Ressentimento de excluídos alimenta massacres dos zumbis na nova ordem global

Por Wilson Roberto Vieira Ferreira - no CINEGNOSE - 23/03/2019

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“Incels” (Celibatários Involuntários), “Hominis Sanctus”, PUA (Pick-up Artists), formas violentas de socialização masculina (macho alpha etc.) e uma variedade de pseudociências e conspirações LGBTs e feministas contra os homens formam um ecossistema de informação de fóruns e chans da Internet e Deep Web que se transformaram em “exército psíquico de reserva” – usina de ressentimento e ódio que alimenta ataques e massacres como em Toronto, Realengo, Suzano e Nova Zelândia. Um exército de zumbis à espera de cripto-comandos, sejam presentes em videogames ou em discursos de extrema-direita de um Trump ou de um Bolsonaro. Nova ordem global representada pela ascensão do nacionalismo de direita na qual o capitalismo precisa eliminar ou “reciclar” os excluídos (aqueles que nem para serem explorados servem mais). Os que não forem eliminados pelas políticas de redução populacional, tornam-se doadores psíquicos de ressentimento que legitima o Estado policial e militar – aparelho repressivo necessário num cenário de pulverização de garantias e direitos sociais.

Nietzsche foi um curioso das manifestações humanas e se debruçou num dos grandes sofrimentos da alma: o ressentimento. O filósofo alemão entendeu a urgência em estudar um tipo de sentimento relacionado ao sofrimento de alguém que não consegue exterioriza-lo.
Se Karl Marx destacou a opressão das relações de exploração econômica da luta de classes e a onipresença da ideologia da classe dominante que mascarava a realidade, Nietzsche foi por um outro caminho: buscar a raiz desse sofrimento da alma através da genealogia da moral – como os valores (principalmente religiosos) são criados através da história nas relações entre dominantes e dominados, senhores e escravos, forte e fracos.
Como o silêncio dos dominados, impotentes e covardes para lutar pelos seus sonhos, transforma-se em ressentimento cuja principal característica é ruminar esta opressão e planejar, por um longo período, uma vingança. Mas principalmente a vingança em um bode expiatório, responsabilizado pelo seu próprio imobilismo.

Nietzsche: o filósofo do ressentimento

Certamente a direita compreendeu melhor essa filosofia do ressentimento do que a própria esquerda – enquanto os movimentos a esquerda tentaram arregimentar as massas com o discurso economicista, a direita sempre empregou a mais atual tecnologia de comunicação de cada momento (do rádio e cinema a dispositivos móveis e redes sociais) para catalisar esse ressentimento e transforma-lo num evento político e social.

Momento de inflexão

Hoje o modo de produção capitalista vive um momento de inflexão: depois da implacável globalização e financeirização do capitalismo das últimas décadas (marcado pela precarização, desregulamentação do trabalho, salários miseráveis, relações de exploração invisíveis por trás de plataformas tecnológicas e misteriosas transações econômicas na sombra do espaço digital), o capitalismo criou um número cada vez mais crescente de excluídos: aposentados, idosos, desempregados, desalentados, biscates, refugiados, inválidos e toda sorte de “excremento social”, resto que foi expelido do sistema digestor no qual o lucro é privatizado através de complexas transações e lavagens de títulos e papéis em tempo real, enquanto o prejuízo é socializado – principalmente nos crashs, como na explosão da bolsa imobiliária de 2008. 


Uma massa de excluídos ressentidos, porque se achavam os filhos preferidos de um futuro que prometia a bem-aventurança: a globalização como uma “estrada para o futuro” (Bill Gates”) na qual a tecnologia prometia a “inteligência coletiva”, o “capital do conhecimento” e outros messianismos. E tudo que foi entregue foi o chamado “capitalismo cognitivo” – treinamento para serviços comerciais e financeiros precarizados pelo uso da tecnologia digital, dentro de organizações flexíveis pós-fordista. 
Chegamos a um ponto de Inflexão, porque agora chegou o momento de dar um destino a esse “excremento” (que nem para ser explorado serve mais), sob pena do risco de anomia ou ruptura da ordem política. 
Um destino pela eliminação física pura e simples (redução populacional forçada através da promoção de guerras, violência e criminalidade mediante desregulamentação da posse e porte de armas, destruição da seguridade social ou envenenamento por transgênicos e agrotóxicos), ou pela “reciclagem”, tornando os excluídos mais uma vez funcionais ao sistema, só que de uma forma perversa.

Reciclagem do “excremento social”

Primeira forma de reciclagem: através da religião ou inúmeras associações de autoajuda (que, no final, são uma coisa só), transformar o ressentimento em sentimento de culpa. Culpar a si próprio pelo fracasso e procurar em Deus, na “Teologia da Prosperidade” neopentecostal ou no “pensamento positivo” da autoajuda a expiação da culpa como o ticket de entrada na terra do sucesso. 


Segunda (e mais perversa) forma: direcionar a energia bruta do ressentimento para o acionamento de um exército de zumbis de apoio ao próximo salto do capitalismo globalizado: o populismo nacionalista de direita por trás da turnê de Steve Bannon na Europa, nos laboratórios de teste do Brexit e nas vitórias eleitorais de Trump e Bolsonaro, capazes de dar uma tradução política ao ressentimento dessa massa de excluídos ressentidos com a globalização.
Como Nietzsche apontava, o ressentido silenciosamente rumina a sua vingança. O linchamento virtual em redes sociais a cada voz de comando de Trump e Bolsonaro contra o bode expiatório da vez (liberais, marxistas culturais, Lei Rouanet, STF etc.) é um simples exemplo de atuação desses zumbis, cuja violência promete transbordar do virtual para o real – milícias são o principal esboço disso.
Porém os tiros e massacres de tragédias como em Suzano/SP, o massacre de 49 pessoas em duas mesquitas em Christchurch (Nova Zelândia), sem falar no ataque a uma mesquita na cidade de Quebec matando seis pessoas em 2017, apontam que está em marcha os zumbis de um exército de supremacistas – brancos com perfil sociopata, jovens “losers” sem perspectiva sociocultural , humilhados e ressentidos que reagem num planejamento de vinganças em uma realidade paralela – realidade na qual são vítimas de conspirações feministas, muçulmanos, LGBTs, globalização comandada pelo marxismo cultural etc.


Do terror islâmico ao supremacista zumbi

O processo geopolítico da globalização econômica foi acelerado no século XXI com a gigantesca false flag e inside job dos ataques de 11 de setembro de 2001, resultando na “guerra ao terror”, a criação do terror islâmico com seus homens bombas e atiradores que gritam “Allahu Akbar!” (“Alá é Maior!”) antes de matar todo mundo e a si mesmo. Não sem antes deixar convenientemente seu passaporte em lugar visível para a polícia encontrar e a mídia repercutir a identidade de um RAV – russos, árabes e vilões em geral... 
Charlie Hebdo, Champs Elysées, Manchester, Berlim, Londres, Nice, Bruxelas, todos ataques “não-acontecimentos” (clique aqui), quase duas décadas de “psy ops” para tentar reunificar a Europa e o Ocidentes após crise de 2008 sob o discurso do “choque das civilizações”.
Agora, o turbo-capitalismo financeirizado que criou excluídos em massa precisa livrar-se ou “reciclar” esse excremento social. O recrutamento já começou no ecossistema de informação de fóruns da Deep Web de adolescentes e estudantes universitários sem perspectivas, “losers” cujo ressentimento colide com os ideais “self made man” de sucesso – uma geração que teve mais acesso à escolaridade do que seus pais, mais que se sentem fracassados num quadro de precarização e desemprego.
Fóruns como o Dogolachan (conectado ao massacre de Suzano), o “Hominis Sanctus” (ligado ao massacre do Realengo em 2011 – site de fundamentalismo religioso e de intolerância a homossexuais, judeus e, sobretudo, mulheres) ou os “Incels” (grupo de celibatários involuntários e que culpam as mulheres e homens sexualmente ativos por não conseguirem ter relações sexuais) por trás do atropelamento com uma van em Toronto que matou dez pessoas são alguns exemplos – clique aqui.
Sem falar de fóruns ou os “chans” da Deep Web de PUA (Pick-up Artists) que naturalizam o assédio e o estupro porque veem as mulheres não como seres humanos, mas como “um código a ser decifrado” através de “treinos para seduzir” – clique aqui.


Jovens com sérios problemas de socialização que buscam nos outros a culpa do fracasso material e existencial. Jovens cujo ressentimento cria um bizarro senso de auto merecimento e auto reconhecimento (por exemplo, visto no sinal da supremacia branca feito com as mãos pelo atirador de Christchurch ao ser preso ou no uso performático de bestas, machadinhas ou câmeras para imortalizar os “feitos heroicos”) presente no discurso extremista no qual se veem como “homens santos” que nada mais fazem do que realizar seus destinos manifestos.
Formam um senso de comunidade cujo ódio e ressentimento criam uma forte coesão identitária. Todos apenas à espera de um sinal, um gatilho cognitivo que dispare um novo massacre ou linchamento virtual ou real. Um gatilho que pode ser dado desde um simples videogame (que não surge aqui como causa, mas como instrumento involuntário e perverso) até os cripto-comandos de discursos de extrema-direita proferidos por Trump ou Bolsonaro.
  Dessa forma essa massa de excluídos transforma-se não mais em exército industrial de reserva (massa de desempregados cuja função clássica era arrochar salários pela relação oferta-procura no mercado de trabalho), mas um exército psíquico de reserva – zumbis ressentidos, cheios de ódio à espera de um comando para o acerto de contas contra meninas, como em Realengo; muçulmanos, como na Nova Zelândia; mulheres e homens sexualmente ativos, como em Toronto e assim por diante. 
Qual o sentido geopolítico nessa nova ordem global do nacionalismo de direita? Justificar um Estado militarizado e policial de exceção. Um Estado forte não mais como garantidor do bem-estar social. Mas agora um Estado implacável na solução final para o “excremento social” produzido por décadas de globalização.
Um pequeno esboço disso está na resposta do ministro da Educação Ricardo Vélez aos tiroteios em Suzano: militarizar a escola Rui Brasil - “a viabilidade do modelo cívico-militar”, enquanto parlamentares governistas propõem que professores sejam armados...

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