John Wight: O Papel do Neoliberalismo na crise Espanhola
11/10/2017, John Wight, SputnikNews
Com o presidente da Catalunha Carles Puigdemont recuando, em meio a crescente tensão na Espanha em torno da ambição de independência da região – o presidente catalão assinou a declaração de independência, mas imediatamente suspendeu a aplicação da nova lei –, milhões hão de ter respirado aliviados, dada a possibilidade de Madrid responder com violência.
Embora as tensões talvez tenham regredido – pelo menos por enquanto, – a questão subterrânea que alimenta essa crise, bem como várias outras crises que se desdobraram ainda por todo o mundo, não foi de modo algum resolvida. Essa questão atende pelo nome de "neoliberalismo".
Quando Karl Marx escreveu em seu Manifesto Comunista que a sociedade burguesa moderna das "relações burguesas de produção e de intercâmbio, das relações de propriedade burguesas (...) desencadeou meios tão poderosos de produção e de intercâmbio, que se assemelha ao feiticeiro que já não consegue dominar as forças subterrâneas que invocou", bem poderia estar descrevendo a crise pela qual passa hoje a sociedade do neoliberalismo – e crise que não dá sinais de estar arrefecendo.
De fato, longe de estar perdendo força, a crise tem sido cada vez mais intensificada pelas ações das elites econômicas e de vários governos que governam em nome daquelas elites por todo o Ocidente e em todos os pontos nos quais as ideias liberais democráticas predominam. A crise em curso – e em escalada – que envolve a Espanha, desencadeada pela independência catalã, – é uma dessas crises exemplares do neoliberalismo.
Estive presente à marcha da oposição à independência da Catalunha dia 1º de outubro em Barcelona, chamou-me a atenção o fato de que, não fosse pela crise abrangente do neoliberalismo – imposição de 'austeridade' [é ARROCHO] draconiana pelo governo espanhol em Madrid ao longo dos últimos anos –, provavelmente não teriam acontecido a eclosão de movimentos separatistas e o crescimento do nacionalismo e da xenofobia, já convertidos hoje em novo normal na política mainstream.
O fato de esses eventos estarem em curso é como a sentença condenatória contra aquelas elites econômicas e seus vassalos lambe-botas. Como a prova de que não aprenderam as lições dessa monstruosidade hoje apresentada como se fosse sistema econômico – que se impõe como tirano sobre a vida da vasta maioria dos seres humanos por ela subjugados, em vez de atender às necessidades dos eleitores. Mais que isso, a crise na qual o mundo se debate hoje se impõe como única resposta à recessão econômica global que irrompeu em 2008 – gerada pelas contradições e pela irracionalidade que há dentro do modelo, que levou governos e sistemas a impor mais neoliberalismo sob a forma de programas de austeridade [é ARROCHO] draconianos. Tudo isso só levou ao aprofundamento da crise, a mesma crise que se supunha que a 'austeridade' [é ARROCHO] ajudaria a superar.
No caso do separatismo catalão, não é coincidência que a crise tenha surgido na sequência de cortes violentíssimos no gasto público que Madrid introduziu em 2010 e que puniram duramente milhões de pessoas, lançadas no desemprego e na pobreza em todo o país, também na Catalunha. Acrescente os ingredientes do nacionalismo cultural, da identidade nacional e questões jamais superadas da guerra civil e da ditadura de Franco, e têm-se todos os ingredientes de uma tempestade perfeita.
A situação é semelhante, se se analisa a emergência do movimento pela independência da Escócia, contra o Reino Unido, em anos recentes. E há também o Brexit, o crescimento e a disseminação do apoio a partidos nacionalistas e anti-União Europeia na Europa, a eleição de Trump nos EUA, e, se se anda um pouco mais para trás, também a chamada 'primavera árabe' em 2011, antes de se metamorfosear em inverno árabe de jihadismo salafista. Todos esses são sintomas da mesma crise planetária do neoliberalismo.
Fundamentalmente, o neoliberalismo é um sistema econômico e uma doutrina econômica que só pode sobreviver em estado de perene conflito contra a soberania nacional, as identidade nacionais e contra o pluralismo cultural. É uma espécie de sistema econômico 'tamanho único', que leva com ele um conjunto específico de valores liberais que não respeitam fronteiras, culturas ou identidades nacionais. Assim sendo, o neoliberalismo reduz a capacidade dos estados para tomar medidas que interessem mais ao próprio povo, que aos bancos e empresas multinacionais que, na verdade, são quem governa.
A instabilidade e os mecanismos para forjar crises e destroços em nome desse sistema econômico, e os valores liberais que acompanham esses 'destinos' criados pelo neoliberalismo, não alimentaram só os movimentos separatistas e nacionalistas no Ocidente. Tudo isso também foi fator importante que determinou o assalto neoimperialista liderado por Washington e aliados, desde a dissolução da União Soviética no início dos anos 1990s.
Como escreve Perry Anderson, sobre esse evento histórico mundial e suas implicações:
"O comunismo estava morto, mas o capitalismo ainda não encontrara sua forma acabada, como um universal planetário sob um hegemon singular. O livre mercado ainda não era universal (...) Na hierarquia dos estados, as nações nem sempre conhecem seu lugar."
O povo russo sentiu nas costas o chicote da economia neoliberal durante os anos 1990s, a mesma década que viu a Iugoslávia ser destruída, seguida pela década da destruição do Iraque, quando Washington ia conseguindo afirmar o espectro de plena dominação servindo-se da atrocidade do 11/9 como pretexto. Afeganistão, Líbia, conflito na Síria, sanções contra Cuba, Coreia do Norte [em 2016, também o Brasil dos governos Lula-Dilma (NTs)] – o que todos esses países tinham ou têm em comum, independente das respectivas características específicas, é que todos se recusaram a se deixar dominar pelo consenso neoliberal de Washington.
Compreender a natureza desse monstro exige que se resista contra a opção fácil de tratar isoladamente cada um dos vários conflitos e crises que devastam o mundo hoje. Não são conflitos e crises isolados, mas inextrincavelmente ligados – a um mesmo sistema econômico o qual, sem nem sombra de dúvida, é o inimigo comum de toda a humanidade no nosso tempo.
Aconteça o que acontecer na Catalunha, nenhum desejo ou necessidade do povo daquela região será jamais atendido com, simplesmente, trocarem-se as bandeiras nos mastros dos prédios públicos. Ninguém come bandeiras – bandeiras não põem comida na mesa, não aquecem as casas no inverno, não garantem educação às crianças. Para que haja tudo isso tem de haver além de soberania política, também soberania econômica.
O líder rebelde irlandês James Connolly, executado pelos britânicos por sua ação no Levante da Páscoa em Dublin de 1916, já não tinha dúvidas, mesmo antes de lutar e morrer pela libertação nacional da Irlanda, de que era loucura crer que só a independência, ela mesma, bastaria:
"Se amanhã você remover o exército britânico e hastear a bandeira verde no topo do Castelo Dublin, todos os seus esforços darão em nada, se você não organizar a República Socialista. Sem isso, a Inglaterra continuará a mandar em vocês. Ela governará vocês com os capitalistas dela, com seus latifundiários, com seus financistas, com toda a coorte de instituições comerciais e individualistas que a Inglaterra já plantou no nosso país e já cuidou de regar com as lágrimas das nossas mães e o sangue de nossos mártires."
Que o povo da Catalunha tenha em mente essa lição.*****
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