Do "livre" mercado às grandes ditaduras
Sai, nos EUA, livro sobre Karl Polanyi - o pensador que mostrou como a desregulação das economias levaria à desigualdade brutal e, por fim, ao fascismo
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Não surpreendentemente, muitos reagiram. Para decepção daqueles que esperavam na esquerda democrática disposição para limitar a ação dos mercados, a reação é principalmente dos populistas de direita. E por “populista” entenda-se a natureza dessa reação cuja retórica, princípios e práticas nacionalistas tangenciam o neofascismo. Um aumento do fluxo de migrantes, outra característica da globalização, agravou a raiva de pessoas atingidas pelas crises econômicas que querem Fazer a América Grande Novamente (assim como a França, a Noruega, a Hungria, a Finlândia …) . Isso ocorre não apenas em países fracamente democráticos como a Polônia e a Turquia, mas nas democracias estabelecidas — Grã-Bretanha, EUA, França, e mesmo a Escandinávia social-democrata.
Já vivemos esta situação antes. Durante o período entre as duas guerras mundiais, os liberais do “livre” mercado que governam a Grã-Bretanha, a França e os EUA tentaram restaurar o sistema do laissez-faire de antes da Primeira Guerra Mundial. Ressuscitaram o padrão-ouro e colocaram como prioridade não a recuparação econômica,mas o pagamento das dívidas de guerra e reparações. Foi um tempo de “livre” comércio e especulação desenfreada, sem controle sobre capital privado. O resultado foi uma década de insegurança econômica que terminou em depressão, enfraquecimento da democracia parlamentar ereação fascista. Até as eleições alemãs de julho de 1932, quando os nazistas se tornaram o maior partido no Reichstag, a coalizão governamental anterior a Hitler estava praticando a austeridade econômica recomendada pelos credores da Alemanha.
O grande profeta de como as forças do mercado levaram ao extremo de destruir a democracia e uma economia em funcionamento não foi Karl Marx, mas Karl Polanyi. Marx esperava que a crise do capitalismo acabasse numa rebelião global dos trabalhadores que levaria até o comunismo. Polanyi, com quase um século mais de história para avaliar, indicou que a maior probabilidade era o advento do fascismo.
Como Polanyi demonstrou em sua obra-prima, The Great Transformation (A Grande Transformação – Editora Campus, Rio, 2ª ed, 2000), de 1944, quando os mercados se tornam “desembarcados” de suas sociedades e criam deslocamentos sociais severos, as pessoas acabam por se revoltar. Polanyi viu a catástrofe da Primeira Guerra Mundial, o período entre as guerras, a Grande Depressão, o fascismo e a Segunda Guerra Mundial, como a culminação lógica das forças do mercado que esmagam a sociedade. Tratava-se, para ele do “esforço utópico do liberalismo econômico para criar um sistema de mercado autorregulado” — algo que começou na Inglaterra do século XIX. Esta foi uma escolha deliberada, ele insistiu, e não a reversão a um estado econômico natural. A sociedade de mercado, Polanyi demonstrou insistentemente, só pode existir devido a uma ação deliberada do governo que define direitos de propriedade, termos de trabalho, comércio e finanças. “O laissez faire“, escreveu ele enfaticamente, “foi planejado”.
Polanyi acreditava que a única via política capaz de moderar a influência destrutiva do capital organizado e sua ideologia do ultra mercado era por meio de movimentos trabalhistas altamente mobilizados, astutos e sofisticados. Ele concluiu isso não a partir da teoria econômica marxista, mas de uma observação aguda da experiência mais bem sucedida de um socialismo municipal na Europa entreguerras: a “Viena Vermelha” (Red Viena), onde trabalhou como jornalista econômico na década de 1920. Por um tempo no pós-Segunda Guerra Mundial, todo o Ocidente teve uma forma igualitária de capitalismo construída sobre a força do Estado democrático e sustentada por fortes movimentos trabalhistas; mas, desde a era de Thatcher e Reagan, esse poder de contenção foi esmagado, com resultados previsíveis.
Em A Grande Transformação, Polanyi enfatizou que os imperativos essenciais do liberalismo clássico do século XIX eram 1) o “livre” comércio, 2) a ideia de que o trabalho devia “encontrar seu preço no mercado” e 3) a aplicação do padrão-ouro. Os equivalentes de hoje são estranhamente semelhantes. Temos um impulso cada vez mais intenso para o comércio desregulado, para destruir os restos do capitalismo com algum nível de gestão e regulação; e o desmantelamento do que resta das salvaguardas do mercado de trabalho para aumentar os lucros das empresas multinacionais. No lugar do padrão-ouro, cuja função do século XIX era a de forçar as nações a priorizar o “dinheiro seguro” e os interesses dos detentores de títulos antes do verdadeiro bem-estar econômico, temos políticas de “austeridade” aplicadas pela Comissão Europeia, pelo Fundo Monetário Internacional e a chanceler alemã, Angela Merkel, com os bancos centrais endurecendo o crédito aos primeiros sinais de inflação.
Esta trindade obscena de políticas econômicas que Polanyi identificou não está funcionando mais agora do que na década de 1920. São fracassos retumbantes , na economia, na política social e na política. A análise histórica de Polanyi, em ambos os escritos anteriores e em The Great Transformation, foi confirmada três vezes, primeiro pelos eventos que culminaram na Segunda Guerra Mundial, depois pela contenção temporária do laissez-faire com a prosperidade democrática durante o boom do pós-guerra e agora novamente pela restauração do liberalismo econômico primário e a reação neofascista a ele.
A biografia intelectual escrita por Gareth Dale, Karl Polanyi: A Life on the Left [Karl Polanyi: Uma vida à Esquerda — Columbia University Press, 2013], fez um fino trabalho de mergulhar no homem, seu trabalho e a configuração política e intelectual em que ele se desenvolveu. Esta não é a primeira biografia de Polanyi, mas é a mais abrangente. Dale, cientista político que ensina na Brunel University em Londres, também escreveu um livro anterior, Karl Polanyi: The Limits of the Market (2010), sobre seu pensamento econômico.
Polanyi nasceu em 1886 em Viena, em uma ilustre família judaica. Seu pai, Mihály Pollacsek, emigrou da região dos Cárpatos do Império Habsburgo e formou-se engenheiro na Suíça. Ele era empregado do vigoroso sistema ferroviário do império. No final da década de 1880, Mihály mudou a família para Budapeste, de acordo com o Arquivo Polanyi. Embora tenha mantido seu sobrenome, ele adaptou o dos filhos para ao magiar (húngaro) Polanyi em 1904 — o mesmo ano em que Karl iniciou estudos na Universidade de Budapeste. A mãe de Karl, Cecile, a filha bem educada de um rabino de Vilna (Lituânia), era uma feminista pioneira. Ela fundou um colégio de mulheres em 1912, escreveu para periódicos de língua alemã em Budapeste e Berlim e presidiu um dos salões literários de Budapeste.
Em casa, o alemão e o húngaro eram falados (juntamente com o francês “à mesa”); e o inglês foi aprendido, conta Dale. As cinco crianças Polanyi também estudaram grego e latim. No quarto de século antes da Primeira Guerra Mundial, Budapeste era um oásis de tolerância liberal. Tal como em Viena, Berlim e Praga, uma grande proporção da elite profissional e cultural era de judeus assimilados. Em meados da década de 1890, Dale observa: “a fé judaica recebeu os mesmos privilégios que as denominações cristãs, e os representantes judeus receberam assentos na câmara alta do parlamento”.
Com base em entrevistas, correspondências e textos publicados, Dale evoca a era vividamente. O círculo de Polanyi em Budapeste, conhecido como A Grande Geração, incluiu ativistas e teóricos sociais, como seu mentor, Oscar Jaszi; Karl Mannheim; o marxista Georg Lukács; o irmão mais novo de Karl e seu sparring ideológico, o libertário Michael Polanyi; os físicos Leo Szilard e Edward Teller; o matemático John von Neumann; e os compositores Béla Bartók e Zoltán Kodály, entre muitos outros. Foi nesta estufa que Polanyi desenvolveu-se, frequentando o ginásio Minta, um dos melhores da cidade e a seguir a Universidade de Budapeste. Ele foi expulso em 1907, depois de uma confusão em que antissemitas interromperam uma palestra de um professor esquerdista popular, Gyula Pikler. Terminou sua graduação em Direito em 1908 na Universidade Provincial de Kolozsvár (hoje Cluj, na Romênia). Lá, foi um dos fundadores do jornal de esquerda humanista Círculo Galilei e depois integrou o conselho editorial do periódico.
Polanyi tornou-se um dos principais membros do partido político de Jaszi, o Radical, e foi nomeado seu secretário-geral em 1918. Ele foi atraído pelo socialismo cristão de Robert Owen e Richard Tawney e o socialismo comunitário de G.D.H. Cole. Ele contemplou uma fusão do marxismo e do cristianismo. Polanyi talvez seja melhor classificado como um social-democrata de esquerda — um cético, ao longo da vida, com a possibilidade de uma sociedade capitalista tolerar um sistema econômico híbrido.
Quando a Primeira Guerra Mundial eclodiu, Polanyi alistou-se como oficial de cavalaria. Quando voltou para casa no final de 1917, sofrendo de desnutrição, depressão e tifo, Budapeste estava num conflito caótico entre a esquerda e a direita. Em 1918, o governo húngaro firmou uma paz separada com os Aliados, rompendo com Viena e imaginando criar uma república liberal. Os acontecimentos nas ruas ultrapassaram a disputa parlamentar e o líder comunista Béla Kunproclamou o que acabou por ser uma República soviética húngara de curta duração.
Polanyi partiu para Viena, tanto para recuperar a saúde como para sair da linha de frente política. Lá, encontrou sua vocação como jornalista de economia de alto nível e o amor de sua vida, Ilona Duczynska, uma polonesa radical de esquerda. Sua filha, Kari, nascida em 1923, recorda, como um pré-adolescente, que fazia um clipping recortando artigos de jornais em três línguas diferentes para o seu pai. Com 94 anos, ela continua a co-dirigir o Arquivo Polanyi em Montreal.
Polanyi foi contratado em 1924 para escrever sobre política internacional naquele que pode ser considerado o equivalente da Europa Central ao The Economist, o semanário Österreichische Volkswirt. Ele continuou sua busca por um socialismo viável, envolvendo-se com outros intelectuais de esquerda e polemizando com a direita, especialmente com os argumentos do teórico do livre mercado, Ludwig von Mises. Nos debates, publicados em detalhes, Polanyi mostrava como uma economia socialista poderia ser capaz de praticar preços eficientes. Mises insistia que não era. Polanyi argumentava que uma forma descentralizada de socialismo liderada pelos trabalhadores poderia praticar preços com uma boa precisão. Com o tempo ele concluiu, diz Dale, que estes argumentos técnicos abstrusos haviam sido um desperdício de seu tempo.[1]
Uma resposta prática ao debate com Mises estava se desenrolando ao vivo na Viena Vermelha. Trabalhadores mobilizados mantiveram um governo socialista municipal no poder por quase 16 anos depois da I Guerra Mundial. O governo fornecia gás, água e eletricidade, e construía casas e prédios para os trabalhadores, financiando-se por impostos pagos pelos ricos — incluindo um imposto para os funcionários públicos. Havia subsídios familiares para pais e seguro desemprego municipal para os sindicatos. Nada disso prejudicou a eficiência da economia privada na Áustria, que era ameaçada pelas políticas infelizes de “austeridade” econômica criticadas por Polanyi. Depois de 1927, o desemprego aumentou implacavelmente e os salários diminuíram, o que ajudou a levar ao poder em 1932-1933 um governo austrofascista.
Para Polanyi, a Viena Vermelha foi tão importante por sua política quanto por sua economia. A política perversa da Inglaterra de Dickens refletiu a fraqueza política de sua classe trabalhadora, enquanto a Viena Vermelha era um emblema da força de sua classe trabalhadora. “Enquanto [a reforma das leis sociais dos ingleses] causou um verdadeiro desastre para as pessoas comuns”, escreveu ele, “Viena alcançou um dos triunfos mais espetaculares da história ocidental”. Mas, como Polanyi ponderou, uma ilha de socialismo municipal não poderia sobreviver à maior turbulência do mercado e ao fascismo crescente.
Em 1933, com os fascistas assumindo o governo, Polanyi deixou Viena e foi para Londres. Lá, com a ajuda de Cole e Tawney, ele encontrou trabalho em um programa de extensão patrocinado pela Universidade de Oxford, conhecido como Associação Educacional dos Trabalhadores. Ele ensinou, entre outros temas, a história industrial inglesa. Sua pesquisa original para essas palestras formou os primeiros rascunhos de A Grande Transformação.
Seu mentor, Oscar Jaszi, também estava agora no exílio e ensinava em Oberlin. Para complementar o seu reduzido pagamento como adjunto, Polanyi conseguiu se contratado para conferências em faculdades nos Estados Unidos. Ele encontrou a América de Roosevelt um contraponto esperançoso à Europa. Depois que a guerra explodiu, uma dessas viagens de conferência evoluiu para uma nomeação por três anos no Bennington College, onde completou seu livro.
O timing para a publicação de A Grande Transformação foi auspicioso. O ano de 1944 testemunhou o Acordo de Bretton Woods, o apelo de Roosevelt por uma Declaração de Direitos Econômicos e o plano épico de Lord Beverage, Pleno Emprego numa Sociedade Livre. O que estas iniciativas tinham em comum com o trabalho de Polanyi era a convicção de que um mercado excessivamente livre nunca mais deveria levar à miséria humana, que termina no fascismo.
No entanto, o livro de Polanyi foi inicialmente recebido com um silêncio retumbante. Isto, penso eu, foi o resultado de dois fatores.
Primeiro, Polanyi não pertencia a nenhuma disciplina acadêmica e era essencialmente um autodidata. Dale escreve que quando finalmente lhe foi oferecido um trabalho como professor de História Econômica em Columbia, em 1947, “os sociólogos viram-no como um economista, enquanto os economistas pensavam o contrário”. Os meados do século XX, nos Estados Unidos, foram um período em que a economia política, o arcabouço institucional, a história do pensamento econômico e a história econômica entraram em um período de eclipse, em favor de uma visão formalista. E o pensamento de Polanyi não era uma hipótese que poderia ser testada.
Segundo e mais importante, os adversários ideológicos de Polanyi gozavam de prestígio e eram promovidos, enquanto ele contava apenas o poder de suas ideias. Mises, como Polanyi, não tinha credenciais acadêmicas. Mas ele conduziu um influente seminário privado a partir de seu cargo como secretário da Câmara de Comércio da Áustria. O seminário desenvolveu a escola de economia ultraliberal austríaca. O primeiro aluno de Mises foi Friedrich Hayek. Como teórico do laissez-faire financiado por empresários, Mises antecipou a Fundação Heritage em meio século.
Hayek afirmou em The Road to Serfdom [O Caminho da Servidão, livro que lhe deu o Nobel de Economia em 1974] que os esforços bem-intencionados do Estado para controlar os mercados acabariam em despotismo. Mas não há nenhum caso de social-democracia que tenha derivado em ditadura. A história deu razão a Polanyi, demonstrando que um mercado livre sem regras é que leva a uma ruptura com a democracia. Hayek acabou com uma cadeira na London School of Economics, que foi fundada originalmente pelos socialistas fabianos; a “Escola austríaca” foi reconhecida como uma escola de economia ultraliberal; e Hayek depois ganhou o Prêmio Nobel de Economia. O Caminho da Servidão, também publicado em 1944, foi um best-seller, publicado em capítulos no Reader’s Digest. A Grande Transformação de Polanyi vendeu apenas 1.701 cópias em 1944 e 1945.
Quando A Grande Transformação apareceu em 1944, a resenha no The New York Times foi seca. O resenhista, John Chamberlain, escreveu: “Este ensaio maravilhosamente escrito reavalia 150 anos de história e apresenta um sutil apelo por um novo feudalismo, uma nova escravidão, um novo status econômico que vai amarrar os homens aos seus lugares de residência e seus empregos”. Não à toa, esta opinião soa como Hayek: o mesmo Chamberlain acabara de escrever o prefácio efusivo para O Caminho da Servidão. É o que se poder chamar de economia política de influência.
No entanto, o livro de Polanyi recusou-se a desaparecer. Em 1982, seus conceitos foram a peça central de um impactante artigo do estudioso de relações internacionais John Gerard Ruggie, que denominou a ordem econômica do pós-guerra de 1944 de “liberalismo incorporado”. O sistema de Bretton Woods, escreveu Ruggie, reconciliou o estado com o mercado por “re-incorporar” o liberalismo econômico na sociedade por meio de políticas democráticas”[2]. O sociólogo dinamarquês Gøsta Esping-Andersen, importante historiador da social-democracia, usou o conceito polanyiano de ” desmercantilização” em um livro importante, The Three Worlds of Welfare Capitalism [Os três mundos do capitalismo do bem-estar social -1990], para descrever como os social-democratas continham e complementavam o mercado.[3]
Outros estudiosos que valorizaram as ideias de Polanyi foram os historiadores políticos Ira Katznelson, Jacob Hacker e Richard Valelly, o falecido sociólogo Daniel Bell, e os economistas Joseph Stiglitz, Dani Rodrik e Herman Daly. Por outro lado há pensadores que parecem essencialmente polanyianos em sua preocupação com os mercados que invadem os reinos não mercadológicos, como Michael Walzer, John Kenneth Galbraith, Albert Hirschman e a premiada com o Prêmio Nobel Elinor Ostrom. Este é o preço que se paga por ser, na auto-descrição de Hirschman, um intruso.
Exilado três vezes — de Budapeste para Viena, de Viena para Londres, e mais tarde para Nova York — Polanyi teve que se mudar mais uma vez quando as autoridades dos EUA não concederam a sua mulher Ilona um visto, alegando que ela havia sido do Partido Comunista na década de 1920. Eles mudaram-se para um subúrbio de Toronto, de onde Polanyi foi para Columbia, até sua aposentadoria em meados da década de 1950.
Embora seus entusiastas tendam a se concentrar apenas em A Grande Transformação, o livro de Dale é precioso para a avaliação sobre Polanyi depois de 1944. Ele viveu por mais 20 anos, trabalhando no que era conhecido como sistemas econômicos primitivos, o que lhe deu mais bases para demonstrar que o mercado livre não é uma condição natural, e que os mercados de fato não têm que predominar sobre o resto da sociedade. Ao contrário, muitas culturas ancestrais misturaram as formas de intercâmbio de mercado com relação econômicas e comerciais não mercadológicas. Ele estudou o tráfico de escravos do Daomé e a economia de Atenas na Antiguidade, os quais “demonstraram que elementos de redistribuição, reciprocidade e troca poderiam ser efetivamente fundidos em ‘um todo orgânico’ “. Dale escreve: “Para Polanyi, a Atenas democrática foi na verdade uma precursora, na Antiguidade, da Viena vermelha”. Atenas, é claro, estava longe de ser socialista, mas naquela economia pré-capitalista estavam mescladas formas de geração de renda mercadológicas e não mercadológicas.
Dale também aborda os pontos de vista de Polanyi sobre a escalada da Guerra Fria e sobre a economia mista do pós-guerra, que muitos agora veem como uma era dourada. Os Trinta Gloriosos [assim são conhecidos os 30 anos de forte crescimento na economia do pós-guerra, de 1946 a 1975] que combinavam o capitalismo igualitário e a democracia restaurada, foram sentidos por Polanyi como uma afirmação. Mas ele, tendo vivido duas guerras, a destruição da Viena socialista, a perda de familiares durante o nazismo, quatro exílios e longas separações de Ilona, %u20B%u20Bnão foi tão facilmente convencido. Enquanto admirava Roosevelt, ele considerava o governo trabalhista britânico de 1945 como um exemplo acabado de estado de bem-estar num sistema ainda capitalista.
Meio século depois, essa preocupação mostrou-se acertada. Outros viram o sistema de Bretton Woods como uma maneira elegante de reiniciar o comércio, criando condições para cada nação-membro administrar suas economias de pleno emprego; mas Polanyi considerou o sistema como uma extensão da influência do capital. Isso também pode ter sido profético. Na década de 1980, o FMI e o Banco Mundial foram transformados em defensores da austeridade, o oposto do que fora planejado por seu arquiteto, John Maynard Keynes. Ele culpou, pela Guerra Fria, principalmente a ação dos Aliados. Louvou a visão de Henry Wallace [vice-presidente dos EUA sob Roosevelt], de que o Ocidente poderia ter conseguido uma acomodação com Stalin.
Dale não poupou críticas a Polanyi sobre o que chamou de seu ponto cego em relação à União Soviética. Em vários momentos das décadas de 1920 e 1930, ele observa, Polanyi deu sua aprovação a Stalin, mesmo culpando o pacto Molotov-Ribbentrop de 1940 pelo o anti-sovietismo da Casa Branca. Ele estava muito otimista quanto às intenções dos soviéticos no período imediato do pós-guerra. Como membro do Conselho de Emigrados Húngaros em Londres, ele discutiu com os outros líderes se o Exército Vermelho deveria ser entendido como um precursor do socialismo democrático. A libertação soviética da Europa Oriental, insistiu Polanyi, traria “uma forma de governo representativo baseado em partidos políticos”.
Comprovado o erro de sua tese, Polanyi aplaudiu a abortada revolução húngara de 1956. Mesmo depois de a rebelião ter sido esmagada por tanques soviéticos, ele encontrou razões para a esperança no comunismo goulash ligeiramente reformista que se seguiu. Isso era ingênuo, mas não totalmente equivocado. Embora Polanyi não fosse marxista, havia uma abertura suficiente na Hungria a ponto de em 1963, um ano antes de sua morte e bem antes da queda Muro de Berlim, ele ter sido convidado para conferências na Universidade de Budapeste, sua primeira visita a seu país em quatro décadas.
No centenário de nascimento de Polanyi, em 1986, Kari Polanyi-Levittorganizou um simpósio em homenagem a seu pai em Budapeste. O volume da conferência é um excelente companheiro à biografia de Dale[4]. Os 25 artigos curtos são escritos por uma mistura de escritores com base no Ocidente e vários que moravam no que ainda era a Hungria comunista — onde Polanyi era amplamente lido. A escrita é surpreendentemente exploratória e não dogmática. Mesmo assim, quando chegou sua vez da falar, Polanyi-Levitt pediu: “Se me for permitido mais um pedido à Academia Húngara das Ciências … este é que A Grande Transformação seja disponibilizada aos leitores húngaros em língua húngara”. Isso foi finalmente feito em 1990. Como muitos no Ocidente, o regime comunista em Budapeste não tinha certeza do que fazer com Polanyi.
Hoje, depois de um interlúdio democrático, a Hungria é um centro da autocracia ultra-nacionalista. Políticas equivocadas de licenciosidade financeira têm desempenhado sei papel habitual. Após o colapso financeiro de 2008, o desemprego húngaro aumentou constantemente, de menos de 8% antes do crash até quase 12% até o início de 2010. Na eleição de 2010, o Fidesz – Magyar Polgári Szövetség (União Cívica Húngara), de extrema direita, varreu o governo de esquerda, ganhando mais do que 2/3 dos assentos parlamentares, o que possibilitou a “democracia de controle” do primeiro-ministro Viktor Orbán. Foi mais um eco, de que Polanyi não precisava.
O que, afinal, devemos fazer com Karl Polanyi? E que lições ele pode oferecer para o momento presente? Como até mesmo os seus admiradores admitem, algumas de suas observações eram falhas. Alguns de seus seguidores, Fred Block e Margaret Somers, ressaltam que sua narrativa da Grã-Bretanha do final do século XVIII exagera na abrangência da proteção legal aos mais pobres. Seu famoso estudosobre a Lei dos Pobres ou Lei Speenhamland, de 1795, cuja assistência pública protegeu os pobres das primeiras perturbações do capitalismo, exagerou na avaliação de sua aplicação na Inglaterra como um todo. No entanto, seu relato da reforma liberal da Lei dos Pobres na década de 1830 foi perfeito. A intenção e efeito foram expulsar as pessoas da rede de apoio e forçar os trabalhadores a aceitarem empregos por salários mais baixos.
Pode-se também argumentar que o fracasso da democracia liberal em conquistar a Europa Central no século XIX, o que abriu o caminho para o nacionalismo de direita, teve causas mais complexas do que a disseminação do liberalismo econômico. No entanto, Polanyi estava certo ao observar que foi a tentativa fracassada de universalizar o liberalismo de mercado após a Primeira Guerra Mundial que deixou as democracias fracas, divididas e incapazes de resistir ao fascismo, até o início da guerra. Neville Chamberlain é mais lembrado por sua capitulação para Hitler em Munique em 1938. Mas, no fosso da Grande Depressão, em abril de 1933, quando Hitler estava consolidando o poder em Berlim e Chamberlain era o chanceler conservador do Tesouro em Londres, ele afirmou : “Estamos livres desse medo que nos assola, o medo de que as coisas vão piorar. Nós devemos nossa liberdade ao fato de termos equilibrado nosso orçamento”. Tal foi a sabedoria convencional perversa, então e agora.
Um artigo recente de três cientistas políticos dinamarqueses no Journal of Democracy questiona se é razoável atribuir o surgimento do fascismo nas décadas de 1920 e 1930 às políticas liberais do laissez-faire e ao colapso econômico.[5] Eles relatam que as democracias bem estabelecidas do noroeste da Europa e das antigas colônias britânicas do Canadá, dos EUA, da Austrália e da Nova Zelândia “foram virtualmente imunes às crises persistentes do período entreguerras”, enquanto as democracias mais novas e mais frágeis da Europa do Sul, Central e Oriental sucumbiram. Na verdade, os fascistas assumiram brevemente o poder no noroeste da Europa apenas por invasão e ocupação. No entanto, essa observação faz de Polanyi uma voz ainda mais profética e ameaçadora sobre o nosso tempo. Hoje, em grande parte da Europa, os partidos de extrema direita são agora a segunda ou terceira maior força.
Em suma, Polanyi pode ter errado aqui e ali, mas conseguiu acertar no grande cenário. A democracia não pode sobreviver com um mercado excessivamente livre; e conter o mercado é tarefa da política. Ignorar isso é cortejar o fascismo. Polanyi escreveu que o fascismo resolveu o problema do mercado desenfreado destruindo a democracia.
Mas, ao contrário dos fascistas do período entreguerras, os líderes de extrema direita de hoje não se ocupam de conter as turbulências no mercado ou proporcionar empregos dignos através de obras públicas. O Brexit, um espasmo de raiva dos despossuídos, não fará nada positivo para a classe trabalhadora britânica; e o programa de Donald Trump é uma mescla de retórica nacionalista e uma aliança ainda mais profunda do governo com o capitalismo predatório. O descontentamento ainda pode ir para outro lugar. Assumindo o valor da democracia, pode haver uma mobilização combativa no espírito do socialismo viável de Polanyi. O pessimista Polanyi diria que o capitalismo ganhou e a democracia perdeu. O otimista nele procuraria uma renovação da política popular.
Tradução: Mauro Lopes
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[1] Tratei do conflito Mises-Hayek-Polanyi em Karl Polanyi Explains It All, no The American Prospect, maio-jun 2014
[2] John Gerard Ruggie, International Regimes, Transactions, and Change: Embedded Liberalism in the Postwar Economic Order, International Organization, Vol. 36, No. 2 (Spring 1982).
[3] Gøsta Esping-Andersen,The Three Worlds of Welfare Capitalism (Polity, 1990).
[4] The Life and Work of Karl Polanyi: A Celebration, edited by Kari Polanyi-Levitt (Montreal: Black Rose, 1990).
[5] Agnes Cornell, Jørgen Møller, Svend-Erik Skaaning, The Real Lessons of the Interwar Years, Journal of Democracy, Vol. 28, No. 3 (July 2017).
* Publicado originalmente no Outras Palavras
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