Prisão de acusado de hackeamento é ilegal e tem motivos políticos

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Por Fernando Augusto Fernandes - no CONJUR - 30/07/2019

No último 19, o juiz Vallisney de Oliveira, da 10ª Vara Federal de Brasília, decretou a prisão temporária de quatro pessoas para os fins de investigação sobre o "hackeamento" dos celulares do ex-juiz Sergio Moro e do procurador da "lava jato" Deltan Dallagnol. O material tem nutrido inúmeras notícias sobre os atos ilícitos cometidos pelo ex-juiz e o procurador durante a condução de processos que transformaram a "república de Curitiba" em uma força política decisiva nas eleições de 2018.
Este texto visa apreciar juridicamente as ações imputadas aos presos e suas consequências jurídicas. Todos os atores políticos e jurídicos se referem ao "hackeamento" como algo grave, independente da gravidade do conteúdo divulgado. Afirmo que não é possível se configurar organização criminosa na forma da Lei 12.850/13[1] para os fins de invasão de dispositivo (artigo 154 A), com obtenção de mensagens eletrônicas[2] ou de violação do sigilo de comunicação na forma do artigo 10[3] da Lei 9.296/96. Ainda, o móvel das ações do preso é considerado atenuantes pelo Código Penal.
Antes de tudo é importante entender o motivo da ação e quais as relações de dominação e resistência no mundo virtual. O jornalista Glenn Greenwald, que hoje encabeça as revelações do Intercept Brasil, foi protagonista das divulgações da vigilância internacional realizada pelos Estados Unidos, através da NSA (Agência de Segurança Nacional). Em 2005, Glenn entrevistou Edward Snowden, que entregou provas de que entre as milhares de pessoas violadas e monitoradas em todo mundo estavam a ex-presidente Dilma Roussef[4]. Também a Petrobras[5] era monitorada com violações de e-mails e interceptações telefônicas, com a falsa justificativa de combate ao terrorismo[6].
A “militarização do ciberespaço”, com a vigilância em massa de nossa população e invasão da privacidade e das empresas, também gerou um movimento de resistência através da cultura dos cyberpunks, que têm como meta a “privacidade para os fracos, transparência para os poderosos” e como princípio “a informação quer ser livre”[7]. O Wikileaks é uma importante organização que se dedica a publicar documentos secretos revelando má conduta de governos, empresas e instituições. As denúncias reveladas por essa organização passa pelo ataque a civis e torturas no Iraque, centenas de assassinatos no Afeganistão e ordem de Hillary Clinton para que 33 embaixadas recolhessem dados pessoais de diplomatas da ONU.
Walter Degatti Neto é o cyberpunk que foi identificado pela Polícia Federal como aquele que remeteu ao Intercept Brasil o material. Em seu depoimento no inquérito sigiloso vazado para imprensa, afirma “QUE somente armazenou o conteúdo das contas de TELEGRAM dos membros da Força Tarefa da Lava Jato do Paraná, pois teria constatado atos ilícitos nas conversas registradas;”... QUE não encontrou nada ilícito no conteúdo das conversas dos Procuradores da República que atuam no caso "GREENFIELD";... QUE nunca recebeu qualquer valor , quantia ou vantagem em troca do material disponibilizado ao jornalista GLENN GREENWALD”.
O Código Penal prevê como circunstâncias atenuantes, no artigo 65: “III – ter o agente: a) cometido o crime por motivo de relevante valor social ou moral”. Houve também confissão no depoimento”. Sergio Moro, ao levantar o sigilo da interceptação telefônica gravada entre os ex-presidentes Lula e Dilma, obtida ilegalmente, porque depois do horário da autorização judicial, usou um argumento cyberpunk: dizia levantar o sigilo, entre outras razões, porque “também o saudável escrutínio público sobre a atuação da Administração Publica e da própria Justiça criminal. A democracia em uma sociedade livre exige que os governados saibam o que fazem os governantes, mesmo quando estes buscam agir protegidos pelas sombras”[8].
A diferença é que Moro utilizou-se do poder de juiz, abusando da sua autoridade para cometer o ilícito do artigo 10 da Lei de Interceptação. Submetida a questão à Corte Especial do TRF-4, o voto condutor do desembargador federal Rômulo Pizzolatti, que tornou imune o ex-juiz, fundou-se na afirmação de que “a norma jurídica incide no plano da normalidade, não se aplicando a situações excepcionais”. Clara aplicação do poder soberano do juiz na “qual não há extinção dos direitos da sociedade, mas sua suspensão”[9]. Destaca-se voto vencido do desembargador Rogério Favreto, de não ser adequada a invocação da teoria do Estado de exceção[10].
Não estamos diante de uma organização criminosa. Primeiramente, os quatro presos serviram para fazer o mínimo número para tentar imputar esse crime. Há evidência de que os quatro não estão envolvidos. Ocorre que a pena máxima do crime que a organização criminosa visa cometer precisa ser maior do que 4 anos. A violação do sigilo de comunicação do artigo 10[11] da Lei 9.296/96 tem pena máxima de 4 anos, e não maior. Diante da edição do artigo 154 A, parágrafo 3º, esta passou a ser lei especial para invasão de dispositivo, vigorando o artigo 10 somente para o caso de interceptação, ou seja, transmissão on-line de fala. No caso examinado, o cyberpunk baixou diálogos prévios, portanto cometeu um delito cuja pena vai somente de 6 meses a 2 anos.
Além da impossibilidade da imputação de organização criminosa e a previsão de tipo de menor potencial ofensivo pela Lei 9.099/95, a prisão temporária prevista é inaplicável na Lei 7.960/89, seja porque a organização criminosa não está prevista no artigo 1º (somente quadrilha ou bando), seja porque nem o artigo 10º da Lei 9.296/96 nem o artigo 153 A estão previstos como passíveis de prisão para investigação. Também incabível as prisões preventivas pela redação dada ao artigo 313[12] do CPP, que exige pena máxima superior a 4 anos ao tipo penal imputado.
Prisão fora dos ditames da norma legal é ato de exceção, portanto, é prisão política. O cyberpunk afrontou o poder de Sergio Moro e dos procuradores revelando ilegalidades e o ilícito cometido por eles. É um crime de menor potencial ofensivo que não gera prisão. A aplicação de organização criminosa indiscriminadamente e fora dos ditames da norma fere o princípio da reserva legal. Denunciar ilegalidades é que moveu as ações cyberpunk, o que torna um ato político de resistência[13]. Prisão ilegal, fora dos ditames das normas brasileiras, o torna preso político.
A liberdade de imprensa é tema fundamental e precisa ser preservada. De igual forma, as liberdades democráticas e as garantias da reserva legal e do devido processo. O Estado brasileiro está agindo fora da norma legal ao prender essas quatro pessoas, entre os quais o cyberpunk.

[1] § 1º Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional.
[2] § 3º Se da invasão resultar a obtenção de conteúdo de comunicações eletrônicas privadas, segredos comerciais ou industriais, informações sigilosas, assim definidas em lei, ou o controle remoto não autorizado do dispositivo invadido: (Incluído pela Lei nº 12.737, de 2012) Vigência Pena - reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, se a conduta não constitui crime mais grave. (Incluído pela Lei nº 12.737, de 2012).
[3] Art. 10. Constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei.
Pena: reclusão, de dois a quatro anos, e multa.
[4] A NSA também se dedica à espionagem diplomática, como demonstram os documentos referentes a “questões políticas”. Um exemplo particularmente chocante, de 2011, mostra que a agência teve como alvo dois líderes latino-americanos – a atual presidente do Brasil, Dilma Rousseff, assim como seus “principais consultores”, e o então líder da disputa presidencial (e hoje presidente) do México Enrique Peña Nieto, junto com “nove de seus colaboradores mais próximos” – para um “esforço especial” de vigilância especialmente invasiva. O documento chega a incluir algumas das mensagens de texto interceptadas entre Nieto e um “colaborador próximo”. “Sem lugar para se esconder do Governo Americano”, pág 123 2014 Ed Primeira Pessoa, Greenwald, Glenn.
[5] “Boa parte do acervo de Snowden revelou o que só pode ser qualificado de espionagem econômica: escuta e interceptação de e-mails da gigante brasileira de petróleo Petrobras, de conferências econômicas na América Latina, de empresas de energia da Venezuela e do México, e uma vigilância conduzida por aliados da NSA (entre os quais Canadá, Noruega e Suécia) sobre o Ministério das Minas e Energia do Brasil e empresas do setor de energia em vários outros países.” ob. cit pag 117.
[6] “Para começar, é claro que grande parte da coleta de dados conduzida pela NSA nada tem a ver com terrorismo ou segurança nacional. Interceptar as comunicações da gigante Petrobras, espionar sessões de negociação em uma cúpula econômica, ter como alvo os líderes democraticamente eleitos de países aliados ou coletar todos os registros de comunicações dos americanos não tem qualquer relação com o terrorismo. No que diz respeito à atual vigilância praticada pela agência, está evidente que deter o terrorismo é um pretexto”. Ob. Cit pag 197.
[7] Cypherpunks – Liberdade e o Futuro da Internet”, ed Boitempo, 2012, pag. 12 prefácio Natalia Viana. Vide apublica.org.
[8] https://www.conjur.com.br/dl/decisao-levantamento-sigilo.pdf.
[9] SERRANO, Pedro Esteves Alves Pinto. Autoritarismo e golpes na América Latina: Breve ensaio sobre jurisdição e exceção. São Paulo: Alameda, 2016, p. 167.
[10] Disponível em <https://s.conjur.com.br/dl/lava-jato-nao-seguir-regras-casos.pdf>, acesso em 24/4/2019.
[11] Art. 10. Constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei.
Pena: reclusão, de dois a quatro anos, e multa.
[12] Art. 313. Nos termos do art. 312 deste Código, será admitida a decretação da prisão preventiva - nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro) anos; (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
[13] O advogado criminal e ex-governador Nilo Batista, entrevistado em 2003 pela Caros Amigos, disse sobre Augusto Thompson: "Todo crime é político. Nos anos 70, eu me lembro que o Augusto Thompson, que é uma grande figura, deu uma resposta maravilhosa numa conferência, a um aluno que perguntou: Professor, qual é a diferença entre criminoso comum e criminoso político? E o Thompson falou: A diferença é que o comum também é político, só que ele não sabe. <groups.yahoo.com/neo/groups/direito-turmab/conversations/messages/228>.
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 é sócio do Fernando Fernandes Advogados, advogado criminalista e doutor em Ciência Política.