Copa do Chocolate: em Brasil x Bélgica, caminhos de escravidão e morte
Brasil de Fato
Adversários nas quartas de final, países têm relação bifurcada pelo histórico das plantações de cacau
Produtor de cacau abre fruto em plantação de Medicilândia, no Pará / Foto: Sidney Oliveira |
O futebol é a maior invenção da humanidade: é muito do que se ouve em tempos de Copa. Nos dias sem partidas pelo torneio, há quem fale em “abstinência futebolística”. Amantes de outras práticas, no entanto, discordam sobre a importância: aos que adoram comer chocolates, o primeiro lugar entre as criações humanas está reservado a bombons e barras.
Ainda que não desprezem o esporte, o derivado de cacau é incomparável para muitos brasileiros e belgas, povos que têm os caminhos cruzados hoje pelo mundial de seleções, mas, também, por uma triste bifurcação histórica que encontra eco na escravidão e no genocídio.
Tudo começa com os povos indígenas da América Central e do México. Descobridores do chocolate aproximadamente em 1900 a.C, os astecas o usavam como base para uma bebida fria, o xocolatl (água amarga). Sem adicionar açúcar ou leite à substância extraída das amêndoas de cacau, o povo originário a concentrava, juntando as sementes moídas à água e especiarias, essencialmente a pimenta.
O amargor ligeiro, mais o sabor de ervas e pimenta, foi quase apagado pelos colonizadores. Espanhóis e portugueses, os mesmos que dizimaram milhões de indígenas da América, também descaracterizaram o alimento. Aos poucos, canela, leite e, finalmente, açúcar, alteraram a combinação inicial, que era “uma dádiva dos deuses” para os índios, uma bebida oferecida em rituais.
Nem mil eliminações de Espanha e Portugal em Copas do Mundo – na Rússia, elas estão em casa faz tempo – fariam cócegas no sofrimento promovido por esses países nas Américas. O chocolate foi só uma das riquezas roubadas que cruzou os mares a bordo de navios. E, vejam só, entre tantos lugares, desembarcou, em 1635, na Bélgica, mantida, então, sob ocupação espanhola.
Clima frio, os habitantes da região beberam a mistura em temperaturas mais altas e veio a paixão pelo chocolate quente. Quase quatrocentos anos depois, no início do século 20, os belgas, já também colonizadores, importaram grandes quantidades de cacau do “Congo Belga”, no continente africano, terra que usavam como colônia de exploração.
O livro Chocolate: a Global History (Chocolate, uma história global, sem tradução em português), dos pesquisadores Sarah Moss e Alexander Badenoch, explica como o chocolate se tornou uma lente pela qual os europeus podiam enxergar amplamente os impérios que criavam.
“As autoridades imperiais da Alemanha e da Bélgica, em especial, enfatizavam a negritude do chocolate baseados em fantasias de superioridade. Doces de creme cobertos de chocolate ficaram conhecidos como Negerkusse (“beijo de negro” – uma expressão, aliás, emprestada dos franceses), e Mohrenkopfe (“cabeça de mouro”), nomes que carregaram até muito recentemente. Era um reflexo das fantasias raciais sobre os colonizados servis”, argumentam os autores.
A mentalidade colonial em torno do chocolate foi em muito responsável pelo trabalho forçado dos negros africanos capturados e transportados para o lado de cá do Atlântico, o que se tornou parte fundamental do cultivo do cacau durante o século 18, essencialmente no Caribe e em parte da América do Sul, incluindo o Brasil.
O tráfico de escravos tinha estreitas ligações com a indústria chocolateira. E, se os belgas, de um lado, aproveitavam a herança escravocrata para colonizar países africanos e extrair riquezas que refinaram o chocolate aclamado atualmente como “o melhor do mundo”, foi do Brasil – embora não pelas mãos de brasileiros – que partiu a manobra decisiva na geopolítica do cacau.
“Os portugueses levaram, junto com o cacau, o sistema de trabalho forçado das plantações do Brasil para as colônias no oeste da África. Uma vez que o tráfico de escravos foi oficialmente abolido nas Américas, já não era mais viável atravessar o Atlântico, mas, na fonte, no oeste da África, ainda era funcional, pois permanecia invisível aos olhos internacionais”, contam Moss e Badenoch.
Campeões da morte
O clima não ajuda, mas, mesmo sem ser capaz de produzir cacau, a Bélgica chegou ao posto mais alto no imaginário do marketing como produtor de chocolate. Como? Oportunismo.
Aproveitando as heranças espanhola e portuguesa de escravidão e exploração, o rei belga Leopoldo II criou, em 1877, a Associação Internacional Africana, que recebeu dinheiro de vários “investidores” da Europa. Em comum, eles tinham como prioridade abocanhar as riquezas do “Congo Belga”, já enfraquecido por incursões europeias anteriores (lembra dos portugueses exportando cacau e escravidão do Brasil?).
Com os cofres e bolsos cheios, Leopoldo II teve poder para influenciar os conflitos geopolíticos movidos pela disputa de territórios africanos que se davam em solo europeu. Foi ele quem convocou a Conferência de Berlim, que acelerou a partilha da África, ocorrida em apenas quatro meses, entre novembro de 1884 e fevereiro de 1885.
A presença colonial belga no continente africano é considerada uma das páginas mais cruéis da história. Recursos naturais foram saqueados por companhias concessionárias e a população local sofreu com a escravidão. Punições severas eram aplicadas àqueles que resistiam ou não atingiam “metas de trabalho”.
Em 1904, uma comissão investigadora internacional já reconhecia que, durante os primeiros 15 anos de domínio colonial, três milhões de congoleses morreram vítimas de doenças e maus tratos.
Durante 20 anos (1885-1905) o “Estado Livre do Congo” (hoje, a Costa do Marfim e a República Democrática do Congo), foi uma propriedade particular do rei belga, um milionário do cacau e da borracha, que premiava soldados que trouxessem mãos de africanos decepados nas “expedições de caça aos negros que resistissem à civilização”.
Enquanto isso, os belgas celebravam a invenção do praliné, de Jean Neuhaus Jr., uma forma de moldar e preencher chocolates, permitindo tamanho maior, casca mais espessa e ganache (mescla de chocolate e creme de leite) mais pesado, ou seja, era o bombom sendo criado.
“Isso incentivou a criatividade dos chocolateiros, que puderam começar a experimentar os enchimentos feitos com todos os tipos de ingredientes. É uma técnica usada até hoje. A moldagem, inclusive, se tornou a maneira mais popular de criar chocolates.”, afirma a jornalista estadunidense Sharon Terensi, estudiosa da história do chocolate.
Para não ficar atrás de espanhóis e portugueses, a Bélgica também deixou uma herança nefasta: na Costa do Marfim, em terras fartamente explorada pelos belgas, crianças, com idades entre 10 e 15 anos, até hoje são submetidas a trabalho escravo nas plantações de cacau, para garantir os estoques de megacorporações como Nestlé, Hershey’s, Mars e Barry Callebaut (fundada na Bélgica), que despejam toneladas de produtos derivados mundo afora, muitas delas no Brasil, que é o quinto colocado em produção de chocolate no planeta.
Brasileiro ou belga, comemore a vitória da sua seleção, mas não é exagero pedir que se encha de coragem e assista ao documentário O lado negro do chocolate, do jornalista dinamarquês Miki Mistrati, que investiga o tráfico de crianças do Mali para as plantações de cacau localizadas nas terras que ainda transpiram o trauma da colonização imposta por Leopoldo II e companhia. Talvez, você ao menos passe a evitar certas marcas.
O alto preço de lutar
Somente em 1960, a região onde hoje ficam a Costa do Marfim e a República Democrática do Congo alcançou a independência. Liderados por Patrice Émery Lumumba, rebeldes anticolonialistas que defendiam a solidariedade entre os povos da África para além dos limites de nação, etnia, cultura, classe e gênero, derrubaram a dominação belga, mas não sem um preço alto a pagar.
Doze semanas de governo foram o limite para o grupo de Lumumba. Derrubado por um golpe de Estado, ele se viu capturado por forças militares que o torturam e assassinaram em janeiro de 1961. Registros da época indicam a participação dos governos da Bélgica e dos Estados Unidos, que o classificavam como “uma ameaça alinhada ao comunismo”.
Edição: Diego Sartorato
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