Senado dos EUA contra a desigualdade na sociedade russa? Oligarcas são alvo de nova lei de sanções*
3/7/2017, John Helmer, Dances with Bears
Nunca, desde que o governo alemão deu jeito para que Vladimir Lenin voltasse à Rússia cruzando território alemão num trem blindado dia 16/4/1917, nenhum estado estrangeiro em guerra contra a Rússia tomou medida tão revolucionária quanto o Senado dos EUA, dia 15/6/2017. Nessa data, em votação que resultou em 98 votos a favor e dois contra, os senadores norte-americanos começaram a ação de atacar os oligarcas russos. Oligarcas russos são os homens que dominaram a economia russa por mais de 20 anos, concentrando mais riqueza nacional em suas pessoais mãos privadas do que jamais se viu antes, em qualquer grande estado do mundo contemporâneo.
Os próprios senadores dos EUA não falaram sobre o tema; a imprensa nos EUA nada noticiou; até na Rússia passou praticamente sem qualquer notícia para o grande público a nova lei a qual – se for adotada por todo o Congresso convertida em lei pelo presidente Donald Trump -- atacará as linhas de crédito dos oligarcas em bancos internacionais; os corretores, os depositários e câmaras de compensação de pagamentos e ações; o comércio deles com EUA e Europa; as empresas que tenham nos EUA, contas bancárias, iates transoceânicos e mansões pelo planeta. Se a mira nos oligarcas vier acompanhada de sanções formais, a lei terá por claro objetivo destruir o poder dos oligarcas dentro da Rússia e em todo o mundo. Nem o Partido Comunista da Federação Russa algum dia sonhou tão alto.
A lei do Senado "S. 722" começou em março e tinha por alvo o Irã. Para simplificar, era chamada de "Lei de 2017 Contra as Atividades de Desestabilização empreendidas pelo Irã de 2017" [ing. ‘‘Countering Iran’s Destabilizing Activities Act of 2017]". O Título I da lei e 29 páginas de determinações só têm a ver com o Irã. Então, se acrescentaram as 94 páginas do Título II: todas essas 94 páginas acrescentadas têm um único alvo: Rússia. O texto integral (ing.) pode ser lido aqui.
A mídia-empresa do business anglo-norte-americano comentou a nova lei como escalada nas sanções econômicas dos EUA contra alvos russos, estendidas para além do setor de petróleo e gás. The Wall Street Journal interpretou a lei como tentativa "do governo Trump para alcançar mais pleno controle sobre a política russa". Para The Financial Times, a nova lei deve "apertar ainda mais as sanções já existentes e ameaça ampliar as restrições, de energia e banking, para minérios, mineração, ferrovias e embarque de mercadorias por mar."
O jornal não leu as letras pequenas e mal percebeu as novidades, exceto uma – a ameaça que a lei faz de atacar empresas europeias envolvidas em construir e operar o novo gasoduto russo para a Alemanha, o Ramo Norte II [ing. Nord Stream II].
Como se lê nas seção 232, os EUA proibirão que qualquer empresa "faça o investimento descrito na subseção (b) ou venda, arrende ou alugue à Federação Russa, para a construção de gasodutos para exportação de energia russa [os itens seguintes:] bens, serviços, tecnologia, informação ou apoio descritos na subseção (c) – (1) que tenham justo valor de mercado de $1 milhão ou mais; ou (2) que, durante período de 12 meses, tenham justo valor agregado de mercado de $5 milhões ou mais."
Na prática, como prossegue o texto da lei, o alvo são todas as exportações russas de energia, incluindo gasodutos submarinos pelo Mar Negro e no Extremo Oriente, embarque de navios tanques, especialmente a empresa de navios tanques para petróleo e gás natural liquefeito, Sovcomflot. A privatização de parte da participação estatal na Sovcomflot, que foi adiada durante anos, foi prometida por funcionários da agência de patrimônio federal para o final do mês de julho corrente.
Mas a lei do Senado dos EUA ameaça sancionar qualquer empresa, dos EUA ou outras, que invistam mais de $10 milhões "se o investimento contribui, direta ou indiretamente para a capacidade da Federação Russa privatizar patrimônio do estado de modo que beneficie injustamente – (1) funcionários do governo da Federação Russa; ou (2) associados próximos ou familiares daqueles funcionários." Esse dispositivo fecha a porta para Gennady Timchenko, principal candidato na venda de ações da Sovcomflot e sogro de Gleb Frank, filho do principal executivo da Sovcomflot, Sergei Frank. (Para detalhes de contexto, leia aqui.)
Mas a lei do Senado vai muito além de atacar investimentos estrangeiros em vendas de ações de empresas estatais russas. Ela ataca os que detêm o controle acionário da propriedade de muitos dos bens e recursos do país – vale dizer: os oligarcas. A Seção 241 da nova lei leva o título de "Report on Oligarchs and Parastatal Entities of the Russian Federation."Leiam com muito cuidado.
"(a) Em geral. – Com prazo inferior a 180 dias a partir da data em que essa lei entrar em vigor, o Secretário do Tesouro, depois de consultar o Diretor da Segurança Nacional e o Secretário de Estado, deve apresentar às comissões apropriadas do Congresso relatório detalhado sobre os seguintes tópicos:
(1) Principais figuras políticas estrangeiras e oligarcas na Federação Russa, incluindo o seguinte:
(A) Identificação das principais figuras políticas estrangeiras e oligarcas na Federação Russa, determinada pela proximidade com o regime russo e respectivos valores líquidos.
(B) Avaliação do relacionamento entre indivíduos identificados pelos critérios do subparágrafo (A) e o presidente Vladimir Putin ou outros membros da elite russa governante.
(C) Identificação de quaisquer indícios de corrupção que envolvam esses indivíduos.
(D) O valor estimado líquido e fontes conhecidas de renda daqueles indivíduos e membros da família (incluindo esposas, filhos, pais e irmãos), incluindo patrimônio, investimento, outros interesses de negócios e informação relevante que beneficie a propriedade.
(E) Identificação de filiações comerciais não russas desses indivíduos.
(2) Entidades russas paraestatais, inclusive com avaliação do que segue:
(A) Emergência de entidades paraestatais russas e papel que tenham na economia da Federação Russa.
(B) Estruturas da liderança e propriedade privilegiada dessas entidades.
(C) O objetivo da filiação de empresas comerciais não russas àquelas entidades."
(3) Exposição de setores econômicos chaves dos EUA a pessoas russas politicamente expostas e a entidades paraestatais, incluindo, pelo menos, os setores de banking, coberturas e seguros e setor de propriedade imobiliária.
(4) Estimativa da probabilidade e natureza de efeitos de se imporem restrições ao endividamento e à participação acionária[1] em entidades paraestatais russas; e antecipar efeitos de pôr entidades paraestatais russas na lista de russos especialmente designados e bloqueados mantida pelo Gabinete de Controle de Patrimônio Estrangeiro do Departamento do Tesouro [orig. Office of Foreign Assets Control of the Department of the Treasury].
(5) Possíveis impactos de se imporem sanções secundárias a oligarcas russos, empresas estatais russas e entidades paraestatais russas, incluindo impactos na economia da Federação Russa e também na economia dos EUA e de países aliados dos EUA."**
Os senadores votaram a favor desse texto, que não inclui qualquer definição para as expressões "oligarca russo", "corrupção", "proximidade do regime", "relacionamento com o presidente Vladimir Putin ou outros membros da elite governante russa", ou para "paraestatal". Mesmo assim, o significado e a intenção são tão claros quanto a bomba de penetração massiva (Massive Ordnance Penetrator, MOP) e arrasa-quarteirão da Força Aérea dos EUA.
O alvo da Seção 241 é, dentre outros, praticamente todas as grandes empresas russas, acionistas majoritários, bancos associados e negócios em outros países/paraísos fiscais. O objetivo aí é nada menos que destruir todos os que são aliados do Kremlin; recrutá-los para a mudança de regime apoiada pelos EUIA; jogar uns contra outros e todos contra o Kremlin.
A destruição seletiva de oligarcas já está em andamento; aqui se pode ler a lista atual. Timchenko vive sob sanção de EUA e União Europeia já desde 2014. Outros oligarcas também proscritos, dentre outros, são Sergei Chemezov, presidente da estatal Russian Technologies (Rostec); Yury Kovalchuk do Banco Rossiya; Boris e Arkady Rotenberg, que controla o Banco SMP além de empresas de oleogasodutos e infraestrutura, e Roman Rotenberg, filho de Boris; Igor Sechin, chefe executivo da Rosneft; Nikolai Shamalov, também do Banco Rossiya e pai de Kirill Shamalov, genro de Putin; e Vladimir Yakunin, ex-presidente da estatal russa de estradas de ferro Russian Railways.
No jantar anual de Natal que Putin oferece todos os anos desde o início da guerra na Ucrânia, pode-se identificar nome a nome quatro dúzias de alvos potenciais da lei inventada nos EUA e mais recente ato de guerra dos EUA contra a Rússia. Basta ler a lista dos convidados de 2014; de 2015; e de 2016.
Ausentes por enquanto das listas oficiais de sanções, mas com considerável patrimônio nos EUA, são Anatoly Chubais, presidente da Rusnano, holding estatal russa de alta tecnologia; Mikhail Abyzov, apoiador financeiro do primeiro-ministro Dmitry Medvedev e ministro do Governo Aberto no Gabinete de Medvedev; e Mikhail Fridman dos grupos Alfa Bank, LetterOne e Vimpelcom. Vimpelcom foi processado por corrupção pelo Departamento de Justiça dos EUA e multado em $397,6 milhões, a nona maior multa desse tipo na história dos EUA. Mais recentemente, Alfa foi atacada por supostas conexões clandestinas com a campanha presidencial de Trump.
Dois dos oligarcas com patrimônio imobiliário residencial valioso em New York, e sólidas relações com Putin, são Oleg Deripaska (imagem de abertura), que controla o monopólio estatal de alumínio Rusal; e Roman Abramovich, acionista majoritário do grupo Evraz de aço, que controla siderúrgicas nos EUA e no Canadá. Deripaska é proprietário de pelo menos duas casas em Manhattan, mas está impedido de residir no país por força de ter tido o passaporte cassado, medida que seus lobbystas em Washington não conseguiram remover. Para conhecer o patrimônio de Deripaska em New York, leia essa sentença de 25/4/2017, assinada pelo juiz Anil Singh da Suprema Corte de New York.
Versão não editada do texto da ordem pode ser lida aqui. Isso revela que Deripaska continua sem poder obter visto norte-americano. Um dos documentos que os advogados Deripaska obtiveram dos registros da Suprema Corte diz: "Deripaska insiste que seu acesso a New York estaria bloqueado por um problema de visto. Mas ele entrou em New York com passaporte diplomático, esteve dez vezes em New York desde 2009 durante não menos que 30 noites. Diz que quando foi instruído pela Corte a fazer o possível para comparecer a uma sessão do tribunal em NY, como testemunha, no outono de 2015, solicitou novamente o visto de entrada, que lhe foi negado."
Para ver as casas de Abramovich na Rua 75 Leste em Manhattan, clique aqui.
Outra via para saber quem será atacado informalmente pelos EUA já –e formalmente depois – é examinar a concentração da riqueza russa, e identificar os indivíduos russos de mais alto valor líquido, os multimilionários. Por padrões mundiais, os russos estão entre os Top-20, mas muito abaixo de EUA, China e vários países europeus e do Anel do Pacífico.
Mas se se contam os bilionários e o quanto da riqueza nacional eles concentram em suas mãos, a Rússia é líder inconteste. No mais recente Global Wealth Report de 2016, o Credit Suisse noticia: "Conforme nossas estimativas, os 1/10 dos mais ricos são proprietários de 89% de toda a riqueza imobiliária que há na Rússia. É significativamente mais que em qualquer outra grande potência econômica: o número correspondente é 78% nos EUA, por exemplo, e 73% na China. A alta concentração de riqueza na Rússia reflete-se no fato de que há 96 bilionários russos – número que só superado pela China (244) e EUA (582)."
O impacto combinado da guerra, das sanções, da desvalorização do rublo e o colapso dos preços do petróleo e outras mercadorias, tem diminuído o valor de vários tipos de patrimônio dos russos. A riqueza para todos que não estejam no nível dos milionários tem oscilado, porque o valor das casas caiu, bem como a renda, e as dívidas cresceram em termos proporcionais e absolutos. Segundo o relatório do Credit Suisse, "estimamos que a dívida alcance hoje 16% do patrimônio bruto – bem acima dos 12% de há dois anos."
"A renda das famílias na Rússia cresceu rapidamente nos primeiros anos desse século, quando o país navegava na onda de crescimento dos mercados globais de commodities. Entre 2000 e 2007, a renda por adulto aumentou oito vezes. Mas desde 2007 o crescimento tem sido lento e desigual – cerca de 14% hoje em rublos, mas -56% se medido em USD, por causa da depreciação do rublo. A razão USD-RUB subiu de 25 em 2007 para 34 em meados de 2014, e então disparou para 60 ao final de 2014, por causa das sanções financeiras. Em meados de 2016, chegou a 64. Embora a riqueza familiar por adulto tenha subido de USD 2,940 em 2000, para USD 10,340 hoje, o nível hoje está pouco acima do que se tinha há dez anos."
Novo estudo sobre a desigualdade na Rússia, publicado em fevereiro pelo Analytical Centre of the Russian Government, confirma que os impactos sobre renda, patrimônio e riqueza líquida foram maus para os russos que vivem com renda média, e desastrosos para os russos pobres. A fissura entre ricos e pobres só aumentou, segundo esse sumário inglês.
Assim sendo, o Senado dos EUA, que logo será acompanhado nisso pelo Congresso e provavelmente também pelo presidente, avalia que, hoje, a maior vulnerabilidade do presidente Putin não são aliados gângsteres tipo Timchenko, Kovalchuk ou os Rotenbergs, mas a desigualdade de todo o sistema oligárquico russo.
No passado, houve uma breve tentativa, pelos serviços de inteligência dos EUA, de atacar diretamente alguns dos oligarcas. Em 2010, quando o almirante Dennis Blair foi Diretor de Inteligência Nacional, lia-se, na avaliação anual de ameaças que apresentou à Comissão de Inteligência do Senado dos EUA: "[há] um nexo crescente nos estados russo e eurasianos entre governo, crime organizado, serviços de inteligência e figuras do big business. Para o crime organizado russo é risco sempre crescente que criminosos e oligarcas conectados ao mundo do crime venham a aumentar a capacidade do estado ou de atores aliados ao estado para minar a concorrência nos mercados de gás, petróleo, alumínio e metais preciosos." Implicados aí, embora não citados, estavam Alexei Miller (Gazprom), Deripaska (alumínio) e Suleiman Kerimov (ouro).
Um ano depois, o sucessor de Blair no cargo de Diretor Nacional de Inteligência, general-tenente James Clapper, repetiu a mesma linha: "O nexo crescente nos estados russo e eurasianos entre governo, crime organizado, serviços de inteligência e figuras do big business. Para o crime organizado russo é risco sempre crescente que criminosos e oligarcas conectados ao mundo do crime venham a aumentar a capacidade do estado ou de atores aliados ao estado para minar a concorrência nos mercados de gás, petróleo, alumínio e metais preciosos. Leia mais aqui.
Os relatórios anuais do Diretor de Inteligência não passavam de relatórios – não recomendaram nenhum tipo de ação e ninguém agiu.
Agora, a Lei do Senado "S.722" vai muito mais longe e codifica as sanções já existentes contra a Rússia num estatuto que a Casa Branca não pode 'aliviar' por decreto presidencial; pelo mesmo meio, impõe novas sanções; e oferece um esquema para a demarcação de novos alvos. Simplesmente pelo modo como foi feito, o próprio relatório imediatamente disparará novas sanções informais, venham ou não acompanhadas de ordens formais que ninguém possa desobedecer.
Nessa nova Lei do Senado, o alvo já deixou de ser crimes que tenham sido cometidos, nem, sequer, algum impedimento à livre concorrência. O Senado dos EUA já está atacando a própria riqueza dos russos e dos oligarcas, que são donos da maior parte dela. É movimento revolucionário.
Também é revolucionário o específico recorte que a Seção 241(a)(1)(A) manda fazer, para selecionar alvos pela "proximidade com o regime russo".
O Senado dos EUA está convocando os oligarcas russos a se unirem a Mikhail Khodorkovsky num levante, numa rebelião.*****
* Título orig. US Senate Strikes for Russian Equality – The Oligarchs Targeted In New Sanctions Bill.
[1] Orig. restrictions on debt and equity. "Debt" [endividamento] implica que, para levantar dinheiro, a empresa toma dinheiro a ser pago posteriormente com juros; e "equity" implica que, tb para levantar dinheiro, vendem-se ações/interesses na própria empresa [De FindLaw (NTs)].
** Essa é tradução tentativa de texto de lei – que só valeria em tradução juramentada. Aí vai, só para ajudar a ler e convidar tradutores especializados a nos corrigir e remendar. Todas as correções e comentários são bem-vindos [NTs].
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