Ana Bárbara Pedrosa: Não deixar que Israel nos finte
Serão tempos confusos, vertiginosos. Há muita informação em simultâneo, acompanhar o mundo é uma vertigem. A Internet acelera o processo, a cada dia há novidades, jornais que afirmam em nome de outros jornais, citações de citações.
Por Ana Bárbara Pedrosa - no esquerda.net - 6 de Fevereiro, 2018
Por Ana Bárbara Pedrosa - no esquerda.net - 6 de Fevereiro, 2018
E a distância – física, cultural, de herança história – que nos separa pode dificultar o entendimento, enublar o imaginário. Mas o Médio Oriente está à distância de dois voos. Formulo a hipótese, eis-me lá um mês depois.
No voo, uma excursão de brasileiros domina tudo, só se ouve português. Esperara eu a sensação de estranheza, e afinal o mundo torna-se pequeno, nada é muito longe.
Aterro em Tel Aviv e amanhece enfim em Jerusalém. Entretanto, já fui revistada, já disse o nome dos meus pais, como se articula o meu, onde fica Guimarães, o que estou a fazer em Israel, a que cidades quero ir, se tenho um computador. E a que cidades quero ir? Jerusalém, Belém, Jericó, Ramallah, Hebron. “You know you are in Israel and not in Palestine, right?” Já estou irritada, mas controlo-me para não ser barrada à entrada, o que não quer dizer que aceda, até porque não tenho feitio para isso: “Yes, Tel Aviv, Israel”.
Apanho a primeira luz da madrugada. Primeiras impressões, ainda no centro da cidade, onde parou o autocarro que me trouxe do aeroporto Ben Gurion: frio, espaçoso, moderno, judeus ortodoxos, kippahs, gente nova armada, miúdos e miúdas, civis e militares. Num minuto, vejo umas dez metralhadoras. Apanho o eléctrico para perto da Cidade Velha, há várias lojas e cafés, mais hebraico do que árabe, está tudo fechado, ainda é cedo.
Pela Cidade Velha, quase deserta, mais lojas fechadas, várias de artigos religiosos, ruas despidas, pedra branca, gatos vadios, bandeiras azuis e brancas, indicações dos bairros: muçulmano, judeu, cristão, arménio. Parece caricatura.
Saio de novo, vejo dois grupos de militares em frente à Porta de Damasco, os dois de gente nova, um de cara tapada. Peço indicações só para ver como será o tratamento, o soldado dá-mas e eu agradeço-lhas tendo uma metralhadora apontada à cara. Ele não achará estranho falar comigo tendo um lança-granadas na lapela e eu uma máquina fotográfica pendurada no pulso, e em consonância ajo. Israel impõe-se, até quando durará a bomba atómica?
O lugar sagrado e o turismo
No Muro das Lamentações, amontoam-se judeus ortodoxos e outros, balançam-se, quase batem com a cabeça na pedra, cantam, até choram. Vários têm Bíblias nas mãos. Homens de um lado, mulheres do outro. “This is a place of modesty, people should focus on praying, not on the opposite sex”, diz-me um dos soldados.
O Muro é o segundo lugar mais sagrado para os judeus, atrás somente do Santo dos Santos, que é também o mais importante para cristãos e fica imediatamente atrás, no Monte do Templo, onde fica também o terceiro lugar mais sagrado para o Islão, depois de Meca e Medina, e de onde os muçulmanos acreditam que Maomé ascendeu num cavalo alado. Como se junta tudo isto, e todos estes, e ainda se lhes junta a via-crúcis, o Monte das Oliveiras, a Basílica do Santo Sepulcro, o Monte Sião, não espanta que Jerusalém seja o lugar mais sagrado do mundo, nem que os fanáticos abundem. Da mesma forma, não espantarão os 3,6 milhões de turistas que ali foram no ano passado, valor recorde, com uma injecção de dinheiro que Israel capitaliza, ainda que os turistas cristãos, maior fatia, lá vão pelo que está no território palestiniano roubado e ocupado. As excursões abundam, guias encaminham grupos, identificados com crachás, chapéus, alguns que envergam bandeiras de Israel. Muitos nem saberão que a Palestina existe, passam por ali e vêem tanta gente armada que acham que isso significa segurança. É possível andar pelas ruas e não ver o que nelas está escancarado. Mas, ao mesmo tempo, é impossível: não são só as armas e as fardas, as agressivas bandeiras hasteadas, os arrogantes e horripilantes “Welcome to Israel” que se ouve em todo o lado, o fanatismo e a agressão. E por isso quem pisa aquele território não pode ser apolítico. A indiferença não existe, tem consequências. Os cristãos que ali vão seguir os passos de Cristo devem saber que estão a financiar a maior potência colonizadora do mundo, que estão a contribuir para o sangue derramado, que podem escolher dormir com palestinianos, comer com palestinianos, alimentar o povo que o Povo Eleito tenta dizimar, que humilha com a sua potência militar. Ser indiferente ao conflito é escolher um lado.
Ir a Jerusalém e dormir em hotéis israelitas, dormir com israelitas, ter guias israelitas, pagar entradas que financiam o Estado de Israel, ir em camionetas israelitas ver a Basílica da Natividade a Belém e voltar no mesmo dia, ignorando o zeitgeist, faz com que o zeitgeist continue a ser o mesmo. Há símbolos de Israel em todo o lado, o da Palestina é proibido. Ainda assim, na souk, há quem venda cartazes e t-shirts a defender a libertação. A maior parte das pequenas lojas vende souvenirs de um ou de outro – de Israel ou da Palestina, do exército ou da libertação –, mas, num lugar onde não se pode viver e ser apolítico, ainda há quem venda ambos. Há t-shirts a dizer FreePalestine ao lado de outras com a bandeira de Israel, e de cruzes, miniaturas de mesquitas e kippahspara turistas.
Vivi no Brasil, mas nunca tinha estado num lugar de tal fanatismo religioso. Ali as pessoas são as religiões que professam, não é raro que um desconhecido me pergunte de que religião sou, que faça um ar confuso depois de eu ter respondido negativamente às três perguntas: “Are you a Christian? Jew? Muslim?” E depois ainda levo com um “Then what are you?”. Conheci uma senhora que se referia às pessoas pela religião, “that Christian”, “the Muslims”, os israelitas eram “the Jews” e ainda me disse que eu tinha um sotaque judeu.
Uma vida entre muros
Meteu conversa comigo enquanto eu contornava o muro de Belém, que um dia os israelitas se lembraram de construir, tolhendo os territórios palestianos, ali mesmo à porta dela. Mora e tem ali uma loja, a paisagem do dia é betão, arame farpado. Do lado palestiniano, o povo foi cravando graffiti: Trump, Fora Temer, Free Palestine, Fuck Israel, etc., etc., etc., tudo às cores. Uma coisa é ler sobre gente anónima, outra bem diferente é ver a forma antropomórfica: a senhora fala-me da vida que leva, diz que não pode sair de Belém quando quer, precisa de permissão, quase nunca dada, para entrar em território israelita, ir a Ramallah é um pesadelo porque passa por dois ou três checkpoints, e os palestinianos são sempre os últimos a passar. O pai vive a cinco minutos a pé, mas do outro lado do muro, quase nunca consegue ir vê-lo. Uma vez, tentou ir a um casamento em Ramallah, mas os soldados fecharam o checkpoint, sem explicar porquê, e ela ficou lá presa cinco horas, enquanto a fila já pintava alguns quilómetros. Se for encontrada em território israelita sem autorização, o que inclui Jerusalém, pode ter de pagar cinco mil dólares ou enfrentar uma pena de seis meses de cadeia, e o mesmo acontece a quem trabalha em território israelita e, por isso, tem autorização para ir lá estar, caso seja encontrado fora do horário laboral. Os israelitas, claro está, andam por onde querem, não dão cavaco a ninguém, e o mesmo acontece com gente como eu.
Israel plantou-lhe o muro à porta, o que está dentro é Palestina, a terra é Palestina, mas é a Israel que paga um imposto semelhante ao nosso IMI. Também paga impostos à Palestina e claro que não pode votar em Israel, da mesma forma que, ao tentar sair, fica no fundo da linha, depois de israelitas e estrangeiros. Os palestinianos, na própria terra, são o fundo da casta, tratados como animais, desumanizados. Para irem para o estrangeiro, precisam de um convite da embaixada.
A senhora é bonita, está levemente maquilhada, terá uns 40 e poucos anos, rugas à volta dos olhos, expressão angustiada. Repete várias vezes que a vida na Palestina não é fácil, e pior para ela, que é cristã e se sente sozinha, sem apoio da igreja nem político. Admira a comunidade muçulmana, acha-a muito unida, que os seus membros se ajudam uns aos outros, mas sente que está ali num limbo, sem caminho. Que lhe digo?
Despeço-me e continuo a andar pelo muro, desta vez em direcção ao checkpoint de que falou, que a separa do pai, e que tem segurança igual à dos aeroportos. Encontro-o, mas está fechado (ninguém entra, ninguém sai). Aproxima-se um taxista, Laith, uns 30 e poucos anos, mete conversa. Sou obviamente estrangeira, e assim potencial cliente. Aproveita e começa a contar sobre a Palestina, e durante a viagem venho a aperceber-me de que todas as conversas são assim. Não consegue sair de Belém, os soldados israelitas invadem-lhe a casa a seu bel-prazer, Israel faz de tudo para lhe(s) dificultar a vida. Os turistas vêm a Belém em excursões diárias, usando transportes israelitas, vêem a igreja que simboliza o nascimento de Cristo e vão embora. Oferece-me para me mostrar os pontos A, B e C e me deixar na paragem para voltar para Jerusalém, e é porque o turismo é tão absorvido por Israel que se surpreende quando lhe digo que vou dormir em Belém, nesta e nas duas noites seguintes, que evito dar dinheiro a Israel, que só como com palestinianos. Agradece e deixa de insistir na tour: "thank you, thank you for helping the Palestinian people, many tourists don't even know that Palestine exists, they sleep in Jerusalem and come here with Israeli buses, see the church and go away". Os turistas têm um papel económico e político: não é só ganhar dinheiro, mas também combater reclusão, contrariar a versão de Israel.
Não dá para ser apolítico
Foi por isso que, dadas as condições, não consegui ficar irritada com o taxista que se irritou comigo quando cheguei a Belém. Tinha de chegar depressa ao centro, o motorista dizia-me que a caminhada levaria uns 25 minutos. Um taxista dizia que me deixava lá, depois sugeriu que lhe pagasse 150 shekels para, em meia hora, me levar a ver os graffiti de Banksy no muro, um campo de refugiados e a igreja. Disse que não, queria ir para a igreja. Insistiu e foi descendo o preço, quando chegou aos 100 já estava aos berros. Comecei a sentir-me pressionada, dei a conversa por encerrada ao mesmo tempo que ele, que me mandou sair do táxi. Fi-lo e ainda o ouvi dizer que não quero saber do povo palestiniano, que só ajudo israelitas e que de certeza que andei de táxi em Jerusalém. Não dá para ser apolítico, e isso às vezes implica que se veja política onde ela não existe.
Enfim, estão presos por Israel, não têm a facilidade que tenho de andar pelo mundo sem dar cavaco a ninguém. Eu posso estar aqui, vir à terra deles, sacar do passaporte e ir embora. Eles são tratados como gado, menos do que humanos, controlados como gado, encatrafiados em cidades, tratados como criminosos. Estão na terra deles e têm menos direitos do que eu.
Mas a vida existe, e no meio do caos e das diferenças é igual em toda a parte. As pessoas têm filhos, os filhos brincam, a pele enruga, bebem café, usam azeite. Mas ali quer-se outro futuro, existe o sonho de um país, as pessoas misturam-se com o avanço da história, não são independentes dela, todas as biografias são políticas.
Como o senhor a quem comprei um café em Jerusalém. Estava do lado Oriental, queria experimentar café com cardamomo. E que chapada de conversa foi: o senhor era palestiniano, mas o passaporte, com o símbolo de Israel, diz que é jordano. Jerusalém Oriental esteve sob administração jordaniana entre 1949-1967, o que é usado para que os novos passaportes emitidos em Jerusalém identifiquem os palestinianos como naturais da Jordânia. É impensável identificá-los como aquilo que são, porque isso seria assumir que a Palestina existe como um Estado e romper a cavalgada colonialista sobre um país que se vai geograficamente apequenando.
Falamos sobre as cidades cercadas, Trump, as violações dos direitos humanos por parte do estado de Israel, a possibilidade de se prender pessoas durante seis anos sem uma acusação, Chomsky, Said, Ilan Pappé. É escritor, escreveu sobre a Palestina, convida-me para a apresentação de um livro. Será em árabe, mas se for possível lá estarei.
O regabofe triunfalista, a supremacia dos exércitos
Dou mais umas voltas e, já perto da porta de Damasco, lá está mais gente armada. O exército de Israel é obrigatório para homens e mulheres. Quem faz o serviço militar e diz que não controlará palestinianos é preso, considerado inimigo de Israel. Há soldados armados em toda a parte, putos armados em toda a parte, miúdas giras de metralhadora numa mão e cone de gelado noutra, civis armados no meio da multidão. Convive-se com armas como se elas, num micro-segundo, não pudessem ditar o fim de nada.
Falamos de um país onde a bandeira de Israel é erguida ao lado da dos EUA e da da UE e onde se fazem outdoors a dizer "God bless Trump from JerUSAlem DC to Washington DC". É o poder norte-americano ao lado do de Israel, económico e cultural, o regabofe triunfalista, a supremacia dos exércitos, a imposição de uma cultura, a arrogância, a cegueira, a violência sem fim do Povo Eleito. O saque, a pilhagem, os direitos humanos atropelados, tudo reside na bandeira de Israel, tudo se intensifica quando esta é posta ao lado do megalomania de Donald Trump. Está a tentar fazer-se da história tábua rasa, apagá-la, apagar o presente, chutar para um canto quem incomoda e impede a materialização da força mítica dos fanáticos.
E entretanto a praça em frente ao Muro das Lamentações enche-se de soldados. Serão centenas, todos novos, putos com armas pavoneiam metralhadoras para as fotos, turistas tiram-nas, tudo sorri, está instalada a festa. Uns de máquina fotográfica, outros de lança-granadas, uns civis de metralhadora pendurada ao pescoço a beijar gente nos lábios. Dois soldados, muito novos, bem mais novos do que eu, estão sem armas no coldre, mas mexem em várias, movem-nas num espaço de dois metros. Sorriem, há mais fotos. O militarismo é o pão de cada dia.
Um passaporte português num cenário apocalíptico
Igualmente transformadora será a ida a Hebron, a mais curta da viagem. Israel instalou-se ali, há vários checkpoints, lugares onde os palestinianos não podem entrar, por onde eu vagueio porque o meu passaporte mo permite. E assim, na primeira hora, mostro a identificação três vezes, entro em território israelita, pilhado, ando por ruas abandonadas pelos palestinianos que deixaram de poder lá estar. Lojas e casas sem ninguém, por ali só eu e gente armada. O cenário é de desolação, pré-apocalíptico, tudo evoca a guerra, desde a cidade fantasma aos vários militares armados, uns em telhados, à snipers, de kippah. Isto está mesmo a acontecer e eu estou mesmo a andar aqui? O choque é grande, parece um filme.
Passagens bíblicas dizem ser este o território dos judeus, e essas passagens são transcritas nos edifícios sem ninguém. O Povo Eleito clama a terra, expulsa quem a usa, só a quer para a dizer sua. Os palestinianos foram expulsos, por todo o lado há bandeiras de Israel. Para quem?
Adiante, junto ao checkpoint, três crianças brincam e uma senhora de hijab está no telhado. Devem ser palestinianas, por algum motivo os putos terão autorização para aqui estar. Um deles atira-me beijinhos da bicicleta, outro pergunta-me em inglês de onde sou. Continuam a brincar, no chão há ratos mortos. Não é ficção, não é a realidade tratada por um artista para a vermos nos olhos, cortada a bisturi para doer mais, é mesmo a secura dos dias: ruas abandonadas, três crianças a brincar, ratos mortos, snipers de kippah nos telhados, bandeiras de Israel. O que existe torna-se em hiper-realidade. A vida mistura-se com a desolação do abandono. Sobram ruínas e a história que Israel quer contar.
Passo pelo checkpoint, com o meu duro coração partido, e estou de novo em território palestiniano. Para mim, tão fácil. Passa a haver bandeiras de outra cor, muita, muita gente, comércio. Uma barreira feita com pedras a cinco metros do lugar onde Israel pôs a sua marca. Estamos a dez segundos a pé de um mundo deitado ao abandono. Como é que isto coexiste?
Para onde vamos nós com isto tudo?
Israel, Palestina, início de 2018. Vim aqui pela primeira, não sei se voltarei, mas ter um conflito à frente deixa-me logo comprometida, não se pode ser apolítico aqui, a terra excita. Um acéfalo ao leme dos EUA resolveu reconhecer Jerusalém como a capital oficial de Israel, mudando para lá a Embaixada, 128 países da ONU votaram contra a decisão, Netanyahu finge que defende a solução dos dois Estados para mascarar a ofensiva. Entretanto, o presente urge, a história avança, o inconcebível escancara-se, o colonialismo veste-se de cordeiro, e eis que alguém manda às urtigas a tendência internacional, incluindo a Wikipédia, e depois de três dias de raiva há mais protestos, o Hamas recusa-se a participar na reunião da Organização para a Libertação da Palestina, que decide não retomar as negociações de paz com Israel até que os EUA revertam a decisão de reconhecer Jerusalém como a capital de Israel.
E entretanto os acordos de paz foram ignorados: pois não ia Israel definir fronteiras? Desde o Nabka, a primeira grande expulsão de palestinianos das suas casas e terras desde 1948, a Palestina confinou-se a 15% do seu território histórico. O projecto colonialista já vai com 51 anos, desde a Guerra dos Seis Dias (1967, início da colonização de Gaza, Cisjordânia e Jerusalém), e não parece tencionar parar nem valorizar o sangue derramado. O Povo Eleito clama a sua terra, a violência obscena será uma pequena pedra no caminho.
Parto de Israel, não sem antes explicar a um soldado no aeroporto porque é que fui à Malásia (o Estado que mais financia a Palestina), com quem, quando e o que fiz, se tenho família e amigos lá, e o mesmo em relação a Marrocos. Como disse que fui uma vez e o passaporte indica duas (uma de uma escala de que nem me lembrei), as perguntas repetem-se e castigam-se, sou revistada umas cinco vezes e quase perco o avião. Corro de passaporte na mão, cabeça em água, pedra no estômago.
Artigo de Ana Bárbara Pedrosa para Esquerda.Net
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