: Ver horizontes nos varais

 
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Por Boaventura de Sousa Santos - na Carta Maior - 28/08/2019

Apesar de haver máquinas de secar roupa, a maioria das pessoas do mundo (quase sempre mulheres) secam a roupa em varais de metal, de corda de cânhamo ou de madeira. Ramos de árvore também podem servir de varal. A técnica de estender a roupa varia de país para país mas há certas regras de observância geral. Assim, a roupa tem de ser bem estendida para garantir a maior exposição ao sol e ao vento, o peso da roupa tem de ser calibrado com a resistência do varal, no caso de de a roupa poder cair com alguma turbulência é conveniente segurá-la com uma mola ou algo semelhante. Estender a roupa no varal é um trabalho minucioso que obriga a ter bem presente a roupa e o varal para a operação ter sucesso. Mas quem se habituou a estender a roupa no varal sabe que, ao mesmo tempo que se olha com atenção para o que está na frente dos olhos, é preciso ter presente a época do ano, a meteorologia, a incidência do sol, a força e a direção do vento, a poluição atmosférica e até a segurança do estendal se há a possibilidade de ladrões roubarem a roupa.

Todos os democratas do mundo, sobretudo os que têm o coração duplamente do lado esquerdo (físico e político), os que se sentem insultados com o enriquecimento exorbitante de uns e o empobrecimento injusto de outros, os que ficam revoltados com o crescimento desordenado do armamentismo e todas as outras faces da guerra, sejam elas os embargos, as sanções económicas, o tráfico de drogas de humanos e de órgãos, o assassinato de lideres sociais e políticos, o feminicídio, os que ficam assustados com o possível colapso ecológico, dado o ritmo do aquecimento global, do desmatamento das florestas, da contaminação das águas e da cegueira dos políticos a este respeito, os que ficam alarmados com o recrudescimento da extrema-direita e das ideologias reacionárias, nacionalistas, hiperconservadoras, enfim todos os que não estão dispostos a desistir de lutar por uma sociedade mais justa, mais decente e mais digna, todos eles deviam aprender com as mulheres do mundo e a sua arte de estender a roupa nos varais. 

Estamos num tempo em que o pequeno e detalhado horizonte da roupa a ser estendida tem de ser articulado com o horizonte mais amplo da meteorologia social, económica, política e cultural da época em que vivemos. Para as forças políticas de esquerda este esforço de articulação de horizontes é mais difícil do que para as forças de direita. Porque vivemos há séculos em sociedades capitalistas, colonialistas e patriarcais e porque as injustiças e discriminações que elas produzem, apesar de terem mudado de forma, não têm mudado de intensidade e de letalidade, as forças políticas de esquerda têm-se treinado para existir e resistir contra a corrente e para centrar as suas energias na preparação da sociedade do futuro. Por outras palavras, têm-se preocupado menos com o estender da roupa do que com a meteorologia que a envolve. Sempre que procuraram articular as duas preocupações fizeram-no seio do mesmo horizonte político e procuraram vê-lo, ora com os óculos de ver ao perto (a tática), ora com óculos de ver ao longe (estratégia). Durante muito tempo esta articulação funcionou, ainda que, na maioria dos casos, uma parte das esquerdas se tenha habituado ver só com os óculos de ver ao perto e a outra se tenha habituado a ver só com os óculos de ver ao longe. Se isto tivesse acontecido às mulheres e ao seu estendal, talvez hoje andássemos nus.

Acontece que quarenta anos de neoliberalismo tornaram este hábito político inviável. O horizonte político tornou-se muito pequeno que levou o mercado ótico-político a especializar-se em óculos de ver ao perto. Quem quer teimar em ver com óculos de ver ao longe usa lentes velhas e corre o risco de ser considerado míope ou lunático. Os democratas com coração político à esquerda têm demorado a dar-se conta desta mudança de época e de meteorologia e enquanto não se derem conta põem em sério risco, não só a roupa deles como a roupa de todos nós. Mas o esforço é urgente e ouso sugerir algumas das vias que ele deve tomar. 

O que dantes eram duas escalas do mesmo horizonte político são agora dois mundos distintos e é por isso que para os ver adequadamente no plano político é agora preciso muito mais que dois pares de óculos. É preciso toda uma nova visão de cultura política. Simbolicamente, a queda do Muro de Berlim, combinada com o disparo da concentração da riqueza e o aprofundamento da crise ecológica, fez com que a aspiração e a luta por uma sociedade melhor passassem a ter de ser pensada e realizada em dois horizontes muito distintos: o horizonte político e o horizonte civilizatório. O primeiro é o horizonte convencional da luta política. Continua ser dividido entre táticas e estratégias mas a sua escala diminuiu desde o momento em que o horizonte civilizatório começou a ser discutido na sociedade. Com isso, a própria diferença entre tática e estratégia foi miniaturizada. O horizonte político passou a ser o horizonte próprio do estender a roupa no varal. Chamamos ao conjunto do estendal a agenda política. 

O horizonte civilizatório é conjunto dos temas que estão para além do horizonte político mas que no entender de um número crescente de pessoas, sobretudo de jovens, é decisivo para o futuro da humanidade: outros modelos de consumo, de convivência democrática, de relacionamento cordial entre humanos e entre estes e a natureza. Essa será a única maneira de evitar o colapso ecológico e a superveniência de novas ditaduras e a multiplicação de guerras irregulares e suas vítimas privilegiadas, civis inocentes. O horizonte civilizatório é constituído por duas inquietações políticas, uma negativa, outra positiva. A inquietação negativa é a sensação de que a roupa no estendal pertence toda a um corpo, um estilo, uma história do passado. A inquietação positiva é que, apesar de os temas civilizatórios não poderem, pelo menos por agora, ser processadas pelo sistema político, são cada vez mais discutidos pelos cidadãos e presentes na sua vida: no modo como mudam os hábitos de consumo, na revolta ante políticas públicas que negam ou minimizam a importância dos temas civilizatórios, no desconforto ante a magnitude do que está em causa no horizonte civilizatório e a pequenez dos debates que ocupam o estendal da roupa política. Perante isso, muitos e muitas afastam-se da política convencional, o que os políticos ocupados no estendal confundem com despolitização mas que no fundo é apenas o desejo acrisolado de outras políticas.

Esta dijuntiva entre horizonte político e horizonte civilizatório é nova e o drama do nosso tempo é que ela exige uma nova e fundamental distinção entre esquerda e direita e a classe política não está preparada para ela. As forças políticas de direita, por mais que digam o contrário, não se interessam pelo horizonte civilizatório e desprezam quem o quer discutir. Afinal, o mundo tal como está foi em grande medida obra delas e são elas as que mais beneficiam com o status quo. Não pensam no horizonte civilizatório porque, segundo dizem, isso é longo prazo e a longo prazo estamos todos mortos. Ao contrário, as forças de esquerda só terão viabilidade no futuro se souberam articular os dois horizontes. Se o não fizerem, são elas que a longo prazo estarão mortas. Têm, pois, um interesse vital em introduzir na discussão o horizonte civilizatório. Só que isso não é possível a curto prazo nem sequer nos termos da temporalidade dos processos eleitorais. Perante isto, a solução só pode ser a seguinte. As forças de esquerda têm de aprender a exercer a sua actividade dentro e fora do horizonte político. Dentro dele, o seu objetivo deve ser o de o reconverter para que ele amplie o seu carácter democrático (haja roupa mais colorida e diversa no estendal). Ela sabe que o horizonte político vai ser cada vez mais pressionado a partir de fora pelos cidadãos sobretudo interessados no horizonte civilizatório e que, perante isso, as forças de direita vão responder repressivamente e tudo fazer, inclusive sacrificar a democracia para salvaguardar o status quo. Por isso, para as forças de esquerda a defesa da democracia deve ser o novo centro do horizonte político e a única razão porque participam nele.

Mas têm igualmente de trabalhar fora dele, ao nível do horizonte civilizatório. A esse nível, os instrumentos políticos são: a educação popular para a democracia intercultural eco-socialista, o exemplo pessoal e coletivo como testemunho de vida, e formas novas de organização. Quanto à educação: a democratização global da vida, a diversidade intercultural das possibilidades pós-capitalistas, pós-colonialistas e pos-patriarcais e os direitos da natureza. Isto implica virar do avesso as universidades de verão e as escolas de formação organizadas pelos partidos: serão os cidadãos a ensinar aos políticos o horizonte civilizatório. Quanto ao testemunho de vida: os políticos de esquerda têm de dar testemunho pessoal das preocupações civilizatórias e têm de conviver mais com as periferias pobres e discriminadas das cidades, aprender de novo a falar com as classes que lhes deram historicamente a razão de ser e, sempre que possível, ir viver com elas. Quanto à forma de organização: a esquerda tem de ser partido e movimento porque nem um nem outro isoladamente sobreviverão à degradação da democracia causada pelas forças de direita. Articulando-se poderão começar a pensar conjuntamente o horizonte político e o horizonte civilizatório e a transformar o primeiro em função do segundo. Estarão aí a garantir o seu futuro, um futuro promissor e urgente.