Um raio de luz na vida dos sem-terra

UM MÉDICO NA CARAVANA
Marcos Tiaraju, primeira criança nascida numa ocupação do MST, em 1985, teve a mãe assassinada e perdeu-se do movimento. Mas o destino o devolveu à origem. Hoje médico, segue do lado dos seus

por Cláudia Motta, especial para RBA e TVT publicado 24/03/2018

CLÁUDIA MOTTA/RBA|TVT E CARLOS CARVALHO/SUL21
Marcos Tiaraju e Rose
Marcos Tiaraju em foto atual em Palmeiras das Missões e de 1986, com a mãe, no assentamento Anoni
"Eu vou continuar aqui, até o fim. espero que quando meu filho esteja grande, tudo isso não seja em vão, que ele tenha um futuro melhor"
Rose Celeste (1954-1987)
Palmeira das Missões – Sepé Tiaraju foi um líder guarani. Viveu na região Sul do Brasil entre 1723 e 1756, famoso por sua coragem na luta pela terra e pela resistência aos ataques militares espanhóis e portugueses. “Me disseram que Tiaraju significa raio de luz”, responde sorrindo o médico Marcos Tiaraju, 32 anos, sobre se considerar uma pessoa iluminada.
O profissional atende os casos que surgem na trajetória da Caravana Lula pelo Sul do Brasil. Marcos é supervisor do programa Mais Médicos – lançado em julho de 2013 pela presidenta Dilma Rousseff –, e sua história se confunde com a do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no país.
Na região norte do Rio Grande do Sul – onde pelas tantas coincidências da vida de Marcos Tiaraju a caravana se encontrava no momento desta entrevista –, cerca de 2 mil famílias ocuparam os 9.300 hectares da Fazenda Anoni, no município de Sarandi, em 29 de outubro de 1985. No terceiro dia dessa ocupação, a agricultora Roseli Seleste Nunes da Silva dava à luz um menino.

“Aquilo foi interpretado pelas famílias, pela coordenação, como algo muito importante, um marco na história da luta naquele acampamento, e um marco da história da luta pela terra. Pelo período que a gente vivia no Brasil, saindo da ditadura militar, com os camponeses se organizando em um movimento nacional, foi de uma simbologia grande”, relata o médico.
Uma assembleia, naquele assentamento que dava origem a um dos mais organizados movimentos sociais no Brasil e no mundo, decidiu: o primeiro nome do bebê seria Marcos. “Pela questão desses dois marcos. E o segundo seria Tiaraju, em homenagem ao índio guarani que morreu em 1756 na luta por seu povo.”

Sete palmos

Em 1987, durante uma manifestação pacífica no trevo do município de Sarandi, a mãe de Marcos foi atropelada por um caminhão carregado de ferro jogado contra as famílias do acampamento e outros pequenos agricultores. Morreram Rose – que nesse dia excepcionalmente não havia levado os filhos – e mais duas pessoas.
A vida do menino de 1 ano e 5 meses poderia ter mudado totalmente dali em diante, não fosse um detalhe que fez toda a diferença no seu futuro.
O acampamento chamava a atenção de toda a sociedade e a cineasta carioca Tetê Moraes filmava a ocupação. Com a morte da agricultora, a família passou a ser o fio condutor da história. O filme recebeu o nome de Terra para Rose.
“A Rose acabou sintetizando a luta de todas aquelas famílias por um pedaço de terra. E também sintetizando que, apesar da luta, a dificuldade é grande, a disputa de classes é cruel e, muitas vezes, o resultado é catastrófico, inclusive com a morte”, conta Marcos, voz embargada. “Rose lutou por terra e acabou tendo acesso a somente sete palmos no cemitério onde hoje está enterrada, na própria Fazenda Anoni, que é onde ela fez a ocupação, onde nasci.”
Tetê, ao escolher como eixo de seu filme a trágica história da família de Marcos, conseguiu fazer com que Rose continuasse, mesmo numa distância incomensurável, conduzindo os passos do filho. "Prefiro morrer lutando do que de fome" era uma de suas frases com que ficou conhecida.

Lixo para comer

“A partir dali meu pai ficou mais alguns anos no acampamento. Pelas condições precárias, por estar com três filhos pequenos (Marcos, um irmão de 3 anos e a irmã de 6), acabou não resistindo e decidiu migrar para a cidade. Até meus 14 anos morei numa vila de um município chamado Rondinha.”
José Correa da Silva deixou o movimento acreditando que poderia ganhar a vida como pintor na cidade e criar os filhos. A terra fria e úmida, no entanto, só permitia o trabalho no verão. No inverno, Marcos e seus irmãos revolviam o lixo para buscar o que comer. Como milhões em todo o Brasil, parecia fadado à desgraça da subnutrição que, na década de 1980, matava 58,9 crianças a cada mil nascidas no Sul.

O Sonho de Rose

Mas Tetê Moraes novamente interfere e traz Rose de volta para a história de Marcos e de sua família. Dez anos após o primeiro filme, a cineasta havia decidido fazer um novo documentário, para ver como estavam aqueles que haviam participado da ocupação da Fazenda Anoni, e procurou a família de sua homenageada. 
“Ela nos encontrou numa realidade difícil em Rondinha, em condições precárias de trabalho, de moradia, de alimentação. E aí se faz então o segundo documentário, que se chama O Sonho de Rose. O que aconteceu com aquele sonho, aquela história de luta pela terra? Isso dá inicio, dentro do MST a um debate junto ao Incra, para que a família da Rose, a nossa família, também tivesse acesso a um assentamento, também tivesse acesso à terra, já que foi uma família que ajudou a começar o processo de luta no estado”, lembra Marcos.
Tetê recebeu do líder do MST João Pedro Stédile o título de madrinha. "O João Pedro diz que sou 'madrinha'  porque fiz escândalo depois da filmagem de O Sonho de Rose para sua família não ficar abandonada. Fico feliz de ter plantado algumas sementes em terrenos tão férteis, e que os filmes sejam úteis social e humanamente", disse a cineastas em um entrevista.
O SONHO DE ROSEsonhoderose.jpg
Depoimento para o documentário 'O Sonho de Rose', 1997
“Então no ano de 1999, fomos assentados no município de Viamão, no assentamento Filhos de Sepé, também em homenagem a Sepé Tiaraju.” Um ano antes, a família havia saído de Rondinhas para a região metropolitana de Porto Alegre. “Não tendo espaço para todos no mesmo lugar, fui convidado a morar num assentamento. Ali foi meu primeiro contato com minha origem, no município de Nova Santa Rita.”
E eu comecei a entender que assim como me acolheram num assentamento e me ajudaram, eu precisava ajudar outras pessoas a mudar de vida
A escola onde Marcos foi estudar chamava-se Nova Sociedade. “Aquilo me fazia pensar muitas coisas: por que o nome era aquele; eu comparava minha vida lá da vila de precariedade com a vida das crianças, dos colegas que eu tinha ali na escola. Eram crianças bonitas, sadias, que tinham comida, que tinham leite, que eram coisas que faltavam para mim lá na vila. E tudo aquilo começa a gerar questionamentos, a fazer querer conhecer mais da minha história, da história da minha mãe e ali eu encontrei muitas respostas. Muitas das famílias ali assentadas começaram a luta junto com meus pais.”
Foi apenas um ano, mas esse período mudou a vida de Marcos. “Comparando minha vida antes desse contato e diante do sonho que aquelas pessoas tinham, comecei a decidir que aquele era o caminho que eu queria para melhorar minha vida, ajudar a melhorar a vida da minha família. E comecei a entender que assim como me acolheram num assentamento e me ajudaram, eu precisava ajudar outras pessoas a mudar de vida. Aí vem surgindo o sonho de um jovem de 14, 15 anos que queria ajudar a transformar a realidade da nossa sociedade.”
E destaca: “Na fase em que você procura algo pra se identificar, quando os jovens se identificam mais com sua época do que com seus pais, eu caio no movimento social que determina minha caminhada dali para frente”, disse, fazendo um triste paralelo com os jovens que viu no Instituto Federal Farroupilha com a camiseta estampando o rosto do deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ).

Destino inegável

A luta pela terra passa a ser sua vida. “Começo a militar, a participar de ocupações de terra, marchas, manifestações.”
Aos 20 anos, durante uma marcha de 17 dias entre Goiânia e Brasília, um companheiro relata que em Cuba haviam aberto uma escola de Medicina para formar jovens pobres do mundo. Algumas vagas foram oferecidas ao MST, uma das quais para o Rio Grande do Sul. O movimento indicou seu nome.
“Eu nunca havia pensado nisso. A cabeça pensa onde os pés pisam. E aquela realidade era totalmente distante para mim”, lembra Marcos. “Mas no MST aprendemos a importância de estudar para qualificar a luta, a defender a vida, e isso, em essência, é o que um médico faz.”
Tudo isso somado ao interesse por conhecer Cuba ajudaram na decisão que teve de ser tomada em pouco mais de sete horas: a proposta foi informada à meia-noite e a resposta deveria ser dada até às 7h da manhã seguinte.
Sem conseguir dormir, por volta das 3h o jovem acordou o colega para dizer que iria. “Calma, conversa com seu pai primeiro”, disse o companheiro. Mas não havia tempo e Marcos sabia que isso não seria necessário: aquela também era a luta dele.
“Completamos a marcha, voltei para o Rio Grande do Sul e começamos a preparar a viagem que deveria ocorrer na mesma semana, mas foi adiada.”
Poder estar aqui como médico é uma vitória da comunidade que se organizou em torno da luta pela terra
O tempo em que ainda permaneceu no Brasil, o jovem passou ao lado de outros companheiros, num processo de formação na Escola Nacional Florestan Fernandes, e assim foi para Cuba sabendo mais sobre o país caribenho e com o espanhol afiado.
Ficou na terra de Fidel Castro por seis anos e meio. Em julho de 2012, formado, voltou para o Brasil. No mesmo ano saiu o edital para a prova do Exame Nacional de Revalidação de Diplomas, o Revalida, por meio do qual os profissionais que fazem universidades fora do país são autorizados, ou não, a exercer a profissão em solo nacional.
“Fiz a prova no final de 2012 e aprovei, por obra e graça de Deus e aos ensinamentos que os professores da Revolução Cubana me deram de ponto de vista técnico, científico.”

Vitória coletiva

Marcos foi um dos 77 aprovados em mais de mil estudantes. Somente dois eram do MST. “E eu era um deles. Isso é de uma simbologia muito grande pra mim e pra nós do Movimento Sem Terra. Porque o estudar, o aprovar o exame e poder atuar aqui no Brasil como médico, é uma vitória que não é do Marcos Tiajuru. É uma vitória da parcela da comunidade que se organizou em torno da luta pela terra, da luta pela reforma agrária. É uma vitória da Revolução Cubana e de seus líderes que tiveram essa ideia de formar jovens pobres na América Latina. É uma conquista coletiva.”
Em 2013, começou a trabalhar em Nova Santa Rita, justamente onde retomou seu contato com o MST, rompido por mais de uma década na infância. “Lá tem quatro assentamentos da reforma agrária. Então, eu e outro colega que se formou comigo nos apresentamos pro MST, que nos deu essa oportunidade de estudar em Cuba, e dissemos: fomos dois militantes para Cuba, dois meninos, e agora retornamos dois militantes com canudo de médico. Então, estamos à disposição para atuar onde a companheirada considere melhor.”
O movimento tem em torno de 100 médicos, 10 no Rio Grande do Sul. “Em cada atividade, acampamento, ocupação, nós nos organizamos para dar suporte. E casualmente, nesse processo de perseguição ao presidente Lula, de calúnia e difamação da imagem dele na tentativa de impedi-lo de ser candidato, surge a caravana e vem para o Sul do Brasil. E aí, pela ligação, pelo compromisso que nós do MST temos em defesa da democracia e de uma sociedade mais justa, estamos participando da atividade ajudando no processo de segurança, de infraestrutura, organização. Fui convidado pelo nosso setor de saúde e recebi a tarefa de ajudar a cuidar da comitiva, do presidente e da presidenta. Foi assim que vim parar aqui”, conta. “Mais um processo de militância de um sem-terra, de um militante que também é médico, mas que não fica só fechado no consultório, vai também a campo.”
Ao fim da conversa, Marcos diz: “Sou uma pessoa talvez não iluminada, mas feliz, não por conquistas individuais, mas por ser resultado de um processo coletivo. O Tiaraju não é médico hoje porque tem mais capacidade do que outros pobres, que outros jovens que também se criaram na vila, que também viveram embaixo da lona preta. O Tiaraju é o que é hoje graças a esse processo coletivo de organização e de lutas que deu muitos frutos: assentamentos, escolas, agroindústrias, produção de alimentos orgânicos, vários jovens que se formaram em diversos cursos. Eu sou mais um.”
Marcos vive hoje em Sério, perto de Chapecó. Exerce a supervisão na Universidade Fronteira Sul. É casado com Karen, costarriquenha também formada em Medicina em Cuba. Têm uma filha de 1 ano e 3 meses, chamada Bianca Seleste em homenagem a Rose.
Os assassinos da agricultora nunca foram punidos. Uma década depois saiu uma indenização para as famílias das vítimas. O pai de Marcos conseguiu a casinha onde vive hoje em Viamão.

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