Joaquim de Carvalho: Por que o processo em que Moro condenou Lula deve ser anulado

O juiz Sérgio Moro. Foto: HEULER ANDREY AFP


por Joaquim de Carvalho - no DCM - 7 de junho de 2019

Em 2012, o Supremo Tribunal da Espanha afastou da magistratura pelo período de 11 anos o juiz Baltasar Garzón porque ele ordenou escutas ilegais de conversas entre advogados e presos. Garzón era um juiz respeitado e famoso na só na Espanha. Foi ele quem ordenou a prisão do ditador chileno Augusto Pinochet. Mas, apesar da excelente reputação, a corte fez o que se espera de um tribunal: colocou a Constituição acima da imagem positiva de que desfrutava o magistrado.
O caso guarda muita semelhança com o que aconteceu no Brasil, no curso de uma das investigações mais conhecidas da Lava Jato, a que levou à condenação do ex-presidente Lula. Sergio Moro autorizou as escutas telefônicas no escritório dos advogados do ex-presidente, e depois faltou com a verdade nas explicações que prestou ao Supremo Tribunal Federal sobre o ato que é, flagrantemente, ilegal.
No Brasil, ao contrário do que aconteceu na Espanha, Moro foi não apenas protegido pelos tribunais, que o mantiveram no processo, mas mais tarde premiado por Jair Bolsonaro com a nomeação para o cargo de ministro da Justiça, com poderes turbinados. É ele quem aconselhará Jair Bolsonaro na nomeação de desembargadores e ministros das cortes superiores.

Em março de 2016, depois de vazar a conversa entre a então presidente Dilma Rousseff e Lula, Moro relacionou os telefones que tinham sido alvo de escutas. Entre eles, estava o do escritório de Cristiano Zanin Martins e Roberto Teixeira, advogados de Lula. Surpresos com a descoberta, os profissionais apresentaram reclamação ao Supremo Tribunal Federal, para onde as escutas tinham sido remetidas.
Nas explicações que prestou ao ministro Teori Zavascki, na época relator da Lava Jato no Supremo, Moro disse que  pensou que o número grampeado fosse o da empresa de palestras de Lula, não de um escritório de advocacia. Sustentou também que, apesar do grampo, as conversas nem chegaram a ser analisadas pela Polícia Federal, já que não indicavam nada de importante.
Os advogados descobririam, mais tarde, que Moro foi avisado duas vezes pela operadora de telefonia que aquele número pertencia a um escritório de advocacia. O juiz, então, deu a seguinte explicação:
Este julgador só teve conhecimento de que o terminal era titularizado pelo escritório de advocacia quando a própria parte assim alegou, já após a cessação da interceptação.
É fato que, antes, a operadora de telefonia havia encaminhado ao Juízo ofícios informando que as interceptações haviam sido implantadas e nos quais havia referência, entre outros terminais, ao aludido terminal como titularizado pelo escritório de advocacia, mas esses ofícios, nos quais o fato não é objeto de qualquer destaque e que não veiculam qualquer requerimento, não foram de fato percebidos pelo Juízo, com atenção tomada por centenas de processos complexos perante ele tramitando.
Sergio Moro se comprometeu  com o ministro Teori Zavascki que destruiria os áudios das escutas telefônicas dos advogados tão logo fossem devolvidos a seu juízo. Mas não foi isso que aconteceu, conforme constatou o advogado Pedro Henrique Viana Martinez quando os áudios da investigação sobre o triplex foram disponibilizados pela 13a. Vara Federal de Curitiba, alguns meses depois.
Na época, Pedro Henrique trabalhava no escritório de Cristiano Zanin Martins e de Roberto Teixeira, e tinha procuração nos autos. Nessa condição, esteve no Justiça Federal e pode consultar os áudio, mas não tirar cópia de nada.
Em relato por escrito, encaminhado ao escritório, contou que as conversas estavam à disposição não só dos advogados de Lula, mas de qualquer defensor com procuração naquele processo.
Segundo ele, as gravações captadas diretamente do ramal-tronco do escritório de Teixeira Martins & Advogados somavam 14 horas, conforme revelou ontem a Folha de S. Paulo.
Viu mais: cada conversa “era separadamente identificada, sendo possível visualizar número de origem e destino da chamada, bem como a sua duração. Com um clique, era possível ouvir cada áudio interceptado”.
Disse também o advogado: “As listas contavam, ainda, com uma última coluna. Em tal coluna estavam inseridos comentários de análise realizada por agentes da Polícia Federal.”
Portanto, ao contrário do que disse Moro, as conversas foram, sim, alvo de análise. Mas, ainda que não fossem, as gravações eram ilegais.
O Estatuto da Advocacia, que é uma lei federal, assegura “a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia”.
Sem essa proteção, cai por terra um os pilares do estado democrático de direito: a ampla defesa e o consequente dever do estado de oferecer aos cidadãos um julgamento justo. E grampear advogados fere esse princípio.
Advogados conversam com seus clientes sobre estratégia de defesa e essas conversas devem ser protegidas. Sem essa proteção, não existe democracia, mas o exercício arbitrário da vontade de uma autoridade de estado, no caso o juiz.
Importante observar que, nas 14 horas de gravação, não foi captada nenhuma conversa reveladora de ilícito. Se houvesse diálogo nesse sentido, Moro não precisaria ter condenado Lula sem provas e sem descrição de conduta criminosa. Bastava seguir a trilha de um áudio revelador. Se não seguiu, é porque não existe.
O que está em questão, no entanto, é a violação de um princípio, que justificaria a parcialidade de Moro, o ponto central do habeas corpus em julgamento pelo Supremo Tribunal Federal. Um juiz que manda grampear o escritório de defesa de um réu, permitindo que a Polícia Federal e o Ministério Público Federal tenha acesso, não é um juiz que zele pelo equilíbrio de forças entre defesa e acusação.
Esse HC que resultaria na anulação do processo já deveria ter tido desfecho, mas está parado desde dezembro do ano passado, quando Gilmar Mendes pediu vistas do processo, depois que Luiz Edson Fachin e Carmen Lúcia votaram contra a medida, por entenderem que Moro, ainda que tenha autorizado ações “heterodoxas”, não deu causa para ser considerado parcial.
O que ele precisaria fazer mais para ser considerado parcial no caso Lula? Dar um tiro no réu?
Quando Gilmar Mendes devolver o HC e votar, restarão ainda os votos de Ricardo Lewandowski e de Celso de Melo.
Se os três seguirem o exemplo do tribunal espanhol, colocarão a Constituição acima da lenda criada em torno de Moro, a de que ele é um juiz justo e imparcial, e darão um basta na farsa maior da Lava Jato.


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