De ditabranda em ditabranda, a Folha em sua ciranda
Sergio Saraiva - outubro 12, 2017 - Mídia
De Caracas à Barcelona, passando por Brasília, os fantasmas e a incoerência da Folha de São Paulo.
A partir de agosto de 2017, o jornal a Folha de São Paulo tomou uma decisão que tem o poder de mudar os rumos, se não da América Latina, pelo menos, da política externa brasileira. Em relação à Venezuela, passou a chamar de ditador a Nicolás Maduro – o presidente eleito do país vizinho e, por via de consequência, de ditadura o seu governo.
Que não existam dúvida, isso é determinação do dono do jornal, que já chamava Hugo Chaves – o presidente antecessor de Maduro – de caudilho.
Brasil, capital Caracas
Não imagino que uma única folha seca tenha caído de alguma árvore em Caracas impulsionada por algum vento vindo do bairro paulistano de Santa Cecília. Ainda assim – ditador – é, no mínimo, uma impropriedade para com quem como Maduro foi eleito democraticamente em 2013.
Que Henrique Capriles, o adversário de derrotado por Maduro, não tenha aceitado o resultado das urnas, mesmo após contagem e recontagem dos votos, só mostra que o mal de Aécio não é apenas brasileiro.
Todas as ações de Maduro contestadas pela oposição, até agora, foram submetidas à apreciação da Suprema Corte do país. E foram consideradas constitucionais.
Isso pode não bastar para a Folha, mas não, a Venezuela não é uma ditadura.
A bem da verdade, de antidemocrática pode ser chamada a oposição, que boicotasistematicamente as eleições convocadas por Maduro e com ações violentas, barricadas nas ruas e atentados tenta intimidar os que delas desejam participar.
Talvez a Venezuela seja mais parecida com o que seria o Brasil se Lula fosse Hugo Chaves e Dilma fosse Maduro. Um país conflagrado, divido entre os que sempre tiveram e os que passaram a ter. Mas, para o bem e para o mal, não são. Lula e Dilma cultuam um “republicanismo ingênuo” que fez com que perdessem o poder e fossem chamados de ladrões. Lula arrisca-se inclusive a acabar preso.
Temer, sobre quem pesa acusação da Procuradoria Geral da República de ser corrupto, acusação lastreada em fitas de áudio e vídeo gravadas, é chamado pela Folha de presidente. Que, tampouco, chama de golpe o golpe que o levou ao poder.
Venezuela, capital Barcelona
E, de repente, como em um livro da Garcia Marques, eis que o realismo fantástico transmuda a Venezuela para a Espanha. E, na Catalunha, o povo pede um plebiscito autonomista. Deseja através de uma eleição declarar sua independência.
Caso complicado. Pode a democracia ser invocada em nome do separatismo?
O governo de Madri e o Tribunal Constitucional espanhol proibiram a votação. Alegavam que dispositivo da constituição vetava esse pleito. Diante da desobediência de Barcelona, reprimiu-se violentamente aos que se atreveram a participar da consulta popular.
Urnas sequestradas. Pessoas feridas. Uma eleição proibida. Uma ferida aberta e ainda não remediada nos direitos civis catalães.
Mas, então, a Folha se posiciona ao contrário. Em apoio a Madri, passa a chamar os catalães que buscavam a independência de aventureiros e temerários. E a exigir estrito respeito às decisões das cortes constitucionais.
Logo, segundo a Folha, quando Caracas pede respeito às decisões da Corte Constitucional e convoca eleições, trata-se de uma ditadura. Quando Madri pede respeito às decisões da Corte Constitucional e proíbe eleições, trata-se de um governo democrático fazendo valer a lei maior do país.
Não é nem o caso de se perguntar se a Folha é isenta, mas sim se é coerente.
A falácia como argumento.
Tudo pode piorar.
Agora, na Venezuela, são anunciadas, para 15 de outubro de 2017, eleições para governadores.
Uma ditadura que convoca eleições regulares. Uma jabuticaba que só pode ocorrer nas folhas da Folha. Como se sair desta? É necessário salvar a lógica do patrão.
Convoca-se uma grife da casa – Clovis Rossi – para provar o avesso do avesso.
E como ele se sai na coluna de 12 de outubro de 2017?
“A economia da Venezuela teve uma contração de 16,5% no ano passado. Neste ano, nova queda… Com esses números, não há a menor chance de que… qualquer governo, em qualquer país, ganhe uma eleição. Na Venezuela, não poderia ser diferente. Tudo somado, fica difícil entender como o governo —ainda mais sendo uma ditadura— decidiu convocar uma eleição”.
A Venezuela é uma ditadura. Rossi reafirma o que o patrão quer ouvir. Mas convocou eleições. E agora, Rossi, demonstra toda a sua graça e leveza em dar piruetas lógicas:
“Como a mais elementar lógica indica que perderá, fica a pergunta: por que convocá-la? A resposta mais automática e óbvia é simples: haverá fraude e, portanto, não há risco de uma derrota, pelo menos não de uma derrota contundente”.
Simples assim. As eleições ainda não ocorreram. Mas, se foram convocadas por um ditador – e Maduro é um ditador decretado pelo dono da Folha – então, serão fraudadas.
Tal argumento é uma falácia óbvia – a falácia do espantalho, mas foi o que restou à Folha.
De ditabranda em ditabranda
Rossi poderia parar por aí. Rossi deveria ter parado por aí.
Mas não, Rossi não iria deixar passar a oportunidade de dar uma no cravo e outra no saco do patrão. E aqui não estamos falando de metalurgia, mas sim de flores e carícias.
Clovis Rossi sabe que o dono da Folha tem uma conta a acertar com uma tal de ”ditabranda”.
Assim, para não perder viagem, emenda:
“Mas talvez haja uma explicação algo mais sofisticada… Nicolás Maduro e sua turma estariam [ao convocar eleições] tentando polir o rótulo de ditadura para transformá-lo em algo como “ditabranda””.
“Ditabranda” – o termo que Rossi quer colar em Maduro, é uma criação de 2009 de seu patrão para se referir a uma ditadura real, aqui no Brasil, que torturava de deputados da oposição a mulheres grávidas. Assassinava de estudantes nas matas a operários nas fábricas. Foi a que apresentou o cadáver do jornalista Wladimir Herzog como o de um suicida – caso único em toda a história da humanidade de alguém que se enforcou tendo os pés no chão.
A “ditabranda” não era apenas cruel, era cínica.
Hoje, na defesa de outro golpe, a Folha noticia um suicida como sendo alguém encontrado morto, para não ter que discutir novamente o uso da humilhação e da tortura como política de Estado.
A Venezuela não é aqui.
A Venezuela está muito longe de uma “ditabranda”.
Porém, que Rossi use o termo, só mostra o quanto os fantasmas da “ditabranda” ainda rondam a Folha em sua ciranda.
PS: quem nasce Clovis Rossi não morre Ricardo Kotscho. E aqui não se fala de caráter ou competência jornalística, mas de relações trabalhistas.
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