Brasil 68: "Mataram um estudante. Podia ser seu filho"
Republicamos aqui artigo de 2008. A onda de mobilizações estudantis que atravessou o mundo no ano de 1968 também passou pelo Brasil. O que detonou as grandes mobilizações foi a morte do estudante Edson Luis, em 28 de março, no Rio de Janeiro.
esquerda.net - 26/04/2018
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Passeata dos Cem Mil
A onda de mobilizações estudantis que atravessou o mundo no ano de 1968 também passou pelo Brasil. Apesar da ditadura militar que fora implantada quatro anos antes, o movimento estudantil vivia em 1968 uma enorme ebulição. A União Nacional de Estudantes (UNE), apesar de ter visto a sua sede incendiada pelos próprios militares golpistas de 1964, não fora desarticulada, funcionando em clandestinidade. O que detonou as grandes mobilizações de Março e Junho de 1968 foi a morte do estudante Edson Luis, em 28 de Março, no Rio de Janeiro.
Há 40 anos, o Rio parava para se comover e protestar contra o assassinato de Edson Luis no Calabouço. Era um garoto como tantos frequentadores do Restaurante Central dos Estudantes, no Calabouço, Centro do Rio de Janeiro. Edson Luis de Lima Souto, de 18 anos, estava na cidade havia dois meses, vindo de Belém, no Pará.
Com outros jovens pobres, muitos migrantes como ele, almoçava e jantava na cantina ("bandejão") subsidiado pelo governo. Por 50 centavos de cruzeiro novo, pouco mais de 1 euro, servia-se de sopa, arroz, feijão, carne ensopada, folhas de alface e rodelas de tomate, goiabada e leite ralo.
Edson morava no Campo dos Afonsos, Zona Oeste do Rio de Janeiro, com a tia Enedina Pau-Ferro, casada com um sargento da Aeronáutica. Estudava no Instituto Cooperativo de Ensino, que funcionava no Calabouço. A área incluía um teatro, uma clínica e um pequeno comércio, além de sediar a União Metropolitana dos Estudantes (UME). A entidade administrava o restaurante, custeado pelo Ministério da Educação.
Edson queria completar o secundário, cursando o supletivo, o antigo Madureza. Para ganhar um dinheiro extra, engraxava os sapatos dos colegas mais abastados e limpava o restaurante.
Uma morte que não seria negada
Em 1968, o "Calaba" era visto pelo regime militar como um centro de agitação estudantil, de onde partiam aguerridas manifestações lideradas pela Frente Unida dos Estudantes do Calabouço (Fuec). Protestavam especialmente contra a qualidade da comida, ou reivindicavam a conclusão das obras no local - o primeiro restaurante fora demolido dois anos antes para intervenções no trânsito.
Edson não era activista da luta contra a ditadura, mas lutava pelo restaurante onde comia, e participava ajudando a colar cartazes e jornais nos murais.
No dia 28 de Março daquele ano, mais uma manifestação era organizada. Por volta das 18h, a tropa da Polícia Militar chegou.
Cassetetes dispersaram os cerca de 600 estudantes. Eles voltaram, atirando paus e pedras. A polícia revidou à bala, e um disparo de pistola 45, atribuído ao aspirante Aloisio Raposo, acertou no coração de Edson Luis.
Imediatamente os estudantes cercaram o colega para evitar que a PM o levasse. Sem camisa, Edson foi carregado. O seu corpo abria espaço para um cortejo que se formava rumo à Assembleia Legislativa, hoje Câmara de Vereadores, na Cinelândia, centro do Rio.
"Mataram um estudante. Podia ser seu filho"
A frase correu o Rio naquela noite. O tiro comoveu a cidade e levou uma multidão às ruas para velar o primeiro cadáver simbólico da ditadura militar instalada havia quatro anos.
"O tiro que matou Edson Luis disparou também um processo que a própria direcção do movimento (estudantil) não conseguiu controlar. Primeiro, foi o choque, o grito de ódio. Em seguida, foi o corre-corre, o vaivém, o zunzum, sem que se soubesse exactamente o que fazer. A ideia de levar o corpo para a Assembleia foi muito importante.
Com o corpo nas mãos, ninguém poderia negar aquela morte", escreveu o deputado Fernando Gabeira, então repórter, no livro "O que é isso, companheiro?".
O corpo de Edson chegou à Assembleia, interrompendo imediatamente a sessão. Os 55 deputados presentes correram ao saguão, que também se enchia de curiosos. Era preciso fazer a autópsia, mas os estudantes não permitiam que Edson fosse levado ao Instituto Médico-Legal.
Após intensa negociação, decidiu-se que o exame seria feito na Assembleia. Às 2h30m da madrugada, começava o velório.
O ex-deputado Vladimir Palmeira, em depoimento ao Projecto Memória do Movimento Estudantil, da Fundação Roberto Marinho, diz que os estudantes do Calabouço eram os mais combativos à época. "O pessoal de lá era de uma pequena burguesia pobre e revoltada, muito mais que o pessoal das universidades. Era uma mistura de estudantes e gente pobre que logo que arranjava o cartão de estudante, saía para passeatas", contou Vladimir, um dos mais importantes líderes dos estudantes dos anos 60.
Na Assembleia, artistas como Tônia Carrero, Nara Leão, Di Cavalcanti e Ferreira Gullar uniam-se aos jovens, enquanto populares formavam uma imensa fila diante do caixão. Os discursos sucederam-se até de manhã. "Estava maravilhado com os discursos que se faziam na porta da Assembleia. Era uma tribuna livre. O tema também era livre: o ponto de partida era a morte de Edson Luis, mas o ponto de chegada era o mais disparatado possível", escreveu Gabeira.
Segundo Vladimir, o clima na Assembleia era de grande indignação.
"Lançaram a palavra de ordem 'Podia ser um filho seu', que foi notável. Não foi uma liderança que criou. Foi uma criação colectiva. Fizeram uma faixa, o pessoal gritava numa manifestação impressionante, popular".
O jornalista e escritor Arthur Poerner estava na redacção do Correio da Manhã quando soube da notícia. Terminou um artigo sobre a violência da repressão e correu para a Assembleia.
Poerner estava prestes a publicar o livro "O poder jovem - História da participação política dos estudantes brasileiros", que recebeu depois um capítulo sobre Edson Luis. Por isso, o colega do curso de Direito Vladimir Palmeira o convidou a carregar o caixão no dia seguinte.
Na Câmara dos Deputados, em Brasília, deputados acotovelavam-se diante do microfone de apartes, exaltados.
Houve socos e pontapés
O discurso de Leopoldo Peres, da Arena (o partido da ditadura) do Amazonas, era exemplo da polarização vivida em 68: "O esquerdismo fanático está dizendo meias-verdades aos jovens brasileiros". Bezerra de Melo (Arena-SP) recolhia assinaturas para uma CPI para investigar a morte e a violência contra estudantes. No Senado, Arthur Virgílio, do MDB (Movimento Democrático Brasileiro, de oposição) do Amazonas, protestava violentamente contra a polícia da Guanabara: "A nação espera que os bandidos fardados sintam o peso da Justiça".
Por volta das 16h da sexta-feira, 29 de Março, começou o cortejo para o enterro. O Rio parou.
A crónica da época regista que foi a maior manifestação vista pela cidade até então. Cerca de 50 mil pessoas foram às ruas protestar contra a violência policial, acompanhando o caixão da Cinelândia ao Cemitério São João Batista, em Botafogo, Zona Sul, em meio a faixas ("Os velhos no poder, os jovens no caixão") e palavras de ordem.
- O cortejo ia crescendo, das janelas as pessoas acenavam com panos pretos - lembra Poerner.
No caminho, registra Zuenir Ventura em "1968 - O ano que não terminou", letreiros de cinema aludiam à morte do estudante.
No Bruni, "Coração de luto", de Teixeirinha; no Império, "A noite dos generais", com Peter O'Toole; no Pathé, "À queima-roupa", com Lee Marvin.
Edson Luis não foi a única vítima da invasão do Calabouço. O registro de ocorrência nº 917 da 3ª DP lista outros seis feridos: Telmo Matos Henriques, Benedito Frazão Dutra (que morreu logo depois), Antônio Inácio de Paulo, Walmir Gilberto Bittencourt, Olavo de Souza Nascimento e Francisco Dias Pinto.
Na missa, uma tragédia evitada
No dia 1º de Abril haveria novo confronto com a polícia. Estudantes organizaram manifestações em todo o país, pelo aniversário da "revolução" de 31 de Março de 1964. A pancadaria no Rio foi grande. Houve dois mortos, dezenas de feridos e mais de 200 prisões. Lojas foram depredadas, carros incendiados.
Os jornais qualificavam a batalha como guerrilha urbana. No dia 4 de Abril, a missa de 7º dia levou uma multidão à Candelária.
A cerimónia foi celebrada pelo vigário-geral dom José de Castro Pinto e por 15 padres. Pelotões de choque, agentes do Dops (a polícia política da ditadura) e fuzileiros navais cercavam a Praça Pio X. Aviões da FAB (Força Aérea Brasileira) sobrevoavam o local. Na igreja, o efeito do gás lacrimogénio confundia-se às lágrimas de emoção. No fim da comunhão, o ruído das patas dos cavalos já era intenso. Tentou-se organizar a saída, com os padres à frente, em fila, de mãos dadas. Com a dramática intervenção, os religiosos protegeram, contou-se à época, 2,5 mil pessoas. Convenceram os soldados, que gritavam e avançavam, de que não haveria passeata. Evitaram a tragédia.
Mas à saída, a repressão actuou, com prisões e agressões.
"Havia quatro anos a política brasileira estava torta, deformada pela ditadura e pelas consequentes pressões exercidas à direita e à esquerda pelas dissidências do regime e da oposição. A partir da morte de Edson Luis, a contrariedade foi para rua. Isso ocorreria de qualquer maneira, naquele ou noutro dia, com cadáver ou sem", analisa o jornalista Elio Gaspari em "A ditadura envergonhada". "O crime chocara o país. Era como se ele fosse esperado havia anos, uma senha de que chegara a hora de fazer alguma coisa".
Cinco anos depois, os restos de Edson Luis foram levados para o ossário do São João Batista, por falta de interessados em mantê-los numa gaveta.
(Publicado em O Globo a 28/03/2008)
"Passeata dos Cem Mil" marca o auge do movimento estudantil contra a ditadura
A Passeata dos Cem Mil, realizada em 26 de Junho de 1968, é considerada a manifestação popular mais importante da resistência contra a ditadura militar. Marca o ponto alto do movimento estudantil e o início de sua derrocada.
"As manifestações contra os militares ganharam outra dimensão a partir morte de Edson Luís Lima Souto", afirma Paulo de Tarso, um dos estudantes envolvidos no sequestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick no ano seguinte. "A partir de então, os estudantes se mobilizaram de vez", afirma Tarso.
Em Junho de 1968, o movimento estudantil começou a organizar um número cada vez maior de manifestações públicas. No dia 18, uma passeata, que terminou no Palácio da Cultura, também no Rio, foi reprimida pela polícia. O resultado foi a prisão do líder estudantil Jean Marc van der Weid.
No dia seguinte, o movimento reuniu-se na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) para organizar novos protestos e pedir a libertação de Jean e de outros alunos presos. "Levamos cocktails molotov, pedra, bastões", lembra Vladimir Palmeira, um dos principais líderes daquele movimento. Mas o resultado foi a detenção de 300 estudantes ao final da assembleia.
Três dias depois, alguns universitários foram recebidos com violência pela polícia numa manifestação que terminou em frente à embaixada norte-americana. A reacção dos estudantes gerou um conflito que terminou com 28 mortos, centenas de feridos, mil presos e 15 viaturas da polícia incendiadas. Aquele dia ficou conhecido como "Sexta-Feira Sangrenta".
Diante da repercussão negativa do episódio, o comando militar acabou por permitir uma manifestação marcada para o dia 26 de Junho. Segundo o general Luís França, 10 mil polícias estariam prontos para entrar em acção caso fosse necessário. Estas foram as primeiras notícias sobre aquela que ficaria conhecida como a Passeata dos Cem Mil.
Logo pela manhã, estudantes, artistas, religiosos e intelectuais já tomavam as ruas do centro do Rio. A passeata começou às 14h com cerca de 50 mil pessoas. Uma hora depois esse número já tinha duplicado.
Foi quando Vladimir tomou o microfone para um discurso em frente à igreja da Candelária. Foram três horas de manifestação que terminou sem conflitos em frente à Assembleia Legislativa. "A gente sabia que seria grande, mas não esperava aquelas 100 mil pessoas", afirma Palmeira. "Mesmo que o governo não permitisse, apareceria muita gente, porque a população estava muito descontente com a repressão."
Depois do evento, o então presidente Costa e Silva marcou uma reunião com líderes da sociedade civil - entre eles os universitários Franklin Martins e Marcos Medeiros. No encontro, foi pedida a libertação de estudantes presos, o fim da censura e a abertura do restaurante Calabouço. Nenhuma reivindicação foi aceita.
O resultado foi a realização de outra manifestação, que na ocasião reuniu 50 mil pessoas. Era o início da repressão mais violenta contra o movimento estudantil.
No mês seguinte, o governo proibiu oficialmente todo tipo de manifestação em território nacional. No dia 2 de Agosto, Vladimir Palmeira foi preso. Logo em seguida, outros 650 estudantes foram para a cadeia. No dia 4, 300 alunos foram detidos em São Paulo.
Mas os golpes mais duros contra o movimento ainda estavam por vir. O projecto de lei que concedia amnistia aos estudantes e operários presos foi rejeitado pelo Congresso no dia 21 de Agosto daquele ano.
No dia 12 de Outubro de 1968, mais de 400 estudantes foram detidos durante um congresso clandestino da UNE (União Nacional dos Estudantes) em Ibiúna, interior de São Paulo. Entre os líderes estavam Luis Travassos, José Dirceu e Vladimir Palmeira, solto dias antes.
O AI-5 (Ato Institucional nº 5), promulgado no dia 13 de Dezembro de 1968, legalizou a repressão, e em Fevereiro do ano seguinte, um novo decreto-lei proibiu definitivamente toda e qualquer manifestação política dentro das universidades do país. Os militares tinham finalmente desarticulado o movimento estudantil.
(Por Wanderley Preite Sobrinho, publicado na Folha online em 30/04/2008)
Este artigo foi publicado no esquerda.net a 12 de maio de 2008, incluído no Dossier Maio de 68
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