Poder ao Povo e a crise da esquerda italiana

Inspiram-se no Labour de Corbyn, na France Insoumisse de Jean-Luc Mélenchon e nos espanhóis do Podemos, reivindicam a luta de classes e o sindicalismo de base. Nasceram num centro social de Nápoles e vão às eleições de março com a lista Potere al Popolo. Reportagem de Annalisa Camilli, do Internazionale.

esquerda.net - 23 de Janeiro, 2018 - 00:02h

O centro social Je so’ pazzo, em Nápoles. Foto Claudio Menna/
Inspiram-se no Labour de Corbyn, na France Insoumisse de Jean-Luc Mélenchon e nos espanhóis do Podemos, reivindicam a luta de classes e o sindicalismo de base nascido à volta da luta dos trabalhadores agrícolas na Itália meridional mas também nas batalhas dos trabalhadores da logística e dos call center no centro e norte, denunciam a exclusão das mulheres e dos jovens da primeira linha da política italiana e tentam acertar contas com a complexa herança politica e cultural do maior Partido Comunista da Europa: o seu objetivo é refundar a esquerda. 
Uma intenção ambiciosa se se considerar que as eleições legislativas de 4 de Março poderão significar uma das mais clamorosas derrotas para os partidos do centro esquerda italiano, que se apresentam divididos e a quem as sondagens dão uma grande desvantagem, seja para a coligação de centro direita – renascida à volta da figura do velho líder Silvio Berlusconi – seja para o Movimento 5 Estrelas (M5S), que arrisca a tornar-se no maior partido do país. 

Também para reagir à sensação de que a partida estava perdida, um grupo de ativistas próximos do centro social Je So Pazzo de Nápoles decidiu lançar a lista Potere al Popoplo (PaP), atraindo imediatamente duras críticas. Uma delas foi apontada por Luciana Castellina, fundadora do Il Manifesto, que num artigo publicado nesse jornal define o PaP como “um protesto básico que renega a rica complexidade do pensamento comunista”.
Para muitos  
Castellina, 88 anos, imputa à nova lista, apoiada por muitos representantes de sindicatos de base como COBAS e USB e, sobretudo, pela Rifondazione Comunista, o peso de enfraquecer ainda mais a já fragmentada frente da esquerda italiana, permanecendo fora da lista Liberi e Uguali (LeU), que reúne Sinistra ItalianaArticolo 1-Movimento Democratico e Progressista e Possibile, sob liderança do presidente do Senado, Pietro Grasso, que saiu do Partido Democrático (PD).
“O desacordo com os camaradas do PaP” escreve Castellina, “tem a ver com outra coisa: se para dar uma perspetiva à área social que queremos representar é mais eficaz um simples retomar de propostas que respondem às suas necessidades ou se não será melhor tentar construir, para lá do movimento social, uma frente mais ampla que permita dar à luta uma referência mais forte no parlamento e, dessa forma, uma perspetiva mais eficaz”.   
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Se se quer representar as classes mais pobres - esmagadas pela crise económica de 2008 e pelas políticas de austeridade – é-se mais forte em união, parece dizer a fundadora do Il Manifesto. “Para a maioria, não para a minoria” é o slogan dos Liberi e Uguali que decalca o mote de Corbyn ”For the many. Not for the few”. Mas o líder dos trabalhistas, que de repente se tornou no modelo mais imitado da esquerda italiana, nunca saiu do seu partido para fundar outro, nem mesmo quando o Labour era liderado por Tony Blair e tinha posições bastante distantes das suas, como no tempo da guerra do Iraque. A sua história de outsiderno Partido Trabalhista, pese as diferenças com o sistema político britânico, parece mais um aviso que um modelo para o PaP ou para os LeU.
Em 2007 a jornalista do Il Manifesto criticou duramente a criação do Partido Democrático 
Castellina dá nota de se ter sentado muitas vezes, nos últimos meses, ao lado de Massimo D’Alema, secretário-geral do PDS e, depois, dos Democratas de Esquerda (DS), que agora saiu do Partido Democrático e está entre os fundadores dos LeU. Tal não acontecia há pelo menos 25 anos. Em 2007 a jornalista do Il Manifesto criticou duramente a criação do Partido Democrático, nascido da união entre os Democratas de Esquerda, herdeiros do Partido Comunista Italiano (PCI) e dos ex Democratas Cristãos da Margarida. E hoje diz-se contente que o PD “tenha finalmente explodido” e que D’Alema se tenha “convencido que o PD era uma perigosa confusão e que Renzi não caiu do céu mas de uma parábola fatal consequente àquela escolha”  
Do centro social Je So Pazzo Viola Carofalo, 37 anos, investigadora precária na Universidade L’Orientale di Napoli e porta-voz do PaP, não parece assim tão entusiasmada com a criação dos LeU. Em vez disso, pensa na criação de uma rede política nacional que reúna todas as realidades e movimentos implantados no território para redistribuição da riqueza. 
A reforma do trabalho, de seu nome Jobs Act, ou a reforma Buona Scuola – pilares das políticas do governo liderado pelo PD – são exemplos de politicas que o PaP quer combater. “Duvidamos fortemente que Lenine, Gramsci e Togliatti fossem apoiar D’Alema e Bersani. Mas se calhar fomos nós que não os lemos corretamente” responde Carofalo, declarando-se desiludida com as palavras da fundadora do Il Manifesto. 
Um antigo hospital psiquiátrico (o exOPG)
Tudo começou em Março de 2015 com a ocupação do antigo Hospital Psiquiátrico de Nápoles - Ospedale Psichiatrico Giudiziario (OPG): um convento de 1600 que foi transformado em caserna e depois em prisão, situado numa colina do bairro de Materdei, entre bairro popular de Sanità e a zona burguesa de Vomero. Uma centena de ativistas entrou no estabelecimento abandonado há sete anos e reconverteu a estrutura num espaço social e cultural que em pouco tempo se tornou num lugar de referência para a cidade.
No centro convivem quarenta atividades: a clínica, que oferece consultas gratuitas, o espaço de tempos livres para crianças, a assembleia do trabalho, o observatório dos centros de acolhimento de migrantes, o ponto de aconselhamento jurídico e até um ginásio e a equipa de futebol SquadraPopolar Martedei. “É uma casa do povo ao velho estilo, utilizada diariamente por mais de uma centena de pessoas de diversa extração social e política” afirma Chiara Capretti, 27 anos, estudante de Ciência Política.
Ocupamo-nos do trabalho, numa perspetiva nova de luta à precariedade
Ciapretti conta que foram os comunistas do Siri Lanka, que abriram sede no exOPG, a sugerir aos ativistas napolitanos uma assembleia do trabalho no interior do centro social, onde os diversos sindicatos se pudessem encontrar para procurar caminhos comuns. ”Gostaríamos que a rede que foi criada em Nápoles nos últimos anos à volta do exOPG se formasse em todo o país à volta da lista Potere al Popolo e à centena de assembleias que a constituem nas cidades italianas”, acrescenta.
Os principais temas do programa do novo partido são o trabalho, a redistribuição da riqueza pela reforma do estado social e a tutela do ambiente e do território. “Em Nápoles ocupamo-nos da pobreza, uma prerrogativa das organizações católicas. Também nos ocupamos do trabalho, tema tradicional dos sindicatos e partidos de esquerda, mas de uma perspetiva nova de lota à precariedade, de imersão no trabalho clandestino”, explica Viola Carofalo, que acrescenta um elemento de autocrítica: ”nos últimos anos, os movimentos antagonistas por várias razões ocuparam-se pouco destes problemas”.
Que povo?
Para Chiara Capretti a exigência de entrar na política nasce da convicção que nenhum dos alinhamentos que se apresentam pode acolher as reivindicações de uma certa parte da sociedade, a mais massacrada pela crise, mesmo que a questão da representação tenha sido sempre controversa para os movimentos sociais. A própria Capretti assume nunca ter votado nas legislativas, mas “o medo que o país se posicione demasiado à direita” levou a que muitos ativistas dos movimentos sociais decidissem apresentar-se às eleições.
De facto, uma das críticas apontadas ao PaP é a da procura de representação parlamentar por parte de um movimento que deveria estar mais preocupado com a sua capacidade crítica do que com a presença no parlamento. “O que aconteceu em Nápoles com o executivo de Luigi de Magistiris reforçou a nossa convicção de que vale a pena entrar na política, porque sem um interlocutor o trabalho dos movimentos é inútil. As lutas podem ser levadas a um nível mais elevado e eficaz se houver uma forma de diálogo com as instituições”, continua Carofalo. E dá o exemplo das pequenas batalhas vencidas pelo exOPG, como a do reconhecimento da residência virtual dos sem-abrigo, uma reivindicação das associações que foi acolhida pela administração comunal napolitana.
Os ativistas do exOPG não apoiaram Luigi de Magistris quando se candidatou pela primeira vez em 2012, mas ao longo do seu mandato amadureceram uma relação de colaboração com o antigo magistrado do movimento laranja e da lista cidadã Democrazia e Autonomia (DemA) que venceu as autárquicas uma segunda vez em Fevereiro de 2017. “No início estávamos desconfiados de um de Magistris justicialista, próximo de Ingroia e de Di Pietro, mas durante a sua governação revelou-se uma pessoa muito aberta às realidades social e política do território”, conta Capretti.
A comunicação e a relação com a herança da esquerda italiana são temas muito delicados para os ativistas do PaP. “Nestes anos de atividade como movimento antagonista fizemos uma profunda autocrítica a respeito da capacidade de dar visibilidade às nossas batalhas”, adianta Viola Carofalo. “Decidimos partir dos problemas concretos das pessoas para fazer reivindicações, mas nunca nos detivemos em questões ideológicas, de pertencer a esta ou a essa família política” afirma. O PaP foi muito contestado por exemplo por ter usado a palavra “povo” no nome do partido. É-lhe imputado um sentido muito interclassista, talvez demasiado conservador, ligado aos novos populismos das direitas e do Movimento 5 Estrelas.
Carofalo lembra-se de ter feito uma longa pesquisa nos textos sagrados do comunismo – de Marx a Mao, de Lenine a Grasmci – para legitimar a escolha da palavra “povo”, que surgiu de modo espontâneo e unânime no grupo de trabalho, mas que para muitos era demasiado heterodoxa. “Depois na reunião dissemos: mas o que é que nos importam essas bíblias?” recorda Carofalo. “A palavra povo refere-se às classes menos abastadas, às pessoas que geralmente não são interpeladas nas escolhas que dizem respeito às suas vidas. E quando alguém entra aqui não se sente rejeitado pela palavra povo, algo que aconteceria se usássemos, por exemplo, a palavra proletário”, continua.
A ativista não nega a importância de refletir sobre as palavras e a sua história, mas reivindica autonomia em relação a uma tradição de que se sente herdeira: “usar a palavra socialismo ou mesmo proletariado não é errado, mas neste momento não ajuda a transmitir os valores fundamentais da esquerda: luta à discriminação, igualdade social e solidariedade”, conclui. Para Chiara Capretti, por seu lado, não é por acaso que em Itália - país que teve um dos partidos comunistas mais importantes na europa no pós-guerra – seja tão difícil refundar a esquerda, contrariamente ao que aconteceu por exemplo no Reino Unido com o Labour de Corbyn, com o Syriza e em Espanha com o Podemos. “Quem quer que tente tal empreitada enfrentará uma tradição e uma herança rica, complexa e controversa”. E depois houve a intervenção do Movimento 5 Estrelas “que fez de bombeiro da raiva social que explodiu depois da crise económica”. 
Uma geração bloqueada
Tendo crescido nos movimentos antiglobalização, Viola Carofalo faz parte da geração de ativistas que participou nas manifestações do verão de 2001, durante o G8 em Génova. “Naquela violência contra o movimento antiglobalização, foi traçada uma linha de demarcação entre o bem e o mal. Na esquerda abriu-se uma fissura que nunca foi reparada”, afirma. 
“O nosso sonho é reconstruir aquela frente ampla que em Nápoles, em Março de 2001, levava às ruas as Mães pela Paz, os sindicatos católicos, a [associação] ARCI e os movimentos antagonistas” diz Carofalo. Uma página da história italiana que nenhum partido quis assumir, deixando a geração de Carofalo – que conheceu a política em Génova – afastada dos mecanismos de representação e do voto. Não é por acaso que entre os promotores da lista Potere al Popolo esteja Heidei Giuliani, a mãe de Carlo Giuliani, morto por um carabinieri em julho de 2001 durante as manifestações contra o G8 de Génova. Na assembleia de fundação do PaP no teatro Ambra Jovinelli de Roma, a 17 de dezembro de 2017, Giuliani interveio com uma nota crítica para aqueles que definiu como “profissionais da lamúria”. Para Giuliani o desafio é levar às urnas quem deixou de votar e aqueles que nunca o fizeram: o povo da abstenção.
No novo partido é dada especial atenção às questões ambientais e à contestação às grandes obras públicas: os movimentos NO TAVNO TAP e NO MUS. O programa foi escrito recorrendo a um método que faz lembrar o da plataforma do Movimento 5 Estrelas. Pediram às pessoas dispersas pelo território para contribuírem através da internet, com o envio de propostas e denúncias, “aproveitando as competências das pessoas comuns e dos técnicos presentes no terreno”. Para Viola Carofalo não há, no entanto, proximidade com o M5S, mesmo que os métodos se possam assemelhar: “a diferença são os valores: nós somos de esquerda e comunistas, eles não”.
A luta à precariedade, tutela do ambiente, revogação do Jobs Act, reforma do Estado Social com financiamento de serviços sociais públicos como os centros de saúde, hospitais e lares, abolição da reforma Fornero [código do laboral], reforma da prisão e abolição do regime de “prisão dura” [regime de incomunicabilidade e sem direitos básicos], reforma da justiça penal: estas são alguns dos pontos do programa. Alguns deles em plena descontinuidade com a tradição dos partidos de centro esquerda. Sobre a reforma da justiça, por exemplo, o PaP tem mais pontos em comum com os liberais do que com o PD ou os LeU.
“A prisão dura é uma forma de tortura, a prisão como agora é concebida é um lugar para descarregar marginais e não um lugar onde se restabelece um elo de segurança para a sociedade”, explica Carofalo. Entre os candidatos há rostos conhecidos, como antiga estafeta do movimento de resistência Lidia Menapace, Nicoletta Dosio, do NO TAV, e Giorgio Cremaschi, ex sindicalista da FIOM e porta-voz do movimento Eurostop, mas há sobretudo desconhecidos como Stefania Iaccarino, trabalhadora do call center Almaviva, ou Ilaria Mugnai das Brigadas de Solidariedade Ativa que levaram ajuda ao Abruzzo após o terramoto. Há, no entanto, um temor que é referido por muitos analistas, de que as lideranças dos velhos partidos, como a Refundação Comunista, se apropriem desta experiência.
“O problema da forma como são tomadas as decisões está na ordem do dia: eu gostaria que ao centro se mantivesse a assembleia, as assembleias dos territórios, e que não se cedesse a ferramenta da rede [referência ao mecanismo interno de decisão online do M5S] ou a formas hierárquicas”. Carofalo assegura que por agora não há nenhuma tentativa de hegemonia por parte dos partidos que apoiam a lista. Será candidato o secretário-geral do PRC, Maurizio Acerbo, mas não se apresentarão velhas referências como Paolo Ferrero ou Paolo Cacciari. No entanto, o PaP poderá nem conseguir recolher as [cerca de 700.000] assinaturas necessárias para participar nas eleições.
“Como militante da esquerda estou habituada aos falhanços, mas desta vez, mesmo que corra mal, construímos uma rede nacional das realidades que fazem o mesmo trabalho e que até agora nem sequer estavam em contacto”, conclui. Mas depois recorda Frantz Fanon, autor de Os condenados da Terra, psiquiatra e filósofo francês originário da Martinica, teórico da descolonização, e diz: “não usaremos as palavras dos outros, as ideias dos outros, os instrumentos dos outros. Nós temos uma coisa que nenhum outro tem: somos militantes. Bersani, Renzi, Berlusconi não podem dizer o mesmo, não têm militantes que vão porta a porta, rua a rua, recolher assinaturas.”

Reportagem de Annalisa Camilli.
Tradução de André Beja para Esquerda.net

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