Geopolítica e fé, por José Luís Fiori


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Por José Luís Fiori             
While the US government is moving toward a policy of regime change in Venezuela, its action may simply lead to a prolonged standoff.
Stratfor Worldview, Daily Brief, Oct, 4, 2018
Três anos depois do início das sanções econômicas americanas contra a Venezuela, o presidente, Donald Trump anunciou, numa entrevista coletiva no estado de New Jersey – concedida no dia 14 de agosto de 2017 – que os EUA poderiam fazer uma ação militar na Venezuela. E, um ano depois, no dia 8 de agosto de 2018, o jornal NYT noticiou que de fato, vários funcionários americanos já haviam se reunido com militares venezuelanos, para promover a derrubada do presidente venezuelano, Nicolás Maduro.
Por outro lado, e dentro deste mesmo tabuleiro, no mesmo mês de agosto de 2018, o presidente venezuelano visitou Pequim e recebeu o apoio político e financeiro do presidente Xi Jinping, assinando 28 acordos de cooperação com a China, nas áreas de energia e mineração – acordos que alargam e aprofundam uma relação econômica de mais de uma década, que já superou a casa dos 50 bilhões de dólares emprestados ou investidos em 780 projetos econômicos financiados pelos chineses ou montados em parceria com os venezuelanos.

Paralelamente, o presidente Maduro visitou e foi recebido na cidade de Moscou como um “aliado estratégico” da Rússia, com quem assinou acordos de investimento, no valor de R$ 6 bilhões de dólares, destinados aos setores de petróleo e mineração de ouro.
Mas não há dúvida que este “conflito anunciado” mudou de qualidade, no dia 10 de dezembro do ano passado, quando aterrissaram no aeroporto internacional de Caracas dois bombardeiros estratégicos TU-160, um avião de transporte militar AN124, e uma aeronave IL-62, da Força Aeroespacial da Rússia, para participar de exercícios militares conjuntos com as forças venezuelanas.
Neste momento, como toda certeza, a Venezuela mudou de posição no cenário internacional e passou a ocupar um outro lugar, muito mais importante, na competição entre as três grandes potências que lutam pelo poder global, neste início do Século XXI.
Uma disputa aberta e sem fim previsível que se acelerou na segunda década do século, depois da posse de Vladimir Putin e Xi Jinping, em 2012 e 2013, respectivamente, e ainda mais, depois da posse de Donald Trump, em janeiro de 2017.
Como todos os analistas já entenderam, Donald Trump abandonou a velha política norte-americana de apoio e promoção ativa de regras e instituições de governança multilateral e adotou como bússola de sua política externa, o modelo westfaliano de solução dos conflitos mundiais, através da competição e do uso agressivo do poder econômico como arma de guerra, e o uso permanente da ameaça militar para o caso em que as sanções econômicas não funcionem.
Numa luta sem quartel e sem religião, orientada pelo mesmo nacionalismo econômico da Rússia e da China, e de todas os demais países que tem ainda algum peso dentro do sistema mundial.
O petróleo não é a causa de todos os conflitos do sistema internacional. Mas não há dúvida que a grande centralização de poder que está em curso dentro do sistema interestatal também está transformando a permanente luta pela “segurança energética” dos estados nacionais, numa guerra entre as grandes potências pelo controle das novas reservas energética que estão sendo descobertas nestes últimos anos.
Uma guerra que se desenvolve palmo a palmo, e em qualquer canto do mundo, seja no território tropical da África Negra, ou seja nas terras geladas do Círculo Polar do Ártico; seja nas turbulentas águas da Foz do Amazonas, ou seja na inóspita Península de Kamchatka.
Mas não há dúvida que as descobertas mais importantes e promissoras deste início de século, foram a das areias betuminosas do Canadá, do pré-sal brasileiro, e a do cinturão do rio Orinoco, na Venezuela. O cinturão do Orinoco transformou a Venezuela na maior reserva de petróleo do mundo, calculada hoje em 300 bilhões de barris; enquanto as areias monazíticas transformaram o Canadá na terceira maior reserva, estimada em 170 bilhões de barris, logo depois da Arábia Saudita, mas muito à frente do Brasil que assim mesmo saltou para o décimo quinto lugar do ranking mundial, com reservas estimadas de 13 milhões de barris; sem levar em conta, evidentemente, as estimativas de alguns centros de pesquisa que falam deque haveria até 176 bilhões de barris de reserva em nos todo o “polígono do pré-sal” brasileiro.
Se somarmos a isto o salto da produção americana de petróleo e de gás, nos últimos três ou quatro anos, produzido pelo “fracking boom”, entenderemos porque o continente americano está se transformando no novo grande foco da geopolítica energética mundial.
E entenderemos também, duas outras coisas: a decisão norte-americana de voltar a ser o maior produtor de petróleo do mundo, e o pivot ou controlador – em última instância – dos níveis de produção e preço do mercado mundial de petróleo.
O problema é que agora, do outro lado desta disputa, já não está apenas a OPEP, liderada pela Arábia Saudita, que segue sendo um “estado-cliente” dos Estados Unidos, e está a Rússia, que é o segundo maior produtor mundial de petróleo, e que está cada vez mais próxima e articulada com a OPEP, e com a própria Arábia Saudita. E está também a China, cada vez mais interessada em diversificar e garantir o seu fornecimento de energia, impedindo ao mesmo tempo que os Estados Unidos imponham sua supremacia e o seu controle sobre o mercado do petróleo, somando-o ao controle que já exercem sobre a moeda de referência internacional.
E tudo indica que esta disputa deverá se acirrar ainda mais no ano de 2019, quando os EUA estarão tentando aumentar a produção mundial de óleo, enquanto a Rússia e a OPEP estarão forçando na direção contrária. No mesmo ano de 2019, aliás, em que a OPEP estará sendo presidida pela Venezuela, e a Rússia talvez esteja entrando na organização com o apoio da Arábia Saudita.
Dessa perspectiva, talvez se possa compreender melhor a “ordem unida” que os norte-americanos decidiram impor dentro do seu hemisfério, e o enfrentamento geopolítico e geoeconômico que se anuncia na Venezuela.
Dentro deste quadro de enorme complexidade econômica e geopolítica, soa absolutamente delirante, quase infantil, imaginar que está sendo travada na Venezuela uma batalha em defesa da fé cristã, e dos valores e arquétipos da civilização ocidental.
Este tipo de visão milenarista costuma reaparecer de tempos em tempos, em certas idades, e em alguns momentos da história, mas não costumam chamar atenção nem causar maiores danos coletivos enquanto se mantenham como uma fantasia individual.
Mas tudo muda de feição quando estes arroubos milenaristas se transformam numa Cruzada que pode dar lugar à uma guerra insana, neste caso, envolvendo pelo menos três países da América do Sul que não tem a menor experiência, nem a menor competência técnica, logística e psicológica para fazer uma guerra com suas próprias pernas.
Em momentos como este, de grande exuberância teológica e entusiasmo salvacionista, é bom lembrar aos cruzados uma velha lição da história, a respeito destas “guerras santas”, entre pequenos “peões militares” terceirizados pelas grandes potências: depois que começam, elas não costumam ter fim.
Janeiro de 2019.

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