Mitos em torno de atacar a Coreia do Norte
Fonte: The Vineyard of the Saker - no Diário Liberdade - 26/12/2017
Esse segundo cenário criaria uma situação perigosa para a China, é claro, mas sempre seria muito mais perigosa para as forças dos EUA na Ásia, que se veriam numa área muito grande sem qualquer meio para forçar qualquer adversário a render-se ou parar. Por fim, assim como a China não pode deixar que os EUA esmaguem a Coreia do Norte, a Rússia não pode deixar que os EUA esmaguem a China. Será que já conhecemos essa dinâmica, de outro lugar? Sem dúvida, sim. É semelhante ao que temos observado no Oriente Médio recentemente:
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[The Saker, Tradução do Coletivo Vila Vudu] Primeiro, a(os) idiota(s) fanfarrona(rrões)
Trump e Haley só pensam nisso. Querem forçar a China a agir contra a República Popular Democrática da Coreia, RPDC, ameaçando tomar a Coreia do Norte "nas próprias mãos" se a China não aceitar o repto.
Nikki [Pepe Escobar, no Facebook: "Nikki 'Hillbilly hell' Haley pirou completamente!" (NTs)] disse: "Mas para ser bem clara, China pode fazer mais (...) e estamos pressionando os chineses o mais possível. Da última vez que cortaram completamente o petróleo, a Coreia do Norte veio à mesa de conversação. E já dissemos à China que tem de fazer mais. Se não fizerem mais, nós vamos cuidar deles com nossas próprias mãos e começaremos com sanções secundárias."
Primeiro, vejamos a mesma cena num jardim de infância:
Criança A briga com criança B. Criança A ameaça bater na criança B. Criança B diz à criança A que vá se coçar nas ostras. Criança A nada faz, mas faz mais ameaças. Criança B só dá risadas. Então, criança A inventa um plano brilhante: ameaça a criança C (muito maior e muito mais forte que a criança B): "se vocês não fizer a Criança B aceitar minhas exigências eu mesma resolverei esse caso!"O pátio inteiro irrompe em gargalhadas histéricas.
Pergunta: Que nota você daria à inteligência da criança A?
Seja como for,
Seria realmente cômico se fosse show de piadas. Mas aí nada há de piada: EUA caminham devagar mas firmemente em direção a mais guerra. E a coisa ainda piora com a obsessão da mídia-empresa com o alcance dos mísseis da Coreia do Norte, e se alcançam Guam ou, até, os EUA. Com todo o respeito que se deve prestar à posição imperial de "só eu sou importante (e o resto que se dane)", há vários modos pelos quais "nós", i.e. o povo dos EUA pode sofrer consequências terríveis de uma guerra na Península Coreana, e modos que nada têm a ver com ataques de mísseis a Guam ou aos EUA.
O alvo lucrativo: Japão
Esse verão falei de umas das mais esquecidas consequências possíveis de uma guerra com a RPDC e quero voltas àquela questão mais uma vez. Primeiro, o excerto que interessa do artigo anterior [aqui traduzido]:
"Por mais que eu, pessoalmente, acredite que Kim Jong-un nada tem de doido, e que o principal objetivo da liderança da Coreia do Norte é evitar a qualquer custo uma guerra... E se eu estiver errado? E se os que dizem que os líderes da Coreia do Norte são completamente doidos estiverem certos? Ou, o que me parece muito mais provável, Kim Jong-un e os líderes norte-coreanos chegarem à conclusão de que nada têm a perder, e os norte-americanos vão mesmo matá-los, com famílias e amigos? O que poderiam fazer, pelo menos em teoria, se realmente desesperados? Nesse caso, permitam-me dizer: esqueçam Guam; pensem em Tóquio! De fato, enquanto a RPDC poderia devastar os sistemas de artilharia de Seul, completamente fora de moda, os mísseis da RPDC são provavelmente capazes de atingir Tóquio ou toda a região de Kyoto, Osaka e Kobe incluindo as indústrias chaves da Região Industrial de Hanshin. A área da Grande Tóquio (região Kanto) e a região Keihanshin são muito densamente povoadas (37 e 20 milhões de habitantes respectivamente) e número imenso de indústrias, muitas das quais, se atingidas por mísseis, gerariam desastre ecológico de imensas proporções. E não só isso. Um ataque contra nodos econômicos e financeiros do Japão resultaria provavelmente numa espécie de colapso econômico internacional do tipo 11/9. Assim sendo, se os Norte-coreanos realmente querem ferir os norte-americanos, podem atacar Seul e cidades chaves do Japão, o que levaria a crise política monstro em todo o planeta. Durante a Guerra Fria, costumávamos estudar as consequências de um ataque dos soviéticos ao Japão e as conclusões eram sempre as mesmas: o Japão não tem meios para fazer guerra de nenhum tipo. A massa de terra do Japão é pequena demais, densamente povoada demais, farta demais em alvos muito valiosos, e uma guerra destruiria o país inteiro. Ainda é verdade hoje, ainda mais verdade do que antes. E imaginem a reação na Coreia do Sul e no Japão se algum ataque norte-americano ensandecido à RPDC levasse a ataques de mísseis contra Seul e Tóquio! E os sul-coreanos já deixaram absolutamente clara a posição deles. Quanto aos japoneses, já estão oficialmente pondo suas esperanças em mísseis (como se alguma tecnologia pudesse mitigar as consequências da insanidade!). Assim sendo, sim, a RPDC é perigosíssima, e empurrá-los para posição de vida ou morte é atitude completamente irresponsável, com bombas atômicas ou sem."
Contudo, por alguma razão, a mídia ocidental raramente menciona o Japão ou as possíveis consequências econômicas globais de um ataque ao Japão. Bem pouca gente sabe com certeza se os norte-coreanos realmente desenvolveram bomba atômica usável (ogiva e míssil) ou se o míssil balístico da Coreia do Norte pode realmente alcançar Guam ou os EUA. Mas não acho que haja qualquer dúvida de que o míssil norte-coreano pode facilmente cobrir os 1.000km (600 milhas) até o coração do Japão. Na verdade, a RPDC já dispararam mísseis por cima do Japão no passado. Alguns norte-americanos de cabeça quente tentarão, como sempre, explicar para o gasto que o sistema US THAAD pode proteger e protegerá a Coreia do Sul e o Japão, desses ataques por mísseis. Outros contudo discordarão. Não saberemos até ver, mas a julgar pelo desempenho absolutamente pífio do muito elogiado sistema de mísseis US Patriot na Guerra do Golfo, eu de modo algum apostaria minhas fichas em nenhum sistema de mísseis antibalísticos fabricados nos EUA. Por último, mas não menos importante, os norte-coreanos podem por um artefato nuclear (mesmo que nem seja uma real ogiva nuclear) num navio de comércio ou até num submarino, levá-lo até o litoral do Japão e detoná-lo. O pânico e o caos que daí adviriam podem acabar por custar mais vidas e mais dinheiro que a própria explosão.
E há Seul, claro. O analista norte-americano Anthony Cordesman disse em termos muito simples: "Uma batalha próxima da Zona Desmilitarizada, dirigida contra alvo como Seul, poderia escalar rapidamente até um ponto em que ameaçaria toda a economia da República da Coreia, ainda que não ocorresse qualquer grande invasão".
[Cordesman sendo Cordesman, imediatamente passa a alucinar sobre os efeitos de uma invasão pela RPDC à República da Coreia e sai-se com frases como "É problemática qualquer avaliação do resultado de uma grande invasão pela RPDC contra a República da Coreia, mesmo que só se considerem as forças RPDC-Coreia do Sul. A RPDC tem forças de solo muito maiores, mas o resultado hoje seria uma batalha terra-ar movida pela superior mobilidade das forças terrestres da RPDC, e sua capacidade para se concentrar ao longo de determinadas linhas de avanço relativas ao atrito tecnicamente superior que as forças de terra e ar da Coreia do Sul poderiam infligir é impossível de calcular com qualquer confiança, bem como o real mix de forças que os dois lados poderiam apresentar em dados área e cenário". Uau! O homem está discutindo a conceitos de batalha Ar-Terra no contexto de uma invasão da Coreia do Sul, pela RPDC! Poderia discutir também o uso do conceito de Follow-on-Forces Attack no contexto de uma invasão de marcianos à Terra (ou da igualmente improvável invasão, pelos russos, aos paraestados do Báltico!).
É engraçado e patético o quanto um país com estratégia nacional militar, doutrina militar e posicionamento de forças totalmente ofensivos sente a imperiosa necessidade de fantasiar cenários defensivos, para de algum modo tentar dar conta da dissonância cognitiva que resulta de ser, sem dúvida possível, o bandidão.]
Por que Cordesman diz isso? Porque, segundo um especialista sul-coreano "As peças de artilharia da RPDC de calibres 170mm e 240mm "podem disparar 10 mil vezes por minuto contra Seul e arredores". Durante a guerra na Bósnia a mídia 'ocidental' falou de ataques massivos da artilharia sérvia contra Sarajevo", quando o padrão de fogo era de cerca de 1 disparo de artilharia por minuto. Fico cá pensando o que dirão de 10 mil disparos por minuto.
O resumo da história é o seguinte: não se pode esperar que nosso inimigo aja do modo como mais interessaria a nós; de fato, deve-se assumir, isso sim, que ele fará o que você não espera e que sempre seja o pior possível para você. E, nesse contexto, a RPDC tem número muito maior de opções que lançar um Míssil Balístico Intercontinental contra Guam ou os EUA. Os doidos no governo podem não querer falar disso, mas um ataque contra a RPDC arrisca-se a derrubar as economias da Coreia do Sul e do Japão, com consequências imediatas e globais: considerando que a natureza vulnerável e instável do sistema financeiro e econômico internacional, duvido muito de que uma grande crise na Ásia não resulte no colapso da economia dos EUA (que seja como for, já é frágil).
Devemos também considerar as consequências políticas de uma guerra na Península Coreana, especialmente se, como é mais provável, Coreia do Sul e Japão sofrem dano catastrófico. É situação que pode resultar em tal explosão de sentimentos anti-EUA, que os EUA terão de fazer as malas e deixar completamente a região.
Como você acha que a RPDC sente-se quanto à essa possibilidade? Pois é. Exatamente. E isso não explicaria por que os chineses estão tão felizes por deixar que os EUA lidem com o problema da Coreia do Norte, sabendo como sabem perfeitamente que de um modo ou de outro os EUA perdem, sem que os chineses tenham de disparar um único tiro?
O terreno
A seguir, quero voltar a um tema que é discutido com muito mais frequência: a artilharia e as forças especiais da Coreia do Norte.
O que quero que vejam é que o terreno na Coreia do Norte é o que os militares chamam de "terreno misto" [ing. "mixed terrain"]. O verbete sobre a topografia da Coreia do Norte na Wikipedia explica realmente muito bem:
O terreno consiste sobretudo de colinas e montanhas separadas por vales estreitos e profundos. As planícies costeiras são mais amplas no oeste e descontínuas no leste. Os primeiros europeus que visitaram a Coreia observaram que o país era como "um mar numa tempestade violenta", porque as muitas montanhas sucessivas que cruzam a península. Cerca de 80% do solo da Coreia do Norte é constituído de montanhas e terras altas, com todas as montanhas da península de altitude superior a 2.000 metros localizadas na Coreia do Norte. A grande maioria da população vive nos planos e nas terras baixas.
Vindo da Suíça, conheço muito bem esse tipo de terreno (é o que se vê nas terras do sopé dos Alpes chamadas "Oberland" ou "Pré-Alpes") e quero acrescentar o seguinte: vegetação densa, florestas, rios e ravinas com margens abruptas e correntes rápidas. Pequenas vilas e *muitos* túneis subterrâneos profundos. Há também áreas planas, claro, na Coreia do Norte, mas, diferente da Suíça, na Coreia do Norte são quase todas campos de arroz e alagados. Em termos militares, isso se traduz em uma palavra, só uma e absolutamente aterrorizante: infantaria.
Por que a palavra infantaria assusta tanto? Porque infantaria significa ação a pé (ou a cavalo), com mínimo poder aéreo (AA eMANPADS), praticamente sem satélites (veem pouco), poucos blindados (não conseguem movimentar-se), sem aviação aérea armada com armas pesadas, sem submarinos e sem mísseis cruzadores. Porque infantaria significa "nenhum alvo proveitoso", e só com forças dispersas e muito bem escondidas. Guerra em nível de companhia e, mesmo, de batalhão. Porque infantaria em terrenos mistos significa o tipo de guerra, precisamente, que os EUA mais temem.
O adversário
E com isso em mente, repito que, além de suas forças armadas gigantes (cerca de um milhão de soldados mais outros 5 milhões em organizações paramilitares, a RPDC tem também 200 mil soldados de forças especiais. Assumamos que a propaganda ocidental esteja, pelo menos dessa vez, dizendo a verdade, e que as forças armadas regulares são mal equipadas, mal treinadas e mal comandadas e até famintas e desmotivadas (não estou absolutamente convencido de que seja pressuposto aproveitável, mas vamos por partes). Disseminar esse grande número de soldados por toda a área de combate sempre será grave dor de cabeça, mesmo para as "melhores e mais poderosas forças armadas na história", especialmente se você acrescentar à mistura 200 mil forças especiais bem treinadas e altamente motivadas (espero que também se possa assumir que forças especiais desmotivadas seriam muito irresponsáveis). Como fazer para saber quem é quem e de onde vem a maior ameaça? E considerem o seguinte: seria excesso de ingenuidade esperar que as forças especiais norte-coreanas aparecessem em uniformes marcados com RPDC. Aposto que muitos deles aparecerão em uniformes da Coreia do Sul, e outros em trajes civis. Podem imaginar o caos de tentar dar-lhes combate?
Podem dizer que os norte-coreanos têm armas de 1950s. OK. E daí? São precisamente as armas mais É precisamente o tipo de arma mais necessária para o tipo de guerra de que estamos falando: infantaria em terrenos mistos. Até equipamento da 2ª Guerra Mundial daria muito certo. E quanto à artilharia norte-coreana? Estamos falando de cerca de 8.600 peças de artilharia, e de mais de 4.800 lançadores de foguetes múltiplos (fonte).
Anthony Cordesman estima que haja 20 mil peças nas "áreas adjacentes" a Seul. É muito mais do que os EUA têm em todo o mundo (5.312, segundo o "Military Balance" de 2017, incluindo morteiros). E tenham em mente que não estamos falando de baterias bem distribuídas num deserto plano, mas milhares de peças de artilharia simples mas muito efetivas, distribuídas por todo o "terreno misto" coberto de milhões de soldados armados, inclusive 200 mil forças especiais. E grande parte daquela artilharia pode alcançar Seul, o suficiente para criar pânico massivo e êxodo.
Pense no mais abjeto sangrento caos total
Implica que quando se pensa em guerra contra a Coreia do Norte, ninguém pense em "Caçada ao Outubro Vermelho" ou "Ases Indomáveis". Pense no mais abjeto sangrento caos total, caos superior à possibilidade de qualquer reparo, e instantâneo. E isso só nos primeiros um, dois dias. Depois as coisas pioram muito, muito mesmo. Por quê?
Porque então estimo que a Marinha e a Força Aérea da Coreia do Norte já terão sido completamente destruídas, ondas após ondas de mísseis cruzadores já terão atingido número X de instalações (e não há meio que permita avaliar o impacto desses ataques, mas não muda nada) e os comandantes dos EUA estarão olhando para o presidente sem nenhum plano a oferecer para os passos seguintes. Porque os norte-coreanos, a essa altura, já estarão em preparativos para guerra a sério, estilo infantaria.
Há chance superior à média de que boa parte das elites da RPDC já estejam mortas. Certo, acima de qualquer dúvida, é que o comando e o controle do Departamento de Guerra sobre muitas das próprias forças já estarão ou reduzidos a zero ou gravemente comprometidos. Mas todos saberão que o país foi atacado e quem o atacou.
Ninguém precisa de muito comando e controle, quando se está em postura defensiva no tipo de terreno onde, para começar, qualquer movimento é dificílimo.
De fato, é o tipo de guerra no qual "alto comando" significa quase sempre um capitão ou um major, não algum general distante e invisível.
Alguém pensou em logística? Mas, pergunto eu, que logística? A munição está armazenada em buracos próximos; comida, sempre se arranja alguma coisa e, se você está em terreno onde nasceu, os civis ajudarão.
Repito: nada de guerra de manobras, nada de comunicações avançadas, nada de estrutura logística pesada – estamos falando de um tipo de guerra muito mais parecida com a 2ª Guerra Mundial, até mesmo com a 1ª, ou mesmo com a "Tempestade no Deserto".
[Como alguém que já fez coisas bem interessantes com os militares suíços, permitam-me acrescentar o seguinte: é tipo de terreno e campo de combate no qual uma simples companhia pode impedir o avanço de um regimento inteiro; onde é extremamente difícil obter por triangulação a posição de um rádio inimigo; tipo de terreno onde cavalos e mulas podem carregar armas pesadas por caminhos estreitos e íngremes, em ziguezague; onde hospitais completos podem ser escondidos em subterrâneos, com a entrada disfarçada como estábulo; a artilharia opera enterrada, atira quando um mastro de concreto é movido, e volta a desaparecer; o radar antibaterias é praticamente inútil, porque os sinais oscilam muito; os sinais de rádio têm curto alcance, por causa da vegetação e do terreno; depósitos de armas e mesmo forças em campo com dimensões de companhia só podem ser vistos quando, literalmente, se tropeça neles; bunkers subterrâneos têm várias saídas; operações de ataque aéreo são dificultadas pela alta probabilidade de fogo antiaéreo e disparadores portáteis de mísseis, que podem ser escondidos e aparecer de qualquer direção.
Poderia continuar essa enumeração, mas só acrescentarei o seguinte. Se você quer derrotar seu adversário num terreno desses, só há uma técnica que funciona: você faz o que os russos fizeram nas montanhas no sul da Chechênia durante a segunda guerra chechena – você manda suas forças especiais, pequenas unidades a pé; e você combate o inimigo no terreno dele. É tipo de guerra extremamente brutal, perigosa e difícil, que não acho que os EUA saibam fazer. Os sul-coreanos, sim, talvez façam. Mas é aí que o jogo dos números também pesa: na Chechênia, os Spetsnaz (forças especiais da antiga União Soviética e atual Federação Russa) operaram em zona de combate relativamente pequena e tinham os números a favor deles. Mas examine um mapa da Coreia do Norte e o número de forças especiais da Coreia do Norte e digam-me: os sul-coreanos têm força humana para esse tipo de operações ofensivas?
Mais uma coisa: a reação típica dos EUA a esses argumentos seria "e daí? Podemos explodi-los com a bomba atômica!" Errado. Explodi-los com a bomba atômica você até pode, mas a bomba A não é muito efetiva nesse tipo de terreno, até encontrar o alvo é difícil, as forças inimigas estarão escondidas em subterrâneos e, sinceramente: você usará bomba A para acabar com unidades de dimensões de batalhão?! Não funciona.]
Se você achou que estou tentando meter-lhe medo, acertou completamente. É isso mesmo. É bom, sim, que você esteja com medo. E observe que sequer falei de se usarem bombas atômicas. Não, nada de ogivas nucleares em mísseis. Simples armas nucleares básicas, deslocadas de um lado para o outro em caminhões comuns que qualquer exército tem. Levadas para perto da Zona Desmilitarizada (ZDM) em tempo de paz, em caminhões misturados a milhares de outros caminhões do exército e enterradas por lá mesmo, prontas para serem detonados na hora certa. Podem imaginar o efeito de um ataque atômico "sem aviso", tipo "de onde veio isso?!", contra as forças de EUA ou Coreia do Sul que estivessem avançando? Podem imaginar a urgência que ganhará a pergunta "há mais dessas por aí"?! E, mais uma vez: para tudo isso, a Coreia do Norte sequer precisa de arma nuclear de verdade. Qualquer objeto nuclear primitivo dá e sobra.
Posso até ouvir o pessoal do "ha, ha, ha, nós somos o n.1!!", rápidos para desmentir tudo e 'lembrar' que "haaaaa, e vocês pensam que a CIA não sabe disso tudo?". Talvez saiba, talvez não saiba. Mas o problema é que a CIA e o restante da comunidade de inteligência dos EUA estão tão inapelavelmente partidarizadas, que nada conseguem fazer contra o que lhes seja imposto como imperativos políticos. E, francamente: quando vejo que os EUA tentam assustar os norte-coreanos com B-1B e F-22s, tudo me preocupa muito. Parece que já ninguém no Pentágono ou em Langely conserva qualquer vínculo com a realidade em campo. Além do mais, há inteligência e há inteligência mobilizável. E, nesse caso, saber o que os coreanos podem fazer absolutamente não significa que se saiba o que fazer para neutralizá-los.
Por falar de caos – vocês sabem o que disseram os chineses especificamente sobre caos?
Adivinhem.
Disseram que "não permitirão que se instalem caos e guerra na península."
Entram em cena os chineses
Falemos agora, então, sobre os chineses, que cuidaram de expor muito claramente a posição deles: "Se a Coreia do Norte lançar ataque que ameace os EUA, nesse caso a China se manterá neutra; mas se os EUA atacarem primeiro e tentarem depor o governo norte-coreano, nesse caso o governo da China os impedirá". Dado que absolutamente não há possibilidade de ataque norte-coreano não provocado contra o sul ou contra os EUA, especialmente depois dessa ameaça chinesa de que a China permanecerá neutra, se a RPDC atacar primeiro, consideremos a segunda parte do aviso.
O que os chineses podem fazer, se os EUA decidem atacar a Coreia do Norte? As suas opções básicas dependem da natureza do ataque:
1. Se os EUA limitarem-se a uma combinação de mísseis e ataques aéreos e a RPDC retaliarem (ou não), nesse caso os chineses podem simplesmente prover ajuda técnica, econômica e humanitária à RPDC e denunciar os EUA num nível político.
2. Se os EUA prosseguirem com invasão por terra ou alguma variante desse tipo, ou se a RPDC decidir retaliar de modo que possa forçar force os EUA a algum tipo de invasão por terra, nesse caso os chineses podem não apenas oferecer ajuda militar direta, incluindo soldados, como também podem esperar que o caos seja total na Coreia, antes de abrir uma segunda frente contra as forças dos EUA (incluindo possivelmente Taiwan).
Esse segundo cenário criaria uma situação perigosa para a China, é claro, mas sempre seria muito mais perigosa para as forças dos EUA na Ásia, que se veriam numa área muito grande sem qualquer meio para forçar qualquer adversário a render-se ou parar. Por fim, assim como a China não pode deixar que os EUA esmaguem a Coreia do Norte, a Rússia não pode deixar que os EUA esmaguem a China. Será que já conhecemos essa dinâmica, de outro lugar? Sem dúvida, sim. É semelhante ao que temos observado no Oriente Médio recentemente:
1. Rússia - Irã - Hezbollah - Síria
2. Rússia - China - RPDC
É postura de força muito flexível e efetiva, na qual o menor elemento está na linha de frente; e o mais poderoso, mais distante e atrás. Isso força o outro lado a concentrar o primeiro foco naquele adversário de frente, mais frágil, o que maximiza os riscos sobre qualquer sucesso, porque qualquer sucesso leva na direção de adversário maior e mais forte.
Conclusão: preparar para genocídio
Os EUA tem chances exatamente iguais a zero de desarmar ou, e muito menos, promover 'mudança de regime' na RPDC só com mísseis e ataques aéreos. Para tomar seriamente e significativamente a RPDC "em suas mãos", os líderes norte-americanos terão de aprovar uma invasão com coturnos no solo. Mas, mesmo que isso não esteja nos planos, se a RPDC decidir usar seu potencial de fogo imenso, embora relativamente antiquado, para atacar Seul, os EUA não terão escolha que não seja enfiar tropas de infantaria na Zona Desmilitarizada. Se isso acontecer, cerca de 500 mil soldados da Coreia do Sul, apoiados por 30 mil militares dos EUA, enfrentarão 1 milhão de soldados da Coreia no Norte apoiados por 5 milhões de paramilitares e 200 mil especialistas das forças especiais, num terreno misto, que requererá operações militares de infantaria pesada quase equivalentes às que se viram na 2ª Guerra Mundial. Por definição, se os EUA atacam a RPDC para tentar destruir seu programa nuclear, o ataque nesse caso começará com mísseis e ataques aéreos contra instalações da RPDC, o que implica que os EUA atacarão imediatamente os alvos mais valiosos (do ponto de vista dos norte-coreanos, é claro).
Significa que depois desse tipo de ataque, os EUA terão poucas capacidades para dissuasão, ou nenhuma; e isso significa que depois daquele tipo de ataque já não restará à RPDC qualquer motivação para mostrar qualquer tipo de ponderação ou de controle. Muito diferente disso, mesmo se a RPDC decide começar com fogo de barragem que cruze a Zona Desmilitarizada, incluindo a área metropolitana de Seul, terão meios para escalar, seja atacando o Japão, seja disparando um dispositivo nuclear. Se isso acontecer, há probabilidade extremamente alta de que os EUA sejam obrigados ou a "declarar vitória" e escafeder-se (veneranda tradição dos militares dos EUA), ou a iniciar vários ataques nucleares táticos. Ataques nucleares táticos, por falar deles, têm efetividade muito limitada contra posição defensiva preparada em terreno misto, especialmente em vales estreitos. Além do mais, não é fácil localizar alvos para esse tipo de ataque. Feitas todas as contas, a última e única opção que resta aos EUA é a mesma à qual sempre acabam por recorrer, quando se engajam diretamente e deliberadamente em assassinato em massa de civis, para "quebrar no adversário o desejo de combater" e destruir a "infraestrutura de apoio do regime" às forças inimigas (outra das venerandas macabras tradições militares dos EUA que chegam até às Guerras contra Povos Nativos [orig. Indian wars] e que EUA usaram também na Guerra da Coreia e, mais recentemente, também na Iugoslávia). Aqui, quero citar um artigo de Darien Cavanaugh em War is Boring:
"Na relação per-capita, a Guerra da Coreia é uma das mais mortíferas da história moderna, especialmente contra a população civil da Coreia do Norte. A escala da devastação chocou e escandalizou os militares norte-americanos que lá esteve, incluindo alguns dos que combateram nas batalhas mais horrendas da 2ª Guerra Mundial (…). São números assustadores, e a taxa de mortes durante a Guerra da Coreia é comparável à que se viu nos países mais duramente atingidos da 2ª Guerra Mundial. (…) De fato, ao final da guerra, os EUA e aliados haviam despejado mais bombas sobre a Península Coreana, impressionante maioria das quais sobre a Coreia do Norte, do que o total de bombas lançadas em todo o teatro do Pacífico na 2ª Guerra Mundial.
A destruição física e a perda de vidas dos dois lados foi quase inacreditável, mas o maior dano aconteceu no norte, por causa dos bombardeios de saturação e a política de terra arrasada aplicada pelas forças da ONU em retirada" – escreveu o historiador Charles K. Armstrong em ensaio para o Asia-Pacific Journal. "A Força Aérea dos EUA estimou que a destruição da Coreia do Norte foi proporcionalmente maior que a do Japão na 2ª Guerra Mundial, onde os norte-americanos converteram em ruínas 64 das maiores cidades do país e usaram bombas atômicas para destruir mais duas.
Aviões dos EUA despejaram 635 mil toneladas de bombas sobre a Coreia – essencialmente sobre a Coreia do Norte –, incluindo 32.557 toneladas de napalm, comparadas às 503 mil toneladas de bombas lançadas em todo o teatro do Pacífico na 2ª Guerra Mundial." Como Armstrong explica, o resultado foi devastação sem paralelo. "O número de coreanos mortos, feridos ou desaparecidos ao final da guerra beirava os 3 milhões, 10% de toda a população do país. A maior parte dos mortos estavam no norte, cuja população equivalia à metade da população do sul; embora a RPDC não tenha números oficiais, é provável que 12-15% da população tenha sido morta na guerra, o que se aproxima e talvez ultrapasse a proporção de cidadãos soviéticos mortos na 2ª Guerra Mundial."
12-15% da população da Coreia foi morta por forças dos EUA na última guerra (comparem-se esses números e o chamado 'genocídio' de Srebrenica!). Agora, Nikki Haley e os demais psicopatas em Washington DC ameaçam realmente fazer, quando falam de tomar a situação nas "próprias mãos" ou, melhor ainda, quando Trump ameaça "destruir totalmente" a Coreia do Norte. O que Trump e seus generais esquecem é que não estamos nos anos 1950s, mas em 2017; e que, enquanto a Guerra da Coreia tem impacto econômico desprezível no resto do planeta, uma guerra no Extremo Oriente da Ásia, hoje, teria consequências econômicas gigantes. Além do mais, nos anos 1950s, o controle total pelos EUA sobre os veículos da mídia de massas, pelo menos com certeza no mundo então dito "livre", tornou relativamente fácil esconder as dimensões do assassinato em massa, por forças comandadas pelos EUA. A realidade hoje é que, independente do resultado militar em campo, qualquer ataque que os EUA executem contra a RPDC resultaria em tal desmoralização que, provavelmente, marcaria o fim da presença dos EUA na Ásia choque financeiro internacional massivo que, muito possivelmente levaria a um crash toda a economia dos EUA, atualmente já muito fragilizada. E a China sairia desse cataclismo como superpotência asiática indiscutível.
As ameaças que se ouvem, vindas de autoridades norte-americanas, não passam, elas todas, de delírio e fantasia.
Os EUA não vencem guerra importante, uma, que fosse, desde a guerra no Pacífico, e o exército dos EUA vai-se aos poucos enchendo de semianalfabetos, ou de soldados em busca de reconhecimento 'de gênero', ou que usam o alistamento para tentar escapar do desemprego ou da cadeia. Exército desses não tem qualquer mínima condição de ameaçar um país que controla a gama de opções de retaliação com que a Coreia do Norte conta. A tempestade de ameaças que se ouvem hoje vindas dos EUA, os quais parecem ansiosos para se engajar logo em mais uma guerra genocidária, são ilegais, nos termos da lei internacional; e politicamente contraproducentes.
Fato é que os EUA muito dificilmente conseguiriam sobreviver a uma guerra contra a RPDC, e que os EUA hoje absolutamente não têm qualquer opção que não seja sentar e negociar seriamente com os norte-coreanos, ou aceitar que a RPDC já é, realmente, hoje, potência nuclear oficial.
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