Psiquiatra afirma que Bolsonaro não é caso clínico, mas criminal
Créditos: Flickr/Ministério da Saúde |
Assim como outras políticas públicas aperfeiçoadas entre 2003 e 2014, a atenção em saúde mental também está sob ataque desde o golpe de 2016. Um dos mais fortes marcos nesta série de recuos ocorreu em abril de 2018, quando o Ministério da Saúde reorientou recursos do segmento, ampliando em 87 milhões de reais a fatia para as chamadas comunidades terapêuticas – nome idílico que esconde, na maioria das vezes, ambientes manicomiais.
Começava aí uma forte guinada na política de atendimento aos doentes mentais e aos dependentes químicos, pessoas cujos destinos, no período anterior à chamada luta antimanicomial e à reforma psiquiátrica, eram quase sempre a internação compulsória, o degredo, o esquecimento.
Essa cultura do encarceramento dos considerados loucos havia cedido espaço ao longo de árdua luta pela reforma psiquiátrica, movimento dos coletivos de saúde iniciado ainda durante a ditadura e que desembocou, somado a outros coletivos pela reforma sanitária, no processo de elaboração constituinte e que continuou, décadas depois, a tentar mudar essa realidade. A partir de 2003, como demonstram dados apresentados ao longo desta reportagem, essa mudança conheceu sua fase mais favorável, com prioridade ao atendimento humanizado, sem internação, com equipes multidisciplinares e participação das famílias.
O governo Bolsonaro, então, aprofunda o retrocesso. O mais recente, a nova legislação nacional antidrogas, aprovada semana passada, que privilegia a internação e promove a ampliação de rentável mercado, o dos hospitais psiquiátricos – rentável para seus donos, obviamente. Some-se a isso o congelamento dos gastos em saúde e a suspensão dos repasses para a rede de atenção psicossocial, o desemprego crescente que amplia a população de rua e o culto às armas para os “cidadãos de bem” e pode-se imaginar aberta a temporada de encarceramento ou até mesmo de caça aos “diferentes”, entre os quais, os loucos – lembrem o episódio recente em Santo André, quando dois endinheirados mataram um catador por pura farra.
Nesta entrevista, o psiquiatra Roberto Tykanori, um dos mais reconhecidos especialistas brasileiros e ex- coordenador de Saúde Mental do Ministério da Saúde do governo Dilma, compara a concepção do atual governo sobre o tema com a política inspirada na luta antimanicomial. E, sobre o governo, diagnostica: “Olha, eu não acho que eles sejam doentes mentais. O que ele está fazendo são crimes. Crimes contra a Constituição, crimes contra os direitos, são crimes contra a humanidade. A meu ver deveriam ser tratados como criminosos. Não como doentes”.
Acompanhe:
Professor, há o que se comemorar no tema da luta antimanicomial?
Tykanori: O Dia 18 de Maio, desde que foi concebido, em 1987, não é um dia de comemoração. É um dia de luta. Dia da Luta Antimanicomial. Lá, o que se visava era divulgar, debater, tornar pública a crítica aos manicômios. E ganhar adeptos na sociedade civil. Óbvio que hoje, depois de 31 anos, tem um gosto de comemoração, de conquista, mas continua sendo um dia de luta. Mas, nacionalmente, ainda há a consciência de que há muito o que ser conquistado, ainda há muito a ser consolidado em termos de conceito, em termos de consenso social. Agora, acho que essa sua pergunta se refere ao contexto atual.
Sim.
Hoje, acho que a principal questão, que pode confundir um pouco, é que as lutas setoriais precisam ser vistas dentro de um contexto de lutas mais geral.
Como que as pessoas que se envolvem na luta antimanicomial voluntariamente, ou por necessidade pessoal ou familiar, podem convencer outras, que acreditam não ter nada a ver com isso? Como conquistar mais fatias da população a se envolver nesse debate?
O processo de construção da ideia de uma sociedade sem manicômios corre ao lado da ideia de construção de uma sociedade civilizada, uma sociedade fundada no Estado de Direito. Que possa ser inclusiva ao extremo. Numa sociedade assim não há espaço para os manicômios. Aí, não teríamos nenhum tipo de manicômio, nenhum tipo de segregação, nada que justifique o uso da força. Isso está no cerne da luta antimanicomial. Hoje a situação é grave porque, em 1987, nós estávamos saindo, no meio do processo da constituinte, logo depois vem a promulgação da Constituição, então todo o período de construção da luta antimanicomial acompanha a construção dessa República que se funda naquele momento. Há uma ruptura do consenso social histórico, essa é a questão. Em 88 construiu-se, aos trancos e barrancos em frente à história da ditadura, um pacto social em torno da Constituição. Não há como a gente, que é de um setor específico, não ficar preocupado, não sentir-se profundamente agredido, com o desmonte do Estado de Direito. Se você ataca as bases do Estado de Direito, não há nada, não há luta setorial que se sustente, muito menos a luta antimanicomial, que é muito vulnerável.
Houve uma disposição para o consenso, esse é um ponto. Neste momento, nós não vivemos uma disposição para o consenso, ao contrário. Nós temos uma situação em que uma fração da sociedade que não quer consenso, que acha que tem uma verdade pura que deve ser imposta ao restante das pessoas. É uma situação mais complexa, porque não tem uma porta para o consenso. Apesar das leis, o governo age, faz um decreto, e depois discute se é legal ou se não é. Há um abandono da relação política.
Tykanori: o sistema humanizado atende mais pessoas, com menor custo
A reforma da Previdência, tal como proposta pelo governo, segundo muitos analistas, vai danificar, ou mesmo destruir, os pilares da Seguridade Social, no qual se insere o SUS também, e consequentemente a saúde mental, não é?
Na reforma da Previdência, vivemos uma situação confusa. Existe uma questão técnica, que o mundo do trabalho não absorve mais tanta gente. Com a automação, perderam-se muitas vagas. As pessoas vão se deslocando para o setor terciário. Então esse setor também incha, porque também vem sendo automatizado. Por isso, poucos conseguem contribuir para a Previdência geral. Então, existe um problema de cálculo atuarial ao longo das décadas, com certeza. Agora, disso para dizer que o problema é imediato, que nos próximos três anos tem de economizar 1 trilhão de reais, etc e tal, parece uma piada. Ao mesmo tempo em que dizem isso, retiraram 600 bilhões da Previdência para passar para o Executivo, para a Economia (decreto da Presidência assinado em fevereiro redirecionou 606 bilhões de reais do chamado orçamento fiscal e da Seguridade Social para encargos financeiros da União). É muita manipulação de ideias. Acho que a toada atual, com muito fundamentalismo, quer fazer crer que tudo será resolvido pelo mercado. Existe um outro lado, que não é econômico, mas sim um fundamentalismo político e religioso, que prega que tudo será organizado se houver uma moral, e essa moral é aquela que “o que é bom pra mim é ruim pros outros”. E a ideia de que essa moral quer ser imposta a todo custo, talvez seja o pior problema. É o abandono da política, o abandono da conciliação, é o abandono da composição. É necessária, na minha visão, a capacidade de a sociedade se compor e dizer: “Olha, isso não vai dar certo”. Quando você me diz se existe um ícone (na busca pelo consenso social), eu digo que existe, mas ele está inabilitado, porque ele está preso. Mas ele solto, ele falando, certamente é um motor de consensualização. Isso ele mostrou ao longo dos anos, não só como presidente mas por toda sua vida política.
O senhor fala em aprisionamento, isso me remete a essa ideia, defendida por muitos, de que pessoas que sofrem de algum tipo de sofrimento mental ou de algum tipo de dependência precisam ser internadas, voluntariamente ou não, o que me parece uma espécie de prisão. Por que os conservadores em geral, e este governo em especial, têm tanto apreço pela ideia de que as pessoas precisam ficar trancafiadas?
Em cru: a história da sociedade brasileira demonstrou que quando o Estado compra esse tipo de ideia, quem a vendeu, os seus defensores, sabem que uma pessoa presa dá muito dinheiro. Por quê? Porque a pessoa vista como pária, como sem valor, ou perigosa, o resto da sociedade agradece que essa pessoa seja encarcerada, certo?
Tirem da minha vista, não é?
Tirem da minha vista. Ninguém vai reclamar e ainda te dá dinheiro. Se você ajuda uma pessoa dessa que é julgada sem valor, melhora a vida de toda a sociedade. Por outro lado, se você aprisiona essa pessoa, não melhora em nada a vida da sociedade.
Se o conceito de encarceramento, de internação compulsória, se tornar dominante, existe a possibilidade de menores carentes serem internados sob o pretexto de usarem drogas, moradores de rua serem retirados à força?
Isso acontecia regularmente, antes, tanto a população de rua quanto crianças de rua serem levados para manicômios à força, serem raptados. Porque na rua elas não valem nada, nos manicômios elas valem muito para os donos do hospital. Existe um risco de que esse tipo de situação retorne. Mas entendo, não sei se sou otimista, que hoje temos um acùmulo de 30 anos de luta que não se limita apenas a quem trabalha ou milita nessa área, mas se estende às pessoas, aos jornalistas, igrejas e na sociedade como um todo, que entende que esse tipo de solução não é uma boa alternativa. Até porque a reforma psiquiátrica e as mudanças que propôs vêm mostrando respostas positivas e concretas no cuidado com essas pessoas. Há déficits ainda por aí, mas ela mostra que atende mais gente, mais eficazmente, prolonga mais a vida das pessoas, do que o sistema anterior. As comunidades que têm pessoas com transtornos sabem disso. Antes a internação era a única solução. Hoje há mais gente que não crê mais nisso.
Uma mãe, um pai, uma esposa, um marido, enfim, que tenha alguém na família que dê problemas recorrentes por causa do uso de substâncias químicas, pode achar melhor, mais conveniente, num primeiro momento, que esse ente seja retirado do convívio e passe um tempo isolado. Isso é verdade ou isso é enganoso?
Para se isolar das relações aviltadas, para a pessoa não ficar só brigando o tempo todo, isso sim. Mas isso não significa que a pessoa tem de ficar isolada. Uma coisa é o atrito que se dá entre duas pessoas, três, quatro. É aquela relação que está aviltada. Isso não significa que essa pessoa não possa estabelecer outras relações úteis, alimentadoras, em outros ambientes. A ideia de que uma relação aviltada deva levar ao isolamento é equivocada. Isolamento, ao contrário, não traz benefício pra ninguém. Isolamento leva literalmente à desumanização. A pessoa perde as referências humanas. Essa ideia de que o isolamento faz parte do tratamento não faz sentido. Sair do caos, sim, faz sentido. Por isso é que a reforma psiquiátrica preconiza que sim, se necessário, a pessoa possa ser encaminhada para o afastamento do ambiente de maior atrito, isso sim.
Existem estatísticas que demonstrem as taxas de reabilitação de um modelo comparado a outro?
Vamos usar um termo mais geral: indicador de sucesso. A primeira questão, se formos comparar, é literalmete quantitativa. Qual a demonstração da experiência brasileira de reforma psiquiátrica brasileira de 2002 para cá? Basicamente, com o mesmo percentual do orçamento federal, na média 2% do orçamento do Ministério da Saúde – que se manteve mais ou menos estável nesses anos todos – você atende 50 vezes mais pessoas do que antes. Porque se gastava muito dinheiro com poucos hospitais. E esse dinheiro não se revertia em benefícios para o conjunto da população. Proporcionalmente, poucas pessoas eram atendidas com muito dinheiro. O que aconteceu ao longo do tempo? Os recursos do governo federal passaram a ser destinados aos CAPS. Foi havendo cada vez mais recursos para a rede CAPS e cada vez menos para os hospitais. E acompanha essa curva descendente de recursos para os hospitais o aumento do número de pessoas da população atendidas. Essa é a primeira questão. Hoje, muito mais pessoas são atendidas e custa o mesmo X.
Isso não tem a ver com o sucesso do ponto de vista clínico, mas tem a ver com o sucesso do ponto de vista de administração. Do ponto de vista clínico, existe uma geração inteira que nunca passou por um manicômio. Nunca passou por internações prolongadas em hospitais psiquiátricos. O quadro clínico desses pacientes hoje é muito diferente do quadro clínico, digamos caricato, de quem passou por manicômios. Não é que nós encontramos a cura dos doentes mentais, é que eles se encaixam hoje em outro contexto. Tende a haver mais pessoas que mantêm minimamente suas capacidades, muita gente trabalhando, alguma atividade produtiva, mantêm suas articulações e suas relações. Então, qualitativamente, é bem claro: as pessoas têm uma vida melhor. Elas adquirem algum grau de respeito e conseguem respeitar.
Eu quero levar para uma outra abordagem: esse governo, assim como seus apoiadores, tem entre seus quadros pessoas que questionam a validade da vacinação, colocam em dúvida se a Terra é redonda ou não, há quem negue as mudanças climáticas. Nesse quadro de negação das descobertas científicas, das evidências históricas, onde se encaixa, na cabeça desses caras, a questão da saúde mental?
Bem, eu não sei. O que eu sei é que existe a intenção de criar um mercado lucrativo. O resto é discurso. Agora, é verdade: como lidar com um governo que diz que a Terra é plana, que nega o Holocausto, daqui a pouco vai negar a Segunda Guerra, a escravidão? Esses discursos radicais, tolos, são feitos deliberadamente. Parece que quanto mais chocantes, mais os outros ficam paralisados. Mas me parece que não conseguem nem criar unidade no campo do governo. O governo está se esfacelando.
Por fim, o que o senhor receitaria para Bolsonaro e seus ministros? Internação, hospital-dia ou CAPS?
Olha, eu não acho que eles sejam doentes mentais. Existe no campo da psicologia e da psiquiatria um conceito que se chama perversão. A ideia de perverso é aquele que distorce a situação. É um desvio de personalidade, é uma personalidade antissocial. A gente tem de entender isso pelo que existe de Estado de Direito. O que ele está fazendo são crimes. Crimes contra a Constituição, crimes contra os direitos, são crimes contra a humanidade. A meu ver deveriam ser tratados como criminosos. Não como doentes.
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