Macron já enfrenta as consequências de seus atos... Por Jacques Sapir
3/8/2017, Jacques Sapir, Russeurope-Hypotheses
Postado por Dario Alok
Postado por Dario Alok
Emmanuel Macron comeu seu bom pirão primeiro. Comeu rápido, como jovem que tem pressa. Hoje, já está diante das consequências daquelas decisões e daquelas ações. A deliquescência do grupo parlamentar de La République en Marche [A República em Marcha], seu próprio partido, já é visível para todos.
As 'dissonâncias' parlamentares multiplicam-se. Os disfuncionamentos repetidos que afetam o próprio governo de Macron começam a aparecer na praça pública. O presidente já perdeu o capital de confiança com que podia contar nos grandes corpos do governo, especialmente nos que representam a força do Estado – a polícia e o exército. Não se debruçou, nem por atos nem por palavras, sobre nenhum dos grandes problemas que hoje atormentam a França, e mesmo assim – ou talvez por isso mesmo – vê a sua popularidade derreter no meio da rua.
Também alijou grande número dos seus antigos apoiadores, fossem apoios no quadro nacional ou no quadro internacional. Atirou-se a uma demagogia antiparlamentarista rampante, como essa sua lei de "moralização" da vida pública que é simultaneamente ineficaz e injusta, além de não tratar de nenhum dos problemas que foi concebida para tratar. Macron que se prepare para uma crise social, cujas dimensões ou duração são ainda imprevisíveis, a partir do outono; e numa situação tal que até a legitimidade de seu poder será posta em questão.
Erro de comunicação ou hipóteses temerárias?
Pode-se analisar superficialmente essa situação como resultado de Macron ter reduzido a política à 'comunicação'. É simplificar, mas, como toda simplificação, essa também tem sua verdade. A comunicação com frequência, e com excessiva frequência, ganhou mais destaque que o comunicado. Viu-se isso na contradição entre o projeto de Macron, liberal, e a nacionalização dos estaleiros STX. Viu-se o mesmo também precisamente nos disse-que-não-disse/não-disse- que-disse que se ouviram na votação da lei de "moralização" da vida política.
Mas não passa de simplificação. Emmanuel Macron está, na realidade, escorregando nas hipóteses de seu próprio projeto político. Uma dessas hipóteses é que se poderia dirigir um país, como se dirige uma empresa. Outra hipótese é que bastaria um chefe inteligente ("eu mesmo", como Macron pensou, muito provavelmente) e mídia complacente, porque, quanto ao resto, pode-se escavar a "sociedade civil" e logo arranjar deputados e um partido político. Em resumo, pode-se dizer que num certo sentido, Lênin, sim, ele, aquele perigoso revolucionário que escreveu em 1917 L’Etat et la Révolution [port. O Estado e a Revolução], não errou. Porque até uma cozinheira pode ocupar-se do Estado, desde que – afinal, ninguém precisa exagerar – mantenha linha justa e esteja bem enquadrada. O problema é que todas essas hipóteses do projeto político de Macron revelaram-se falsas.
Há ainda outras, mas são hipóteses menos importantes no caos atual, como a de uma união necessária com a Alemanha; ou a que postula o primado absoluto das instituições europeias. São hipóteses que têm consequências importantes sobre a política. Mas não têm função motriz no atual completo fracasso do novo governo francês.
A política e o fantasma da democracia direta
Comecemos pela primeira. Todos sabem, o fantasma da democracia direta ainda é muito forte. Ele se apoia, e não sem algumas boas razões, na decomposição de uma elite política que se conhece já há quase vinte anos. Mas não é – infelizmente – porque uma elite fracassou, que se a poderia substituir por gente sem nenhuma experiência política e por princípios e manuais de organizações empresariais.
Política, no nível de um deputado ou de um prefeito, não é simplesmente tomar decisões. É também saber navegar na complexidade de todos os tipos de regras. É também aferir, sabendo que não se pode ter tudo instantaneamente, que é preciso determinar prioridades, que é preciso tornar essas prioridades palatáveis para os outros. Em resumo, que a política é também a arte da concessão. O problema é que, muito frequentemente, a linha que separa concessão e comprometimento só se torna visível quando já se está diante das consequências das ações.
Para usar linguagem mais batida, a política hoje já nada tem a ver com a que se fazia na ágora de Atenas ou no Fórum de Roma já lá vão mais de 20 séculos. Além do mais, depois que se tornou Império, Roma adotou gabinetes e funcionários com tantas atribuições, que só raramente o poder do Imperador era poder de um único homem. A sociedade tornou-se imensamente complexa; os Estados também se tornaram complexos e se autodotaram, pouco a pouco, de administrações amplas e ramificadas. A política consiste também em saber usar esses corpos administrativos sem ficar refém deles. E por isso a política profissionalizou-se. Claro que não é saudável que só se faça política, única coisa, a vida inteira. Pode-se até dizer que é absolutamente péssimo para a saúde viver exclusivamente de política, porque, se assim acontece, a necessidade de continuar a usar os meios da política para manter o próprio poder devorará todas as convicções.
Mas a profissionalização da vida política é evidente; implica um período de formação e sobretudo o equivalente do cursus honorum da Roma republicana. O fato precisamente de fazer o primeiro serviço militar no nível municipal antes de ascender à deputança e dali para cima. Também, querer limitar o número de mandatos sucessivos que alguém pode ter não é necessariamente boa ideia. E aí se revela o erro da famosa lei dita "de moralização da vida política", que não moraliza coisa alguma e que, bem ao contrário, estabelece novas regras em matéria de hipocrisia; proíbem-se cônjuges e filhos de deputados de trabalharem para os respectivos cônjuges e pais e mães, mas o caminho fica aberto para que todos empreguem amantes homens e mulheres, filhas e filhas de aliados ou de subalternos.
Estado não é empresa
O que nos leva ao outro erro fundamental que Macron comete: pensar que se poderia dirigir um país como se dirige uma empresa. E esse erro é muito agravado porque o termo "empresa" permanece absolutamente indefinido. De que empresa se fala? Será a pequena empresa individual, da empresa start-up que induz tantos ao delírio, mas cujas altíssima taxas de mortalidade todos esquecem tão rapidamente? Ou se trata da grande empresa transnacional?
Além disso, quando se fala de "empresa" é preciso começar por definir o setor de atividade. Não se administra um banco – que é empresa – como se administra uma empresa industrial, a qual por sua vez não é regida pelas mesmas regras de uma empresa de comércio. Exemplos são muitos.
E sem falar da estranha constatação de que os que mais dizem que um país pode ser gerido como uma empresa são os que menos conseguem oferecer definição precisa de "empresa". Do que seja "espírito empreendedor", talvez. Mas a diversidade dos tipos de empresa derruba qualquer esforço de definição.
Ora, dirão vocês, sempre se pode definir uma empresa pela regra da absoluta subordinação (sim, empresa não é lugar de democracia) e pela regra da concorrência. Mas será esquecer que a cooperação também tem papel importante no bom funcionamento das empresas, seja cooperação no chão da fábrica seja nos gabinetes superiores da administração, seja implícita ou explicitada, que segue as trilhas dos acordos e das concessões. Será esquecer principalmente que, para que a empresa funcione, ela tem necessariamente de resolver um problema de legitimidade, seja internamente seja externamente, e esse problema de legitimidade só pode ser resolvido porque há regras impostas às empresas – regras impostas pelo Estado. E essa é uma das razões mais fundamentais pelas quais não se pode – nem se deve – confundir empresa e Estado, mesmo que empresas gigantescas sejam hoje capazes de roubar setores inteiros de suas funções. Essa usurpação não é nunca perfeitamente funcional.
As regras do poder
Querer pois dirigir um Estado é, para começar e sobretudo, compreender que se está diante de uma forma de organização que é qualitativamente diferente da forma de organização empresarial, e que essa forma qualitativamente divergente implica competências que não se adquirem em semanas, nem nuns poucos meses.
Emmanuel Macron construiu seu projeto sobre duas hipóteses que se provaram erradas. Hoje, paga o preço. A única chance que lhe resta, de se livrar da espiral de destruição na qual se deixou prender seria reconhecer os próprios erros. Mas, supondo que tivesse coragem para tanto – porque se exige coragem para reconhecer que nos metemos na trilha errada, e não ver coisa alguma é sempre a via mais fácil –, o próprio Macron estaria destruindo as bases de sua construção política, que depende existencialmente daqueles erros. Ninguém jamais construirá projeto político sobre um sonho tolo que não leva a lugar algum.
Por tudo isso, é bem mais provável que Macron escolha não ver coisa alguma e manter-se obcecado, cada vez mais duramente autoritário. Entre outono e inverno, nos próximos meses, provavelmente já estará às voltas com agitações e conflitos sociais. Mas essas agitações e confrontos infalivelmente – num ou noutro momento – porão Macron diante de sua baixa legitimidade e credibilidade praticamente nenhuma, dificuldades que ele já enfrenta precisamente nas duas forças das quais mais terá necessidade: a polícia e o exército. Nesse momento, Macron, monarca republicano, estará nu.*****
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