Respostas ao coronel. Por Sergio Saraiva
Sergio Saraiva - março 16, 2018 - Carta aberta
Prezado coronel Lee Abe, pelo acaso dessas folhas que vagam pelo ciberespaço, acabei tomando contato com sua carta contendo as indagações que lhe assaltaram a alma advindas com o assassinato brutal da vereadora Marielle Franco.
Coronel, estou muito longe de ter as respostas para algo de tal grau de violência, duvido mesmo que alguém as tenha. Mas como sei o quanto é penoso um homem viver em dúvidas, tomo a inciativa de, com a tentativa de algumas respostas, buscar auxiliar a reduzir-lhe a angústia. Creio que o senhor faria o mesmo por mim.
Pois bem, o senhor começa sua carta aberta com a seguinte indagação: “por que o mundo inteiro respeita a polícia?”.
Coronel, independente da autoimagem que o senhor nutra de si próprio e da corporação a que pertence, julgo que involuntariamente o senhor fez uso de uma hipérbole. Uma figura de linguagem válida, mas que carrega dentro de si um exagero. O mundo está muito longe de na sua inteireza respeitar a polícia. Não que ela não o seja, mas acredito que em boa parte a polícia seja mais temida que respeitada, quando não odiada. E odiada porque temida e respeitada onde não é temida. Quanto os policiais têm de responsabilidade nisso, não sei. Mas, sem dúvida, a têm mais do que os que respeitam, temem ou odeiam a polícia.
A seguir, ainda no mesmo tema, o senhor questiona: ”por que o mundo inteiro precisa da polícia?”.
Polícia para quem precisa de polícia.
Coronel, a existência da polícia é função direta do nosso processo civilizatório ainda deficiente e incompleto. Quando finalmente civilizarmo-nos por inteiro, a polícia deixará de ter razão de existir. Muitos já sonharam com essa sociedade e buscaram construí-la. Cristo foi um deles. Nada é fácil. Mesmo o Cristo teve problemas com a polícia de Roma e acabou sentenciado à morte.
A seguir, em determinado momento da sua carta, o senhor indaga em relação à morte de Marielle Franco: “por que tanta tentativa de transformar essa vereadora em mártir?”.
Coronel, isso já é bem mais fácil de responder: porque ela foi martirizada em razão da causa que defendia. E quem dá a vida pela causa é mártir dessa causa. O senhor como militar reverencia Tiradentes, pois não? Um mártir da nação executado em praça pública pela polícia portuguesa do Brasil colônia. Hoje, somos um país independente e o saudamos como herói da pátria.
Quanto às outras indagações:
Ela representa o povo? Sim, vereadora democraticamente eleita; legítima representante do povo. O senhor preza a democracia e respeita seus resultados, por certo.
Que povo? O povo da cidade do Rio de Janeiro que a elegeu.
Qual segmento do povo? Parte da intelectualidade carioca, mas principalmente o povo das favelas, os negros e homossexuais – por quem Marielle fez sua opção preferencial.
Do cidadão de bem? Sem dúvida. Pobres, trabalhadores honestos e pagadores dos seus impostos. Aos pobres não é dada opção de ser diferente disso. O senhor, se acompanha o noticiário, já deve saber do banditismo que assola nossas classes mais abastadas. Não busque corruptos entre os eleitores de Marielle; os corruptos não votam em pessoas como ela.
Então, o senhor se sai com: “a Polícia Militar, responsável pela morte de negros e pobres na ordem de 30% no país (segundo a vereadora) é morta por quem?”.
Não sei quem mata a polícia, coronel. Isso é função da própria polícia investigar e nos dizer.
E vai além: “nós, PM, saímos pelas ruas escolhendo 30% de negros e pobres para matar (hahaha). Quando atingimos a nossa quota diária, vamos completar nossa meta matando brancos, asiáticos e tudo o mais que aparecer na nossa frente. É assim que funciona?”.
Coronel, se o senhor quis ser irônico, acabou parecendo ser grosseiro. Sinto em dizê-lo.
Mas, existem estatísticas; e segundo o Atlas da Violência do IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – homens, jovens, negros e de baixa escolaridade são as principais vítimas de mortes violentas no país. Os negros possuem chances 23,5% maiores de serem assassinados em relação a brasileiros de outras raças; já descontado o efeito da idade, escolaridade, do sexo, estado civil e bairro de residência.
Quantas dessas mortes violentas se dão em confrontos com a polícia e em que circunstâncias? Não sei. Mas o senhor está do lado dos que também apertam gatilhos – eu não. Deve saber como a coisa funciona.
E o senhor prossegue: “e quando morrermos em combate, tentando salvar uma vida inocente que clama pela nossa presença, vamos aguardar pacientemente os políticos, aimprensa, autoridades que estão fazendo todo esse alarde pela morte dessa “pessoa” intitulada vereadora, promotora dos direitos humanos, mãe, homossexual (como ela mesma se apresenta) fazerem também o mesmo alarde exigindo respostas rápidas e firmes das autoridades?”.
Que parágrafo longo, coronel. Quantos assuntos tratados no mesmo texto. Técnicas de redação não são seu forte, vê-se. Mas vamos lá.
Coronel, vou considerar que o senhor é ignorante quanto aos significados que possam ter o uso de aspas na linguagem escrita. Porque considerar que o senhor os conheça e mesmo assim referia-se à uma pessoa como sendo “pessoa” poderia leva-lo a responder por injúria – não muito distante de injuria racial, por razões óbvias.
Coronel, Marielle não era “intitulada” vereadora; era vereadora diplomada pela Justiça Eleitoral.
Era mãe. Foi mãe muito jovem – aos 19 anos – pobre, solteira, favelada e soube como buscar no trabalho a forma de sustentar e educar a si mesma – socióloga com mestrado em administração pública – e sustentar e educar a filha que este ano busca a universidade. Mãe tanto quanto a sua mãe que, creio eu, não fez menos pelo senhor.
Quanto à homossexualidade – coronel, eu e senhor somos heterossexuais e jamais fizemos qualquer coisa para sê-lo. Não vamos, na idade que temos, considerar isso qualquer virtude. Somos o que somos. E ela também era o que era.
Tratemos, pois, dos policiais que morrem em ação. Ainda que, pelo menos aqui em São Paulo, a polícia muito mais mate em ação do que morra. Todos lamentamos tais mortes. Uma vez me ensinaram que o certo é quando, no final do dia, o bandido vai para a cadeia e a vítima e o policial voltam para suas casas. Quando qualquer um dos três morre, algo de muito errado aconteceu. Quem me ensinou isso era policial. Imagino que o senhor concorde com o colega.
Já quanto à sua declaração: “o mais incrível é declararem em coro que os matadores “sabiam atirar”, insinuando serem policiais”, ou o senhor é muito ruim em analisar indícios – o que deporia contra a sua competência como policial – ou parece estar querendo que acreditemos que o senhor é bem mais ingênuo do que realmente seja.
Por fim, o senhor fecha sua carta com: “nós, policiais, temos uma missão muito maior do que essa mesquinharia. Somos muito mais do que “isso”. Somos a polícia!”.
Desculpe-me a franqueza, coronel, mas, na minha opinião, mesquinharia é só o que transpira desta sua carta e, fosse eu o seu comandante, o senhor seria punido pelo desserviço que com ela presta à corporação.
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