Sergio Saraiva: O chicote da Folha e o lombo do brasileiro imprevidente

por Sergio Saraiva - julho 3, 2018

O editorial ”Futuro incerto” da Folha de São Paulo de 03 de julho de 2018 é um clássico do pensamento neoliberal que encanta nossa plutocracia: “os pobres são os responsáveis pela sua própria pobreza”.
pelourinho
O brasileiro imprevidente
No editorial, a Folha cita um estudo do Banco Mundial que desqualifica o Brasil.
Seríamos imprevidentes. Não pouparíamos para o futuro – o que nos condenaria a um futuro incerto – por óbvio.
Não há novidade em estudos do Banco Mundial ou do FMI desqualificando países não desenvolvidos e servindo de argumentos à plutocracia local para cortes nos gastos sociais. Seriam inúteis – os gastos sociais – dada a pouca disposição dos nativos para o trabalho e a muita disposição para a diversão e para o sexo.

Tampouco entre nós esse é assunto novo – a “Casa Grande” sempre considerou a “Senzala” como indolente. Indolente e fecunda.
Pois bem, é nessa linha que segue o editorial da Folha.
“Estudo aponta o Brasil como um dos países mais imprevidentes do mundo – somente 11% reforçaram suas reservas pensando no longo prazo, para permitir uma velhice menos insegura. No mundo desenvolvido, 71% dos adultos guardaram dinheiro com esse objetivo”.
E a seguir uma maldade típica da manipulação da informação: “Até nações menos avançadas poupam mais do que o Brasil, cuja taxa aparece abaixo da média dos emergentes, de 16%”.
Os resultados se baseiam em pesquisa realizada em 144 países entrevistando pessoas – 150 mil ao todo, mil delas no Brasil. É possível se chegar a um relatório da pesquisa – que conta com financiamento da Fundação Bill & Melinda Gates – e inclui indicadores sobre acesso e uso de serviços financeiros formais e informais. Como o próprio banco de dados se apresenta em ”Global Findex”.  Um dos capítulos do relatório trata de “Poupança, economia e resiliência financeira”.
Mas aqui é preciso cuidados com os números.
Não se busque neles informações sobre PIB per capta ou massa salarial – distribuição de renda ou IDH. O público pesquisado é o detentor de um cartão de crédito ou de débito.
E por mais confiáveis que sejam os dados coletados, trata-se de uma pesquisa sobre hábitos, acesso e uso de serviços financeiros. O público alvo dos resultados é muito mais os bancos e entidades financeiras – vendedores de produtos financeiros – do que os formuladores de políticas públicas.
Porém, é daí que a Folha busca as informações para concluir que o brasileiro é um despreocupado com o próprio futuro.
O brasileiro e a distribuição de renda
Quanto ao Brasil, estranho seria se tivéssemos altos índices de poupança. Somos um pais altamente injusto do ponto de vista da distribuição de renda.
Um relatório da ONG britânica Oxfam mostra que os 5% dos brasileiros mais ricos detém 50% da riqueza do Brasil. Restando para os 95% da população dividirem os 50% restantes.
Logo, uma fração de 10 milhões de pessoas detém tanta riqueza quanto os outros 190 milhões de brasileiros somados. E dentro dessa minoria, os 6 – seis – brasileiros mais ricos detêm tanta renda quanto os 100 milhões de brasileiros mais pobres. Escandaloso.
Para saber quem está no estrato dos 10 milhões de brasileiros abastados basta identificar os que têm salários de 5 dígitos. Michel Temer, por exemplo, como procurador aposentado do Estado de São Paulo desfruta de uma aposentadoria de R$ 45.000,00.
Por certo, esses 10 milhões de brasileiros têm algum tipo de investimento. Mas pouco sobra para os outros 190 milhões, além de tentar sobreviver. E dentro desses 190 milhões de brasileiros está boa parte dos que se consideram “classe média”.
O chicote da Folha e o lombo do brasileiro imprevidente
Porém não é esse o motivo que a Folha aponta como o responsável pela nossa baixa taxa de poupança. A Folha adota o argumento da “Casa Grande”:
“Parte da explicação está na generosidade do sistema previdenciário nacional. Para muitos trabalhadores pobres, o piso equivalente a um salário mínimo representa a garantia de que manterão o padrão de consumo na aposentadoria, ou até mesmo a possibilidade de alcançar renda mais elevada”.
O “generoso” salário mínimo nacional é de R$ 954,00. Se considerarmos o índice médio do dólar, desde agosto de 2015, em R$ 3,50 – em dólar, o salário mínimo é de US$ 272,00. O que significa viver com 9 dólares por dia. Pelo Índice BIG MAC – viver com 1,7 BIG MAC por dia.
Não há muito o que poupar aqui.
Mas a Folha é uma otimista. E enxerga na reforma trabalhista o chicote necessário para botar vergonha na cara do brasileiro imprevidente:
“A maior parte das pessoas que encontraram ocupação nos últimos anos teve que aceitar trabalho sem registro em carteira profissional ou abrir negócio próprio para ganhar a vida. Sem contar com a proteção garantida pelo sistema oficial de seguridade, muitos poderão se sentir encorajados a separar fatias maiores da sua renda para reduzir riscos durante a velhice”.
Em que mundo vive alguém que escreve tal sandice?
Pessoas com renda de subsistência não poupam para o futuro porque não têm futuro – vivem do prato para a boca.
Com uma renda inferior a atual – 1,7 BIG MAC por dia – e sem a proteção da seguridade social, o que produziremos nas próximas duas décadas será uma multidão de velhos desassistidos. Essa é a maldição do golpe.
Passaremos imperturbáveis por nossos velhos agonizando nas calçadas, enquanto vamos ao banco consultar o saldo da poupança? O editorialista da Folha evitará tal incômodo consultando o saldo pela internet?
Quem autoriza a publicação de tais merdas?
Obviamente que esta é uma pergunta retórica. A questão correta é: a que interesses serve uma publicação como essa?
“Transição para o novo modelo”
A Folha sentencia: “ O próximo governo terá a obrigação de fazer algo para equilibrar as contas da Previdência Social … Medidas de estímulo à poupança individual poderiam atenuar os efeitos mais drásticos do ajuste … e, ao mesmo tempo, diversificar fontes de financiamento disponíveis para a atividade econômica”.
A única medida que estimularia a poupança individual seria o aumento da renda média do brasileiro – o que corresponderia a uma drástica diminuição da nossa indecente desigualdade social. Mas essa solução não virá de um editorial da Folha – o jornal apoiou a condenação e o encarceramento do único político que, em tempos recentes, ousou minimamente fazer algo a esse respeito.
Por fim a Folha cobra: “Uma discussão séria na campanha eleitoral obrigaria os presidenciáveis a oferecer ideias consistentes sobre o tema. Nenhum deles esclareceu ainda como pretende financiar as aposentadorias do velho regime na transição para o novo modelo”.
Os números e o silêncio do chicote
Não sei o que a Folha chama de “transição para o novo modelo”.
Mas vão aqui algumas sugestões para o financiamento da previdência social.
Crescimento econômico e formalização do emprego injetam muito mais dinheiro no caixa da previdência do que qualquer estímulo à poupança. Até porque se trata exatamente disso.
O fim do uso de 30% das contribuições sociais – via DRU – Desvinculação de Receitas da União – como reforço do Orçamento Federal traria alívio imediato do chamado “déficit da previdência”.
Estrito respeito ao teto constitucional para os servidores públicos. O Judiciário, por exemplo, paga a juízes, entre outras benesses, acima desse teto, auxílio moradia de R$ 4.800,00, mesmo para quem tem imóvel próprio na cidade em que trabalha – o dobro, se marido e mulher forem ambos magistrados. O déficit com as aposentadorias de servidores da União – Regime Próprio de Previdência Social – RPPS, incluindo os militares e suas filhas, é da ordem de mais de 75 bilhões de reais ao ano.
Fim imediato da desoneração da folha de pagamento – subsídio direto aos empresários – que custa algo em torno de 25 bilhões de reais ao ano.
Somente para os ruralistas, o governo Temer abriu mão de 10 bilhões em arrecadação para o FUNRURAL em troca de votos para escapar das denúncias de corrupção no Congresso.
E claro, há ainda mais de 400 bilhões de reais em dívidas de empresas com o INSS. E pouca disposição do governo em cobrá-los. Entre essas empresas devedoras, alguns bancos.
Bancos que, aliás, seriam os principais beneficiários do tal “estimulo à poupança” preconizado pela Folha.

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