Na manhã da Globo, favela e previsão do tempo viram "matérias inspiradoras" pelas reformas

Por Wilson Roberto Vieira Ferreira - no Cinegnose - 02/06/2019

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Todas as manhãs, os diversos “Bom Dia” (SP, Rio, Minas etc.) do telejornalismo local da Rede Globo desempenham uma função semiótica bem distinta dos telejornais de rede (JN, Hoje etc.) e da TV fechada. Nos telejornais de rede e GloboNews há uma repetição hipodérmica da expressão “Reforma da Previdência” (em torno de 20 a 30 vezes por hora) e más notícias econômicas como chantagem a uma categoria especial de telespectadores: os líderes de opinião. Enquanto nos telejornais locais a estratégia semiótica é outra: exibir “reportagens inspiradoras” e “boas notícias” para elevar a moral da patuleia desempregada, desalentada ou subempregada – “uberizada”. Diferente dos líderes de opinião, a massa dispersa e desatenta precisa ser motivada para elevar o moral no começo do dia.  Nesse esforço motivacional nada escapa. Nem a previsão do tempo ou o evento esportivo da “Taça das Favelas”.

Sobe a música tema do telejornal Bom Dia Rio
Flávio Fachel - “Bom dia! Tá na hora do Bom Dia Rio de terça-feira!”
Priscila Chagas– Bom dia!... O sol nascendo daqui um pouquinho... vai brilhar hoje, vai rachar, a máxima de 33.
Fachel – O dia ontem foi bonito...
Chagas – O dia ontem foi lindo e hoje vai ser bonito. Vai ser uma semana sem chuva... uma notícia boa!
Fachel – A gente precisa de dias bonitos... a gente precisa dar um up!... prá cima... é ou não é?
Essa foi a abertura do telejornal local Bom Dia Rio de 28/05. Em postagem anterior discutíamos como o telejornal da poderosa emissora (que vem bancando a aventura Bolsonaro em troca da entrega da Reforma da Previdência aos seus interesses rentistas) vem sentindo o impacto do baixo astral nacional de tragédias (Brumadinho, feminicídios, desemprego, desmoronamento do PIB etc.) e tenta filtrá-lo linguisticamente ao tentar encontrar a “boa notícia” na “má notícia” – clique aqui.
Seguindo a orientação estratégica do ministro Paulo Guedes (transformou sua incapacidade em articular um plano econômico em chantagem para aprovar as “reformas”), o jornalismo global vem sistematicamente transformando imagens de filas de desempregados nas portas de empresas, os cortes na educação pública e as próprias manifestações de rua contra o “contingenciamento” em discurso de chantagem: Vejam isso! Se a reforma da Previdência não for aprovada será o caos!
                  Por isso, os telejornais de veiculação nacional partiram para a clássica técnica hipodérmica da repetição. Por exemplo, só na edição do JN de 30/05 repetiu-se a expressão “reforma da Previdência” 26 vezes. 


Pauta binária

Segundo a observação empírica do, por assim dizer, “DataCinegnose” desse humilde blogueiro, o canal fechado GloboNews (voltado principalmente aos líderes de opinião) repete a expressão “reforma da Previdência” de 20 a 30 vezes por hora!
Numa brutal estratégia binária, a pauta do jornalismo global está dividida entre “meganhagem” (operações policiais federais ou militares contra corruptos, feminicidas etc. – sobre o conceito de “meganhagem” clique aqui) e terror/chantagem para defender as “reformas” – não só previdenciárias, mas também o “projeto anticrime" de Sérgio Moro.
Repetição e toscas interpretações de números de pesquisas. “A maioria dos brasileiros é a favor da Reforma da Previdência”, diz com um olhar sério William Bonner. Mas esconde do infográfico os números de que apenas 6% sabem do quê se trata a “Reforma da Previdência”.
Até aqui, nenhuma novidade. A função principal da mídia na sociedade é de alarme: exortar os receptores a interiorizar uma determinada pauta ou agenda. 
Porém, as coisas não são assim tão simples. Desde as pesquisas de campo sobre recepção da programação de rádio e sua influência sobre o comportamento (de Paul Lazarsfeld nos anos 1930) o pesquisador da Universidade de Colúmbia descobriu que nove em cada dez receptores não assimilam as mensagens ou pela falta de interesse, ou pelos ruídos e interpretações equivocadas motivadas pela recepção dispersa e desatenta.
                 Seja na TV aberta ou fechada, Globo martela a expressão “reforma da Previdência” para aquele receptor único em cada dez, o emissor atento – o chamado “líder de opinião”, liderança espontâneas que no dia-a-dia repassa esta mensagem midiática martelada para a sua rede de relações sociais formada pelos receptores dispersos.


“Two-step-flow”

 É um processo lento e demorado – o chamado “two-step-flow”, fluxo de transmissão em dois níveis. Por isso, a neurótica repetição discursiva global. Porém, como ficam os outros nove desatentos receptores, enquanto não forem influenciados pelos líderes de opinião?
Aqui entra o papel cada vez mais assumido pelos telejornais locais, principalmente aqueles das primeiras horas da manhã (Bom Dia SP, Rio, Minas etc.) – um papel motivacional através de “reportagens inspiradoras” - estranha categoria jornalística, expressão que de vez em quando âncoras dos telejornais pronunciam. 
Principalmente no Bom Dia SP, nota-se nos últimos meses o desaparecimento das chamadas “hard news” - notícias relevantes que necessitam de abordagem mais aprofundada, principalmente nas áreas econômicas e políticas. 
A pauta tornou-se bifásica: de um lado, zeladoria: links ao vivo sobre buracos nas ruas, ciclovias, mato que ocupa praças, atrasos de trens da CPTM ou defeitos em linhas do metrô (sempre sob o viés de “problemas pontuais”). 
E do outro, ocupando a maior parte do tempo, o tautismo (Tautologia + autismo midiático) televisivo dos quadros fáticos (vinhetas com telespectadores alegres gritando “Bom Dia São Paulo!”; as “opiniões” das redes sociais, geralmente frases motivacionais com fotos do sol nascendo, um lindo céu sem nuvens e enunciados “construtivos” e “prá cima”) e metalinguísticos – conversas, brincadeiras e provocações jocosas entre os apresentadores Rodrigo Bocardi e Gloria Vanique.
Ou ainda as “notícias” sobre o evento promovido pela Central Única das Favelas (CUFA) desde 2012 e encampado este ano pela própria emissora (transformando-se num “evento-encenação”, Umberto Eco), a “Taça das Favelas”, cujas matérias abandonam a área esportiva para virarem “reportagens inspiradoras”. Como fossem espécie de contos de superação.
                   Como podemos observar nas linhas de diálogo do Bom Dia RJque abrem essa postagem, a função hardhipodérmica dos telejornais nacionais é substituída pela motivacional e inspiradora dos programas locais que abrem o dia: enquanto os líderes de opinião ainda não influenciaram esses receptores ainda dispersos em relação à pauta-chefe (Reforma da Previdência), estes precisam receber estímulos ou mensagens de esperança para começar o dia – a esperança no empreendedorismo, na superação, na livre iniciativa, na força de vontade.


Se não, vejamos dois exemplos recentes: (a) o tom moral dado à previsão do tempo e (b) o evento-encenação da “Taça das Favelas”.

(a) O “up” meteorológico

 Observa-se na previsão do tempo dos diversos “Bom Dia” da Globo uma espécie de moralização das condições meteorológicas. Sol com tempo firme é “boa notícia” e chuva uma notícia incômoda, como evidencia a o tom discursivo, por exemplo, de Gloria Vanique. No Bom Dia RJ visto acima, o apresentador Flávio Fachel ainda fala que precisamos de “dias bonitos para dar um “up”.
Coincidência ou não, verificou-se em diversas vezes (o DataCinegnose não tem os números exatos...) erros nas previsões do tempo – por exemplo, Gloria Vanique se apressa nas primeiras horas do dia em dizer (em curioso tom ansioso) que “o Sol vai sair!”, “vai fazer calor e chegar a 27 graus!...”, para depois tudo continuar nublado ao longo do dia. Parece haver algum tipo de ansiedade em ter que dar “boas notícias” para levantar ao astral no contexto atual de ansiedade e preocupação.

(b) Favelas inspiradoras

Mas o evento criado pela CUFA, a Taça das Favelas, que a Globo decidiu abraçar esse ano é o evento mais acabado dessa estratégia motivacional tautista, fática e metalinguística. Explicitamente, o evento tem a função ideológica de levantar o moral de desempregados e subempregados (“uberizados”) das periferias urbanas. Escopo: transformar o campo de futebol em metáfora de superação, determinação, esperança e otimismo.
                  A história do demitido que pegou a verba da rescisão para ajudar a comprar a van que conduz os jogadores do time finalista Complexo Parque Santo Antônio é uma dessas “reportagens inspiradoras” – vemos imagens dele se emocionando enquanto dirige a van, lembrando de todos esforços e dificuldades que teve que passar para estar ali, diante das lentes da Globo. 


Não é por menos que o time campeão foi patrocinado por um aplicativo de débito/crédito e pelo próprio Uber, uma empresa que gera tamanha precarização do trabalho que virou até categoria sociológica – “uberização”.
Se a CUFA criou o torneio em 2012 com o propósito de inclusão social por meio do esporte, o telejornalismo da Globo ressignificou, transformando o evento em um conjunto de contos de superação e esforço meritocrático para tentar elevar o moral da patuleia – colocar desempregados e uberizados para jogar bola, criando uma vitrine de esperança para telespectadores.

Globo e a guerra criptografada

                 Muitos analistas ainda acreditam que a Globo perdeu a paciência com o clã Bolsonaro e partiu para guerra (principalmente, depois que deu espaço às manifestações de rua contra os cortes na educação em 15 de maio). Perde-se de vista como a emissora vem sistematicamente participando da guerra semiótica criptografada do Governo: produção em massa de dissonâncias para ocupar a pauta midiática, desviando a atenção da sistemática política de criação de terra arrasada.

Globo transforma protestos contra cortes na educação em chantagem pela Reforma da Previdência

Pelos seus interesses rentistas, a Globo fecha integralmente com a reforma da Previdência (a privatização da aposentadoria pelos bancos). No máximo, opõe-se à pauta de costumes e meio ambiente dos anti-ministros do capitão da reserva. Mas, mesmo assim, é mais uma dissonância criada pela guerra criptografada. 
Por isso, a dupla estratégia semiótica: primeiro, a pura e simples tática hipodérmica de repetição e manipulação tosca de número e chantagem através dos telejornais de rede, cujos alvos são os líderes de opinião.
Enquanto para a massa dispersa e desatenta que acorda a cada dia para ingloriamente trabalhar, empreender ou desalentar, mais “reportagens inspiradoras” nos telejornais locais. Com muitas imagens do helicóptero da emissora (o “Globocop”) mostrando lindos cenários do sol nascendo enquanto o radar meteorológico busca “boas notícias” ...

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