Francisco Louçã: O mercado, tão gostoso

Ser uma reality star de sucesso é o que sobra de espírito empresarial no século XXI e o mercado treme quando a star suspira.

por Francisco Louçã - no esquerda.net - 8 de Março, 2018 - 23:34h

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Kylie Jenner
Foi um relâmpago de choque e pavor, mas afinal não era tão difícil de imaginar. Kylie Jenner escreveu num tweet depois do jantar que estava farta do Snapchat, uma aplicação de partilha de imagens, e em consequência a cotação da empresa caiu 6% no dia seguinte, reduzindo a capitalização em 1.300 milhões de dólares. Jenner tem vinte anos e uma carreira brilhante: desde os dez que é uma estrela da série "Keeping up with the Kardashians", outra família de socialites, tendo-se tornado, entretanto, uma empresária de sucesso, com uma marca de cosméticos e roupa. Ser uma reality star de sucesso é o que sobra de espírito empresarial no século XXI e o mercado treme quando a star suspira.

Mercado mesmo, no sentido mais líquido: Jenner oficia num reduto de 25 milhões de seguidores no Twitter e de 100 milhões no Instagram. É mercado porque são os seus consumidores, essas redes tornam-se uma segunda pele, a voz que fala, o modo de atenção ao mundo. Distorce, aliena, torna-se uma forma obsessiva de reconhecimento social? Isso é precisamente o que é o mercado. Lembre-se de Chico Buarque, no seu último disco, a cantiga em dueto com Clara Buarque: "Se dane o evangelho e todos os orixás/Serás o meu amor, serás amor a minha paz/Consta nos mapas, nos lábios, nos lápis/Consta no Google, no Twitter, no Face/No Tinder, no WhatsApp, no Instagram/No email, no Snapchat, no Orkut, no Telegram/No Skype". O mercado é esta virtude virtual, esta lista de aplicações, sociedades sombra e rituais iniciáticos, só não sei se garante o circuito do amor, talvez Chico e a sua neta também desconfiem desse trânsito. O facto é que, com umas dezenas de caracteres, Jenner assustou o mercado.
Já ouço as vozes contristadas: nada disso é o mercado com a sua inteligência e conhecimento, é só uma falha, uma crispação, uma perturbação que passa. Foi um engano, em resumo. Toda a ignorância é atrevida, só posso concluir. Há no mar uma tonelada de plástico por cada tonelada de peixe, suspeito que é mesmo o mercado. Há no espaço virtual uma pilha de capitais fictícios que jogam em bitcoins e outros produtos e mistificações, é mesmo o mercado, que organiza o perigo porque é ele o perigo.
Assim se pode compreender o incidente, Jenner tuitou e o mercado estremeceu. Mas calma, ela tuitou depois a explicar que estava só a brincar.
(no Expresso de 3 de março)

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.

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