Presunção de inocência e juiz natural: um dia os textos vão revidar!

no GGN - 08/02/2018
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do ConJur
por Lenio Luiz Streck
Subtítulo: Em homenagem ao grande mestre Friedrich Müller!

Prólogo. No final do ano de 2001, o então advogado-geral da União, Gilmar Mendes, fez uma provocação interessante em um Congresso no Paraná. Contou que, em um debate em Coimbra em que participaram Canotilho, Lenio Streck e outros professores, o professor português disse que a Constituição Dirigente estava morta, ratificando o que já escrevera anos antes (sobre isso, ver Fabio de Oliveira – aqui)..
Isso relançou uma fagulha na discussão sobre Constitucionalismo no Brasil. Com o apoio da Academia Brasileira de Direito Constitucional (Flávio Pansieri e Marrafon), e a liderança de Jacinto e Aldacy Coutinho, reunimos juristas como Eros Grau, Clèmerson Clève, Avelãs Nunes, Gilberto Bercovici, Luiz A.D. Araújo, Fernando Scaff e mais nomes completando duas dezenas. Foi nos dias 21 e 22 de fevereiro de 2002, com debate com Canotilho, cujas falas estão no livro Canotilho e a Constituição Dirigente (ver aqui). Lá também estavam os professores Luís Roberto Barroso e Luiz Edson Fachin, lutando, como todos nós, pela Constituição Dirigente, enfim, pela sua força normativa. Esse grupo, com outros professores como Martonio Barreto Lima e Marcelo Cattoni, “fechou” uma década de discussões e dez livros. Reuniões em Cainã, Vale dos Vinhedos, Petrópolis, Argentina, duas vezes Portugal, Fortaleza e Belém.
Quem ler o volume 1 verá que Canotilho, embora sua quebra com a ortodoxia de um dirigismo (que nunca foi voltado ao ativismo e, sim, ao legislador), jamais pensou que uma corte ou o Judiciário pudesse decidir contra o texto da Constituição. Desse grupo, três viraram ministros do Supremo Tribunal Federal. Muitos mudaram de rumo acerca daquilo que nos motivou em 2002 e anos seguidos.
O tema central sempre foi: Constituição é direito político, direito público por excelência, e, fundamentalmente, é Direito. É norma. Vale. Não se faz democracia sem respeito à Constituição (escrevi, a partir disso, o esboço de uma TCDAPM – Constituição Dirigente Adequada a Países de Modernidade Tardia).
Essas doces reminiscências me fizeram escrever esta coluna. Para lembrar aos estimados participantes sobre o conteúdo de nossas discussões. Com toda lhaneza e respeito. Lembro que já naquela época eu liderava a “bancada jurássica” do grupo, porque mais ortodoxamente defendia o caráter dirigente e compromissório da Constituição. Mas, mesmo entre os não “jurássicos”, jamais houve alguém que ousasse dizer que o Judiciário poderia julgar, por exemplo, contra cláusulas pétreas, mormente o Supremo. Se um dos nós lá chegasse (ao STF), o compromisso seria o de defender o texto da Constituição Federal com unhas e dentes. Afinal, nos encontros faltava só cantarmos o hino (imaginário) da Constituição antes de cada reunião anual, com a estrofe final: “Constituição, Constituição, há algo mais normativo do que direitos e garantias previstos no seu núcleo duro”? Se alguém dissesse que havia algo que valia mais do que a Constituição levaria uma censura epistêmica forte. Claro que, depois, sempre íamos comer e tomar vinho. E fumar charutos. Mas, o ponto inegociável sempre foi: Constituição vincula. Há limites semânticos. Fim do prólogo.
Ato 1. Cena 1. Do início dos anos 2000, volto à realidade (ou à real-idade da coisa). Leio, na Folha de S.Pauloartigo dos ministros Roberto Barroso (STF) e Rogério Schietti (STJ) cujo leitmotiv é, ao surgir a (re)discussão da prisão em segunda instância, o seguinte: “[o] percentual de absolvição em todos os recursos julgados pelo STJ no período de dois anos, entre 1/9/2015 e 31/8/2017, foi de menos de 1%. Para ser exato, foi de 0,62%”. O título do texto, Execução penal, opiniões e fatos. Dados, estatísticas, tabelas. Pergunto: E a cláusula pétrea da Constituição Federal? De onde vêm os números? O que eles dizem? Em que medida são aplicáveis à discussão? Como funcionam? Nova pergunta: A (in)constitucionalidade da prisão antes do trânsito em julgado não depende da Constituição? Depende de números? Depende de argumentos consequencialistas?
Pelo visto, os números funcionam como critério hermenêutico. Algo como contra estatísticas, não há argumentos. Critique-me, e eu tiro um número do bolso. Problema resolvido.
Pois bem. Não entrarei no mérito dos percentuais, no mínimo, duvidosos levados em consideração pelos articulistas. Não preciso, por dois motivos muito simples. Primeiro, essa discussão vem sendo feita e está no bojo das ADCs 43 e 44 (além de artigos duros que contestam esses números — por todos, lembro Thiago Bottino). Segundo, parece que os ministros não se dão conta de que, até mesmo levadas ao extremo as decisões do STF no HC 126.292 e nas ADCs 43 e 44 (liminar), ainda assim parece claro que a decisão da Suprema Corte não obriga a prender. Nem a negativa de liminar nas ADCs fala disso. E nem poderia a Suprema Corte obrigar a prender. Todavia, o que se vende por aí é que, passado o segundo grau, a prisão é obrigatória. Contra cláusula pétrea da Constituição Federal. Como se pudéssemos inverter uma garantia constitucional: em vez de, por exceção prender, usar a ordem pública como fundamento para prender de ofício. Algo como ocorria antes da Lei Fleury.
Ainda sobre os números: será mesmo que, de cada cem decisões que chegam no STJ, só uma — ou melhor, menos de uma — está errada? Manchete: “STJ rejeita mais de 99% dos recursos criminais”. Conclusão: “condenar é bom” ou “reformar é ruim”.
Ato 1. Cena 2. Portanto, para além disso, há, ainda, outra questão — o segundo ruído de fundo que retumba por tabelas de Excel: os ministros Barroso e Schietti baseiam todo seu artigo na premissa (implícita) de que o melhor tribunal (e o melhor para o Brasil) é aquele que... condena mais. E é essa premissa, tomada desde-já-sempre como verdadeira, que dá a tônica do artigo.
Súmula 7 do STJ: A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial.
O que não foi dito: Um STJ com apenas 33 membros dá conta disso tudo? E como se deram as condenações? Com a Súmula 7, o que o STJ examina? Dá para confiar em parcela dos tribunais que ainda inverte o ônus da prova em processos de furto e tráfico de entorpecentes? Os números traduzem adequadamente o que se passa em nossa prática jurídica cotidiana? Como funciona a jurisprudência defensiva? Parece que isso não importa. O que importa é a eficiência. E, mais: para os articulistas, os números justificam a prisão antes do trânsito em julgado. Lido, assim por alto, o artigo de Schietti e Barroso quer mostrar que se deve executar a pena desde logo, a partir da segunda instância; afinal, com esse ínfimo percentual de erros, é possível afirmar que menos de 1% das prisões antes do trânsito em julgado estariam corretas. Ou entendi mal?
Ato 2. Cena 1. Esse país sobre o qual escrevem os ilustrados ministros — que tem, pelos números, um sistema jurídico que reforma menos de 1% dos recursos — serve perfeitamente de introdução ao Ato 2: a tese do ministro Edson Fachin de que “discussão sobre juiz natural da causa não é matéria constitucional”.
O que aconteceu? O Constituinte colocou o juiz natural como cláusula pétrea exatamente porque desconfiava de juízes e tribunais de exceção. Em certa medida, pois, o juiz natural é um resquício do sistema inquisitivo. Por isso, paradoxalmente, é uma blindagem contra o inquisitivismo, porque pressupõe que o juiz é o protagonista. Logo, para o constituinte, é melhor ficar com o “natural” do o “artificial”. Qual é o busílis? Simples. Essa garantia é fundamental na medida em que ainda não superamos o inquisitivismo! Mas tem mais: Fachin estaria certo se pensasse somente nas hipóteses de impedimento, suspeição, prevenção ou conexão. E está errado quando desconsidera a exigência de imparcialidade como “questão constitucional”.
Ato 2. Cena 2. O que quero dizer é que o ministro Edson Fachin teria razão, sim, se o direito brasileiro adotasse, como deveria, uma teoria da decisão que derrubasse de vez o protagonismo e supedâneos. Fachin estaria certo se o processo não continuasse a depender — e aí está o extremo fracasso da dogmática jurídica — da moral pessoal do julgador. O ínclito ministro teria sobejada razão se não operássemos sob um paradigma inquisitivista no processo penal. Teria razão... se vivêssemos no país do artigo dos ministros Roberto Barroso e Rogério Schietti, no qual os juízes não erram e os tribunais são infalíveis.
Ainda, pergunto: se o eminente ministro Edson Fachin está certo, e o juiz natural é uma questão infraconstitucional, qual teria sido o objetivo de o constituinte colocar esse texto na Constituição Federal? Seria um ornamento? O que dizer do Habeas Corpus, que, vingando a tese da inconstitucionalidade reflexa aduzida pelo ministro, por constar também no Código de Processo Penal (CPP), deixaria de ser matéria constitucional? O argumento do ministro leva ao paroxismo.
Epílogo. Buscando socorro em Müller. Caso meu ponto não tenha ficado claro, faço questão de explicar um pouco mais. Essas recentes manifestações de dois ministros do Supremo Tribunal Federal, aparentemente isoladas, guardam, entre si, algumas relações inexoráveis. Isto porque ambos parecem traçar conclusões que se distanciam da realidade, porque construídas a partir da lógica de um país que não existe:
— a uma, o ministro Fachin pensando que o “sistema funciona sem juiz natural”;
— a duas, o ministro Barroso ignorando que temos mais de 700 mil presos e que, para um recurso chegar aos tribunais superiores, necessita passar por um filtro absolutamente inimaginável, na verdade, uma corrida de obstáculos (os leitores podem dizer como se faz chegar um recurso ao STJ ou STF — uma verdadeira gincana processual — e não esqueçamos os Einsatzgruppen de recursos, expressão cunhada por Dierle Nunes para mostrar o extermínio tabula rasa de recursos nos tribunais superiores).
Sobretudo, ambas manifestações representam e mostram, didaticamente, não só os riscos que determinadas premissas equivocadas representam ao Direito, e, principalmente, que uma Constituição, de compromissória e normativa, pode ser transformada — por obra de seus guardiães — em uma simples Constituição nominalista (para usar a velha classificação de Löwenstein).
Talvez o que falte na doutrina brasileira seja uma boa dose de Hermann Heller, Konrad Hesse, Ferrajoli e, principalmente, Friedrich Müller, jurista tão caro a mim, Martonio, Cattoni, Clèmerson, Jacinto, Canotilho, Bonavides, Jacinto, Barroso, Fachin e a tanta gente do Brasil, do mundo e ao constitucionalismo brasileiro e que aqui homenageio, com uma citação do livro Quem é o povo, que penso calar fundo no imaginário dos juristas:
"O que se afigura como risco a partir da exclusão herdada do passado, configura ocasião para a luta legal e não-violenta, para a luta legitimadora contra a exclusão: a ocasião de levar essa constituição a sério na prática. Afinal de contas, não se estatuem textos de normas e textos constitucionais, que foram concebidos com pré-compreensão insincera. Os textos podem revidar."
Na verdade, no livro em alemão (Wer ist das Volk), de Müller, esta citação é ainda mais dura. Ele diz: sie können zurückschlagen. Os textos “podem bater de volta”. Sim, os textos podem dar o troco.
E, registro, com emoção, que tenho imensas saudades das discussões do grupo Cainã (assim passou a se chamar o grupo da Constituição Dirigente nas dez edições). Estou relendo os dez textos que cada um publicou nesse longo período. E ver como estamos tratando da força normativa da Constituição. E se estamos respondendo corretamente à pergunta: A Constituição é norma, mesmo? Ou é só algo que está à disposição dos intérpretes? Qual é o papel do Constitucionalismo e, o fulcral, qual é o papel do tribunal guardião da Constituição nos momentos de crise?
Temos dois caminhos, na minha modesta leitura:
a) ou o Direito normatiza;
b) ou é simples instrumento de teorias políticas de poder, circunstância para a qual as posturas realistas contribuem sobremodo, a ponto de alguns sustentarem que a colegialidade seria uma virtude, bastando uma coerência interna (ou seja: importa “o como” e não “o quê”). Meu repto: Imagine-se um colegiado votando coerentemente “entre si” a partir da construção de um “consenso” formado por livre convencimento... Ou por “vontade de poder” mesmo. Como se verdade fosse consenso. Como se o consenso pudesse abrir mão da verdade. Ora, a verdade não precisa do consenso; mas este precisa da verdade, sob pena de poder ser artificial... e valer mesmo assim. Porque pode ser extorquido. De minha parte, a coerência deve pagar um altíssimo pedágio para a integridade. Nisso reside a força normativa da Constituição. Nisso reside minha, digamos assim, “juracidade”.
Insisto: se o Direito é apenas uma teoria política de poder e é o que o Judiciário diz que é, sugiro pararmos e entregarmos as fichas, porque, neste caso, cada um tem a sua teoria. No fundo, estamos pagando caro pelo fato de termos dado pouca importância ao Direito, paradoxalmente sob o pálio de uma Constituição normativa como a nossa.
Direito é linguagem pública. Quando vamos ao Judiciário, não perguntamos o que cada magistrado pensa pessoalmente sobre o Direito. Não. Perguntamos o que essa linguagem pública tem a nos dizer. Sob pena de o Direito perder seu necessário grau de autonomia. Se a moral e a política o corrigem, o que dele resta? E para o quê serve? Para referendar decisões morais e políticas previamente tomadas? Mas então ele só, mesmo, uma teoria política de poder.
Ninguém fala de um lugar “zero”. Os juristas estudamos em algum lugar. Usamos livros. Escrevemos. Ninguém é filho de chocadeira. Portanto, o que o Ministério Público faz e o que o Judiciário diz nos processos teve/tem seu fermento em algum lugar.
Por isso, a necessidade de uma crítica à dogmática jurídica que forjou esse imaginário em que o mesmo tribunal um dia diz que o que vale é a literalidade do texto constitucional e, no outro, já esse texto perde totalmente o seu “valor de face”.
Por tudo isso, temos que ter cuidado com os textos da Constituição. Temos de tratá-los bem. Porque eles podem revidar (sie können zurückschlagen). Eles podem se revoltar. Como se diz na minha terra, o “laçaço” pode ser grande.
Com tudo isso, ainda tem gente que defende uma nova constituinte. Para quê? Se este “texto constitucional” vale pouco, por que um novo valeria algo? Mas eu penso que devemos resistir. Não me entrego. Há mais de 25 anos venho lutando por aquilo que “salvou” o Direito pós-bélico: a transformação da Constituição em norma. Em tantos países democráticos isso deu certo. Infelizmente, por aqui, o que tem valido é a vontade de poder interpretativo. Se os historiadores fossem como nossos juristas, poderiam dizer: “Cartago derrotou Roma”.
Texto longo. Reconheço. Poucas pessoas têm a pachorra de ler textos longos. Mormente quando, nesta pós-modernidade, há excesso de informações. Principalmente quando há notícias sobre um desembargador que esculhambou um advogado, mandando-o fazer de novo o exame da Ordem. Tempos difíceis.
Nestes tempos em que poucos leem, em homenagem aos que chegarem até aqui lanço o lamento das palavras de Eugênio de Andrade, poeta português: que fizeste das palavras?
Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br

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