Lenio Streck: Ministro Barroso, minha dor é perceber que apesar de tudo, tudo...
SENSO INCOMUM
Por Lenio Luiz Streck - no CONJUR - 24/01/2019
Por Lenio Luiz Streck - no CONJUR - 24/01/2019
Lenio Luiz Streck |
Abstract: Pensei muito se escreveria esta coluna. Afinal, quem se interessa por garantias constitucionais em (i) um país em que querem tirar até o direito de banho de sol dos presos e (ii) um ministro do STF acha o garantismo tolerante?
Direto ao ponto: Duas declarações do ministro Luís Roberto Barroso, dos últimos dias de 2018, espantaram (ou não). No jornal Zero Hora, criticou o garantismo, acusando os seus defensores de serem “tolerantes” com esse “quadro geral” do país, verbis:
“Há visões como a minha, que essa é uma oportunidade que não se pode desperdiçar para mudar o patamar ético do país, e há uma visão – que tem sido apelidada de garantista – que é mais tolerante, digamos assim, como esse quadro geral que nos trouxe até aqui”.
Portanto, para ele, o garantismo não é ético. Querendo ou não, menoscabou o trabalho de décadas do ex-juiz Luigi Ferrajoli[1] e de centenas de penalistas, processualistas e constitucionalistas de todo o mundo. Não vou nomeá-los. A lista aqui não caberia. No meu caso, fui um dos responsáveis pela introdução do garantismo no Brasil, sem deixar de mencionar a tese doutoral do professor Sergio Cademartori, cuja banca compus. Embora se possa dizer que cumprir estritamente a Constituição já seja, de per se, o próprio garantismo. Nem precisaríamos do garantismo, fossemos ortodoxos na aplicação da Constituição Federal.
Indago: O que o ilustre ministro Roberto Barroso quereria dizer com “há uma visão — que tem sido apelidada de garantista — que é mais tolerante”? De que garantismo estaria falando? Ora, um jurista como Barroso, que fez a vida defendendo a Constituição, não pode desconhecer que o garantismo é nada mais e nada menos do que cumprir a legalidade constitucional. Garantismo é fazer democracia a partir do Direito. Uma lei só é válida se for conforme a Constituição (diferença entre vigência e validade, por exemplo). De novo, isso é nada mais do que a Constituição Normativa de Ferrajoli e a Força Normativa da Constituição de Hesse.
Assim, no que o fato de cumprir a Constituição tem de “leniente” ou “tolerante” com “esse quadro geral”? É ruim cumprir a Constituição e os Códigos? Se o garantismo significa — e isso é verdadeiro — cumprir as garantias constitucionais à risca, por qual razão o Ministro diz que isso é ser “tolerante”? Tolerante com o crime ou com o arbítrio de quem aplica a lei? Não vou transcrever, aqui, trechos de livros, petições e pareceres do Professor Barroso para mostrar a sua antiga e clara faceta garantista e garantidora. Apenas lembro a discussão que teve com o ministro Marco Aurélio quando do julgamento da AP 470. Disse frases extremamente garantistas, como “O que vai sair no jornal do dia seguinte não faz diferença para mim”. (...) Não julgamos para a multidão, julgamos pessoas.” Passou um tempo e o ministro deu um salto para trás e passou a fazer coro com algo parecido com o dualismo metodológico do final do século XIX (realidade social versus realidade normativa). O que aconteceu?
Registro que, não faz muito, um grupo de membros do Ministério Público fez um manifesto anti-garantista. Não quero crer que o ministro Barroso esteja de acordo com o tal manifesto, apelidado de “bandidolatria”, cujo conteúdo era exatamente este lema: quem é garantista é tolerante com o crime (sic).
Na verdade, ao ler a entrevista do ministro Barroso, só posso concluir que o garantismo por ele combatido — assim como por parte da comunidade jurídica — é um espantalho (straw man argument). O “garantismo-espantalho” criticado não tem nada a ver com o iluminista patamar do cumprimento das garantias previsto numa coisa bem tradicional e conservadora: a Constituição. A menos que cumprir à risca a CF seja uma coisa indesejável. Lembro que o garantismo, na sua versão “no-straw”, está baseado em dez princípios INEGOCIÁVEIS, dos quais o mais simples deles é, pasmem, o da legalidade estrita (queremos algo mais democrático do que isto?); mas tem mais standards inegociáveis, como a exigência de contraditório, o respeito às garantias penais-processuais como condição de possibilidade, a acusatoriedade, etc. Precisa dizer mais?
Só mais uma coisa: se o garantismo advoga a estrita legalidade constitucional, por qual razão seguir essa tese seria ser-tolerante-com-“esse-estado-de-coisas” (crime, etc)? Tolerância não seria exatamente não seguir, em uma democracia, a estrita legalidade constitucional (aqui sempre homenageio, além de Ferrajoli, o grande Elias Diaz)?
Sigo. Para completar, dias antes, o ministro Roberto Barroso publicou, na ConJur, um artigo no qual disse que precisamos atravessar a “tempestade” para alcançar a “nova ordem” [sic]. Criticou os defensores do passado, em um parágrafo recheado de ambiguidades, verbis:
"Na velha ordem era legítima a apropriação privada do Estado por elites extrativistas, o desvio de dinheiro público para o bolso e para as campanhas eleitorais, assim como o fisiologismo, o nepotismo, os superfaturamentos, os achaques e o compadrio. A nova ordem que procura nascer reflete a imensa demanda que se desenvolveu na sociedade brasileira por integridade, idealismo e patriotismo. Estamos procurando mudar paradigmas inaceitáveis e empurrar a história na direção certa. As resistências são muitas. Nós não somos atrasados por acaso. Somos atrasados porque o atraso é bem defendido."
Velha ordem e nova ordem. O que seriam essas coisas? “O atraso é bem defendido”, acusa o ministro. Pois bem. Essa frase — dita por ele, na minha leitura, em um misto de ironia e sarcasmo — encaixa perfeitamente com a entrevista ao jornal Zero Hora, em que criticou o garantismo, como mostrei acima. Mas vejamos. Existe um grau zero? Explico: O ministro é professor titular da Uerj, fez, no mínimo, duas pós-graduações, fez pós-doc, recebeu financiamento público para estudar (eu também), foi brilhante procurador do Estado e teve enorme sucesso como advogado público e privado. Como causídico, sua carteira de clientes sempre foi invejável (sonho de qualquer advogado). Defendia seus clientes muitíssimo bem, buscando sempre suas garantias processuais. Garantismo na veia! Podemos dizer, então, que ele foi um bom garantista, pois não?
Bom, isso ocorria na velha ordem patrimonialista que o ministro denuncia e deplora, em que não havia idealismo e nem patriotismo (sic), e em tempos em que não se “empurrava a história” (pego as exatas palavras do Ministro, que repete o que já havia dito quando de sua tese em favor de um Supremo “iluminista”). Daí a pergunta: o atraso — que é “bem defendido”, segundo ele diz — tem efeito ex nunc? Por qual razão o garantismo (ou o apelido que tenha) ficou ruim nos últimos anos? Veja-se o caso Battisti, tão bem defendido pelo então advogado Luis Roberto Barroso. E tantos outros clientes tão bem defendidos pelo então advogado Dr. Luis Roberto Barroso.
Então: Todos os cretenses são mentirosos; eu sou cretense. Logo, “como sair desse paradoxo?” perguntava-se o cretense? Penso que não preciso explicar o paradoxo do cretense.
Tudo para dizer: tá legal, eu aceito o argumento, Ministro. Mas só se ele tiver efeito ex tunc. Nós, cretenses, temos de assumir, cada um, a sua parcela nesse/desse butim. Como disse bem Gadamer, não existe um Bodenlosigkeit(um lugar sem fundamento, um ponto arquimediano, enfim, não há um grau zero de sentido).
Numa palavra final, quero dizer ao Ministro Barroso, com todo a lhaneza, carinho e respeito que por ele tenho desde os tempos de agradável convivência no Grupo Cainã de Estudos Constitucionais criado por iniciativa de Jacinto Coutinho e Aldaci Coutinho, parafraseando Belchior (e Elis) na música “Como os Nossos Pais”: minha dor é perceber que, apesar de tudo, tudo o que já escrevemos a favor da Constituição e das garantias iluministas, ainda parece que o Direito, na hora do “pega para capar”, é o mesmo[2] dos tempos em que não havia Constituição e o regime era autoritário, em que havia uma dogmática jurídica que dependia do judiciário (realismo retrô), que julgava a seu bel prazer (isso mudou? Ou piorou?), mesmo porque nem Constituição democrática havia. E então veio a nova Constituição Federal. E apesar de tudo, tudo, tudo o que ela diz... ainda somos os mesmos? E o fato de o Direito (penal) agora pegar também os ricos não quer dizer que ele — o Direito — tenha melhorado... Punir mais não quer dizer punir melhor.Podemos e devemos punir quem transgride a lei, só que precisamos, para isso, garantir as garantias previstas nessa velha e serôdia coisa chamada... Constituição.
Minha dor é perceber tudo isso, ministro.
[1] Há um grupo de promotores que diz que Ferrajoli é marxista...
[2] Para mim, não. E por uma razão simples. Porque sigo em uma ortodoxia constitucional. Como Ferrajoli e seu garantismo. E, atenção: garantismo não serve só para direito penal e processual penal. Serve para todos os ramos do Direito. Veja o garantismo do processo civil (aqui), não podendo esquecer, nessa trilha, o trabalho do juiz Eduardo Fonseca da Costa e os processualistas da América Latina.
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