Joana Mortágua: Marielles, Catarinas e outras sementes

Tratar a exclusão social com polícia não resolve nada, só serve para encher as cadeias de pobres e, claro, de negros.

por Joana Mortágua - esquerda.net - 23 de Março, 2018

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Joana Mortágua
Este não é o primeiro(link is external) texto que escrevo sobre a execução de Marielle Franco. Por esta altura já se dispensam apresentações, o seu rosto correu mundo. Já todos sabem que era negra, bonita, ativista, favelada, lésbica, vereadora eleita pelo partido da esquerda brasileira Socialismo e Liberdade. Os seus vídeos foram vistos e revistos milhares de vezes, partilhados. As suas fotos, como aquela em que traz colado ao peito um “Amar sem Temer”, foram partilhadas até ao infinito.
Ótimo, já toda a gente sabe quem é Marielle Franco. Em Portugal ninguém quis ficar de fora do lamento coletivo pela sua morte: é sempre chocante quando uma mulher morre com quatro tiros na cabeça. Quatro balas de um lote que em 2015 foi usado na chacina de São Paulo(link is external). Um lote que pertencia à Polícia Militar. Há 64 anos, em Portugal também houve uma mulher assassinada por uma força militar; diz o Zeca que “quem viu morrer Catarina não perdoa a quem a matou”.

O que talvez nem toda a gente saiba é que nos últimos 15 anos foi assassinado, em média, um ativista ambiental por semana no Brasil. E talvez nem toda a gente reconheça a cara de Patrícia Acioli, juíza executada com 21 tiros por polícias militares insatisfeitos com a sua investigação em relação a um grupo de agentes que atuava na cidade de São Gonçalo, praticando homicídios e extorsões. Não foram tão partilhadas as fotos dos 39 políticos locais, presidentes de câmara e vereadores que foram assassinados desde janeiro do ano passado.
“Hay poca educación, hay muchos cartuchos. Cuando se lee poco, se dispara mucho”, diz o rapper porto-riquenho El Residente, porta-voz dos Calle 13. E é tão irrefutavelmente evidente. Então por que raio é que há miúdos a morrer nas favelas em vez de estarem na escola?
Há meses que a polícia militar está a invadir e a ocupar favelas no Brasil. “Para combater o tráfico”, diz o governo, para “garantir a segurança”. Mas exatamente para quem é que o Brasil está mais seguro? Os militares entram na favela como se fossem a polícia, o juiz e o carrasco. “Apreensão? Eles pegam tênis de marca e levam, humilham a gente dizendo que a gente não pode ter isso, sabão em pó de marca eles jogam no chão, entendeu? Coisas que eles acham que a gente não pode ter, porque é caro, eles levam. Eletrodoméstico, móvel, tudo. Assim é o cotidiano, sem ter nada e sem poder nada.”
A criminalização da pobreza não é uma tendência inédita num mundo cada vez mais conservador. Tratar a exclusão social com polícia não resolve nada, só serve para encher as cadeias de pobres e, claro, de negros. O Brasil é hoje um país maltratado pelas razões de sempre mas agravadas ao expoente de uma direita que chama à igualdade de género uma radicalização perigosa, promove o ódio social e corta na educação e na saúde. 
Não, lamentar esta execução não chega. É preciso que se diga com clareza porque morreu Marielle Franco e quem a matou. É preciso que se diga que no Brasil há uma autoridade paralela constituída por forças de segurança corruptas, responsáveis por parte da criminalidade organizada que existe dentro e fora da favela. Que a incapacidade dos governos do PT para dar combate a esta cleptocracia se virou com brutalidade contra os pobres no minuto em que o golpe nomeou um governo antissocial.
Sabemos que haverá sempre Catarinas Eufémias ou Marielles Francos quando a repressão apelar à coragem de quem resiste. “O processo político brasileiro”, como todos os sistemas que esmagam e oprimem, “admite que, por suas frestas, brotem Marielles como uma flor no asfalto(link is external).” Não vos mataram, semearam-vos. Mas só há semente porque há quem não esqueça os nomes, quem não perdoe as razões.
Que sejam sementes, então. Vamos deitá-las à terra, plantá-las nas trincheiras da democracia.

Artigo publicado no jornal i(link is external) a 21 de março de 2018.

Sobre o/a autor(a)

Deputada e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.

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