Tijolaço: Quem sabe a pobreza precise de uma intervenção assim?

POR  · 16/03/2018


ciepnegro
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Meu amigo Marceu Vieira escreve para avisar que “roubou” um foto do Tijolaço para ilustrar o post com que, em sua dolorida e digna delicadeza, chora a morte de Marielle Franco e de Anderson Gomes.
Não me rouba, porque a foto não é minha, mas que eu mesmo roubei  – e confessei – do  coleguinha Mário Marona, que a roubou do Carlos Contursi ou do Aírton (esqueci o sobrenome, perdão) , fotógrafos do Palácio Guanabara. Um dos dois, por sua vez, roubou, para imobilizar na imagem, uma fração de segundo a alegria daqueles meninos e meninas, da qual falei aqui.
Hoje, senhores e senhoras aí na beira de seus 40 anos, como a Marielle.
Nada de nós roubaram, Marceu, porque o que é nosso está no cofre forte da memória, o de onde viemos e do que seremos sempre. Roubaram destes meninos, destas meninas e continuam roubando, quando reduzem a segurança a muros, a fuzis, a balas .

Daria uma crônica a oposição que fizeram – O Globo era a corneta – à ideia perdulária de fazer piscinas nas escolas “de pobre”. E como não podiam fazer isso, a suspeita era de “corrupção” na comprados equipamentos, bombas, filtros e outras quinquilharias para duas dúzias de escolas que receberam as piscinas, nos mais de 500 Cieps construídos.
Brizola saiu, as piscinas fecharam, quase todas. Viraram criadouros de mosquito e outras foram aterradas, para que não o fossem. Umas poucas sobreviveram, pela garra teimosa dos professores, diretores e animadores.
Quisemos levar escolas, algumas até com esta “louca ideia” das piscinas, às favelas. Eles só querem levar polícia, quando não preferem mesmo tanques de guerra. Nós preferimos tanques de água, mais baratos até que os de aço e canhões.
Os Cieps que restarem, entre os que ainda restam, um dia serão , como  nos versos do Chico Buarque, “vestígios da estranha civilização” que quisemos criar  e que deu lugar a esta, onde os banhos são de lágrimas, quando não são mesmo de sangue. Não importa, não se afobe, não, que futuras crianças brincarão, “sem saber, com o amor que um dia, deixei pra você”.
Tudo valeu a pena, porque a alma nunca foi pequena.

A morte da Marielle e outras mortes

Marceu Vieira, em seu blog
Quando eu era criança, lá em Morro Agudo, sempre que alguém era assassinado, e volta e meia isso acontecia, a mãe da gente limitava ao quintal de casa a área pra criançada brincar.
A rua, o campinho, o beco, tudo mais além do portão se tornava zona de grande perigo, segundo elas. Até que o medo se dissipasse, a vida geral prosseguisse, elas, e sobretudo nós, garotos e garotas criadxs de pés descalços naquelas ruas de barro e poeira, enfim, a gente ficava confinado ao quintal até que todo mundo se esquecesse do grande perigo cotidiano, e o campinho, o beco, tudo mais além do portão voltasse a ser ocupado pela nossa pelada de futebol, por nossas bolas de gude, por nossas amarelinhas, nossas brincadeiras de pique-lateiro, nossos jogos de queimada e bandeira, por nossas linhas de pipa.
Com a vereadora Marielle, ali na Favela da Maré, onde ela cresceu, deve ter sido assim também.
Desde aqueles dias da infância em Morro Agudo, eu sei identificar som de tiro. Desde aqueles dias, eu associo barulho de tiro a morte. Desde aqueles dias, eu ouço adultos, como o que eu mesmo me tornei, perguntarem: “Até quando?”
O extermínio da Marielle, menina criada num ambiente semelhante ao meu, inspirou de novo a pergunta renitente, que ela mesma havia feito dias antes de ser assassinada, ao lamentar a morte do menino Matheus Melo, de 23 anos, no Jacarezinho, depois de sair de uma igreja evangélica: “Até quando?”
Até quando a gente vai ter de perguntar “até quando”?
A audácia de criminosos como os que executaram a Marielle e o motorista Anderson não é tão incomum no Rio. Não faz um mês, um carro com atiradores passou pela Praça São Salvador, àquela hora da noite lotada de jovens de classe média e classe média alta, e de suas janelas saíram tiros que mataram duas pessoas.
Não é preciso lembrar muitos exemplos. São vários. Estão na memória de todo mundo que vive ou se informa do que vai no Rio. Mas sempre que tragédias assim acontecem, nós, que conhecemos a temperatura do caldeirão da cidade, pensamos mais ou menos assim: “Ah, isso é algo fora da curva, não pode pesar na percepção de insegurança, na violência nossa de cada dia.” E aí seguimos.
Ocorre que, ultimamente, o Rio inteiro é um fenômeno social fora da curva. Como pode uma terra tão bonita ser submetida ao jugo de criminosos de um lado civis, de outro fardados, ambos militarizados, sem que nada estruturalmente maior seja feito pra evitar a continuação desse estado de horror no futuro?
Como pode uma cidade apelidada de “maravilhosa”, guardada ao Norte pelas montanhas, ao Sul pelo mar, seguir adiante tão infernizada por políticos cafajestes, policiais sem decência, milicianos impunes?
O que houve de tão grave, gerações atrás, que resultou nesse estado de guerra em que a gente, apaixonado pelo Rio, vive?
A asneira da intervenção militar, confrontada com a execução da Marielle e do seu motorista, confrontada com o extermínio na Praça São Salvador, confrontada com o assassinato do garoto Matheus no Jacarezinho, confrontada, enfim, com a nossa ração diária de barbárie, foi só isso aí mesmo, uma asneira, uma jogada política pra acalmar os ricos e dar satisfação a uma classe média que sempre escolhe o lado errado.
A culpa dos assassinatos da Marielle, do motorista, do jovenzinho Matheus, a culpa dos tiros na São Salvador, a culpa desses e tantos outros crimes que aniquilam o Rio é muito anterior ao último carnaval, à contusão do Neymar, ao golpe do Temer, à plástica da Anitta e até à gravidez da Xuxa.
Se a elite econômica e, sobretudo, intelectual brasileira tivesse ouvido Darcy Ribeiro quando ele disse, no início dos anos 1980, que, se não construíssemos escolas, faltariam cimento e terrenos pra erguermos presídios no futuro, se o aviso dele fosse ouvido, se a autofagia das esquerdas daquele tempo não tivesse servido de alimento pro ódio da classe média que elegeu Moreira Franco governador fuleiro do Rio em 1986, se o professor Darcy não fracassasse na sua tentativa sincera e inglória de convencimento, três ou mais gerações estariam salvas agora – e a Marielle, talvez, estivesse viva.
Talvez a mobilização tão bela e tão triste que tomou a Cinelândia na quinta-feira à noite, e ainda toma o Rio e o Brasil todo, talvez ela fosse outra. Talvez.
Certamente, a Marielle estaria lá.

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