Sergio Saraiva: Não há Sol no país tropical

por Sergio Saraiva - julho 29, 2018 - Poesia

Uma história para entreter crianças durante a travessia de dias nublados e noites escuras.
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Um dia os poderosos da terra se aborreceram com o Sol.
O Sol incomodava especialmente os poderosos da terra. É compreensível. O Sol brilhava mais que os poderosos; e os poderosos não gostam disso. Mais ainda, o Sol brilhava para todos. E como dizem os poderosos: de que vale o Sol sobre o país, se o porteiro do prédio também pode desfrutar do seu calor e da sua luz. O poder cobra exclusividade.
Poderosos também gostam de fazer bons negócios. Aliás, é assim que se tornam poderosos. Logo, o Sol era um dificultador. Como luz para todos? Suas ações igualitárias em nada contribuíam para aumentar os lucros dos poderosos – que, no país tropical, sempre lucraram muito vendendo o bem público. E com menos lucros, ficam menos poderosos os poderosos.

Decidiram apagar o Sol. Mas não tinham poder para tanto. O Sol tinha brilho próprio. Decidiram então decretar que o Sol não existia. Para os fins práticos, era o que bastava.
Buscaram junto aos juízes uma decisão irrevogável que determinasse a inexistência do Sol. E um decreto do síndico que puseram para cuidar do condomínio que determinasse o uso de cortinas grossas e escuras nas janelas e a proibição de olhar para cima durante todo o dia e para o horizonte, nas manhãs e ao anoitecer. Os decretos dos poderosos são detalhistas; contratam especialistas que buscam cobrir as brechas legais, antes que elas sejam percebidas pelo homem comum.
Tornou-se também malvisto e não recomendável falar sobre o Sol em praça pública. E havia fiscais para ouvir as conversas e repreender os falastrões.
O país tropical se cobriu sombras – as sombras acariciam a pele branca dos poderosos. Esse, inclusive, era outro motivo de incômodo dos poderosos com o Sol. O Sol favorecia as gentes de peles morenas e mais escuras e sujeitava seus alvos a queimaduras de primeiro grau.
Tempos depois, porém, foi necessário endurecer as medidas de censura ao Sol. Malgrado tivessem os poderosos controlado o dia, havia a noite. E com ela a Lua e as estrelas – as pequeninas, mas incontáveis estrelas no céu – como que a dizerem: “somos milhões de sóis”.
E sob a influência noturna, alguns lunáticos escreviam cartas e poemas e os colavam nos postes. Diziam que mesmo de olhos fechados é possível imaginar o nascer do Sol.
Os poderosos entendem frases cifradas. Enviaram seus fiscais para internar em hospícios tais insanos.
Não era possível correr quaisquer riscos. Qualquer lembrança do Sol era perigosa. Estenderam as limitações solares à lunares e estelares – tornaram-nas universais. Proibidas a visão da Lua e das estrelas – buscava-se também interditar qualquer ilusão poética – qualquer imagem de um outro mundo possível sob o Sol. O humanismo romântico – fonte de distração que reduz a produtividade e a competitividade da economia nacional.
E essa, por último, era a ideia força apresentada ao público, para encobrir os reais interesses do poderosos: todas aquelas medidas duras eram para o bem da pátria. O Sol enganava o povo com promessas de prazeres impossíveis para todos. O Sol os corrompia – os aturdia com a sua luminosidade distributiva – e os tornava indolentes com o seu calor. A verdade da escuridão nos libertaria.
Professores ainda tentavam ensinar aos seus alunos de que se víamos uns aos outros era porque a luz existia entre nós. E que se havia luz, havia o Sol – fonte da luz.
Enviaram então – os poderosos – seus fiscais para constranger os professores a não tomarem partido do iluminismo. A verdade da inexistência do Sol exigia uma escola sem partido.
Todas essas medidas, no entanto, trouxeram apenas efeitos de aparência. O Sol é o maior evento político do país tropical. Pode-se até calar sobre o assunto, mas quem com um mínimo de racionalidade acreditaria que o Sol deixou de existir somente porque os poderosos e seus serviçais assim passaram a afirmar? E, aos poucos, os poderosos – sem deixar de ser poderosos – passaram a se tornar ridículos. Ridículos como seus bobos-da-corte que nos circos midiáticos fanfarronam que o Sol não existia mais. E que era o momento de pensarmos o país pós-Sol, recomendavam os espertos.
O povo que é sábio, todavia, sabia em silêncio que o Sol estava onde sempre esteve. Por sobre todo o país tropical, apesar das nuvens carregadas, das pesadas cortinas e das cabeças abaixadas. Em extremo, a própria existência das sombras, que o povo enxergava, enquanto olhava para o chão, era prova da existência do Sol.
E assim segue a vida no país tropical.
Os jornais nada mais falam do Sol – nem da crise provocada por sua falta – depois de décadas de fortalecimento, a democracia no país tropical volta a sofrer de raquitismo – doença infantil provocada pela carência de exposição ao Sol. Em suas edições dominicais, as manchetes tratam de temperos para vatapá.
Quanto ao povo, segue sua vida esperando, mais uma vez, que os poderosos, outra vez, morram de podres e de velhos e que, pela força da natureza, o Sol amanheça no país tropical, dessa vez, de vez.

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