Jessé Souza: O que a esquerda tem a aprender com o desfile da Tuiuti

por Jessé Souza — na Carta Capital - publicado 20/02/2018

O brilhantismo da escola em difundir uma mensagem direta contrasta com a dificuldade do campo progressista em oferecer uma contranarrativa ao golpe

Gabriel Nascimento/Fotos Públicas
O que a esquerda tem a aprender com o desfile da Tuiuti
A Tuiuti não falou apenas à razão. Incendiou corações
O ato de refletir sobre o mundo é custoso e penoso, tanto afetiva quanto cognitivamente. Atacar ou por em dúvida as crenças dominantes que nos habitam provoca reações que vão da rejeição silenciosa à agressão verbal e física.
Aceitar o mundo e suas crenças dominantes é mais confortável, dispende-se menos energia e provoca menos insegurança do que o desafio de “conhecer” aspectos do mundo social de modo novo. A reflexão, por conta disso, para chegar ao povo tem que tocar os afetos.  
A esquerda brasileira na atual quadra histórica pode, por conta disso, aprender e muito com o histórico desfile da escola de samba “Paraíso do Tuiuti” no Carnaval. 

A escola conseguiu retumbante sucesso ao contar a história da escravidão aos nossos dias produzindo um efeito de conhecimento acerca tanto da dimensão histórica quanto do esclarecimento dos mecanismos do momento político atual simplesmente sem paralelo desde o golpe de 2016.
Em pouco mais de uma hora de desfile, a escola apresentou uma história da escravidão no mundo e no Brasil, conseguindo a seguir, sem lacunas e descontinuidade, iluminar a permanência da escravidão e seu secular desprezo ao escravo e depois ao pobre em geral à situação brasileira atual. Isso não é pouco.
Sem trabalho de pesquisa anterior nem talento ulterior para conferir plasticidade e materialidade a ideias abstratas, o desfile histórico não teria sido possível. Pelas referências da escola, a história da escravidão internacional e nacional foi baseada em sólida bibliografia que inclui alguns dos melhores historiadores nacionais.
No caso da vinculação entre a escravidão e o momento atual, a referência principal, ao que tudo indica, foi meu livro recente “A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato” (Leya, 2017). O livro não só foi citado na bibliografia oficial da escola como é o único dentre os citados a ter como tema precisamente a continuidade da escravidão aos nossos dias sob máscaras “modernas”.
Desse modo, a escola logrou, talvez pela primeira vez na história do Brasil em uma narrativa popular de grande repercussão, recontar a história do País a partir da premissa principal - a escravidão e sua continuidade - e não das bobagens da continuidade fictícia com Portugal (onde não havia escravismo) e da corrupção pensada como “vírus cultural” e suposto problema principal ofuscando todos os outros.
O desfile da escola, assim como o meu livro, defendeu que a desigualdade abissal e o ódio a tudo aquilo que tenha ver com a melhora da situação dos pobres em nosso País - única explicação razoável para a perseguição seletiva a Lula e ao PT - é a verdadeira questão esquecida de nossa história.
A “aula” da Tuiuti é silenciada em todas as nossas escolas, em todas as universidades e em tudo que a mídia venal fala sobre a nação. Daí seu retumbante sucesso. A leitura “latente” do Brasil real, reprimida pelo conluio de interesses econômicos e políticos que colonizaram nossa vida espiritual e intelectual até hoje, explodiu na avenida como um raio em céu azul e iluminou as trevas na qual vivemos.
Não faltou nada ao enredo da escola. Muito especialmente o fato de tornar visíveis os mecanismos invisíveis da nossa dominação social, política e econômica: a ação da elite do dinheiro e do rentismo e seu verdadeiro partido político, a mídia comandada pela Rede Globo.
O carro alegórico que põe Michel Temer como mero lacaio desses interesses, com sua “gorjeta” saindo pelo paletó, em cima do carro de onde nascem os braços de um corpo invisível, perfeita representação da Rede Globo, que manipula os “manifantoches” é simplesmente genial.
Tudo foi dito em uma única alegoria. Quem manda é o mercado da rapina, os políticos sãos seus meros lacaios e “office-boys”, e quem manipula e mente é a mídia.
Todo o conteúdo de meu livro foi genialmente resumido de modo plástico e compreensível por todos. O desfile da Tuiuti tornou-se, assim, o contraponto perfeito do desfile da Beija Flor.
Esta mimetizou o discurso da Rede Globo, ou seja, defendeu a tese do patrimonialismo, da estigmatização do Estado e da política, da corrupção dos tolos, enfim... Fácil perceber porque ganhou o desfile.
O brilhantismo da Tuiuti em veicular uma mensagem facilmente compreensível contrasta com a dificuldade da esquerda em construir uma contranarrativa eficaz ao golpe. Cega pelo apoio popular a Lula, que não significa que a população tenha compreendido o que aconteceu, perde, mais uma vez, uma janela de oportunidade histórica de tornar compreensível o mundo social e suas fraudes, com o uso da linguagem visual de fácil compreensão que penetra primeiro afetivamente no espírito.
Tocada afetivamente, a população manipulada há séculos pela fraude e pela mentira pode, apenas assim, se apropriar de uma concepção alternativa e mais solidária da sociedade brasileira.

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