Quando a Associated Press distribui #Fakenews - Avaliação pericial

18/6/2017, Moon of Alabama

"Notícias falsas podem ser perigosas. Mas não são as falsas notícias de um ou outro blogueiro ou de veículo que ninguém lê/ouve/vê as que mais ameaçam a segurança e a vida dos cidadãos e a qualidade das políticas. O mais grave perigo está no falso noticiário disseminado por grandes veículos e grandes agências das grandes mídia-empresas."

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Noticiário não factual, de notícias falsas, tem consequências políticas. Isso, especialmente quando propagandistas de partidos políticos recolhem o noticiário falso para promover as respectivas agendas. Não é fácil investigar cientificamente o rastro das notícias falsas, mas ofereço aqui um caso recente, "colhido in natura".

Associated Press é agência de distribuição de notícias sem finalidades de lucro e política, dita neutra, mantida por mídia-empresas (de jornais e outras mídias) norte-americanas de várias filiações políticas. A ampla faixa de consumidores (quase sempre) impede a agência de produzir exclusivamente reportagens domésticas partidarizadas. Mas nas questões internacionais, isso muda muito. 

A seleção de itens de noticiário que AP recolhe, produz e distribui é orientada pelos interesses de seus consumidores e, portanto, nada tem de 'isenta'. Mas o noticiário de eventos, de itens noticiosos é em geral direto – ou há quem creia que seria. Às vezes, tomam-se decisões políticas baseadas em noticiário da AP. É motivo portanto de justa preocupação, quando a AP distribuiu noticiário obviamente falso.

Ontem, a AP saiu-se com a seguinte notícia:


The Associated Press ‏Verified account @APRússia diz que matou o líder do Estado Islâmico al-Baghdadi. https://apnews.com/...7:51 AM - 16 Jun 2017




NY Daily newsFOX NewsPolitico e muitos, muitos outros veículos reeditaram e/ou republicaram a peça da AP.[1] Na versão de Politico lê-se:


Rússia diz na 6ª-feira que matou o líder do grupo Estado Islâmico, num ataque aéreo contra o local onde se reuniam líderes do EI próximo à capital de facto do grupo, na Síria.

O Ministério da Defesa da Rússia disse que Abu Bakr al-Baghdadi foi morto num ataque russo, no final de maio, com outros altos comandantes do grupo.


A matéria da AP pareceu-me imediatamente errada. A Rússia é sempre muito cautelosa com esse tipo de comunicado, e tende a não fazer declarações assim tão peremptórias. (Militares dos EUA, por sua vez...)

Examinei a agência oficial russa, TASS e, sim, a notícia tinha marcadas diferenças: Alto comandante do EI pode ter sido morto em ataque aéreo russo na Síria


MOSCOU, 16 de junho. /TASS/. O Ministério de Defesa da Rússia disse que está examinando informes segundo os quais o líder do grupo terrorista Estado Islâmico Ibrahim Abu Bakr al-Baghdadi teria sido morto num ataque aéreo russo nos subúrbios de Raqqa, na Síria, no final de maio passado.


Outras fontes de notícias russas reportavam informação semelhante. O Ministério de Defesa da Rússia jamais disse que forças russas mataram Baghdadi. Disse apenas que está examinando informes sobre esse assunto. O NY Times, que mantém correspondente em Moscou, também foi mais cauteloso: Militares russos dizem que podem ter matado líder do ISIS


MOSCOU — Militares russos disseram na 6ª-feira que estavam investigando para saber se um de seus ataques aéreos no deserto sírio teria matado Abu Bakr al-Baghdadi, autoproclamado califa do Estado Islâmico.

Em declaração, o Ministério da Defesa disse que a Força Aérea Russa atacou uma reunião de líderes do Estado Islâmico dia 28 de maio, nos arredores de Raqqa, Síria, capital de facto do grupo, e que é possível que Mr. Baghdadi tenha sido morto.


Obviamente a matéria da Associated Press, amplamente distribuída, era factualmente errada. Preocupava-me a possibilidade de essa notícia falsa ter consequências:


Moon of Alabama @MoonofAMoon of Alabama Retweeted The Associated Press
Tass diz que a Rússia está apenas investigando um informe que circulou.
@AP exagerou? Para culparem a Rússia, quando/se a notícia confirmar-se falsa?http://tass.com/world/9517088:43 AM - 16 Jun 2017


Minha preocupação com distorção do tipo "culpar a Rússia" logo se mostrou bem justificada, quando vários agentes de propaganda puseram-se a usar a notícia falsa distribuída pela AP para promover cada um a própria agenda política.



Editor chefe de CTC Sentinel  Analista de Terrorismo da CNN  Co-autor do best-seller internacional Agent Storm ~ Um dos 10 melhores livros de espionagem de todos os tempos, na lista do Guardian


Cruickshank repetiu imediatamente a notícia falsa inventada pela AP sem verificar a veracidade:

Paul Cruickshank Verified account @CruickshankPaulCinco razões pelas quais devemos desconfiar muito do que diz a Rússia sobre Baghdadi.9:47 AM - 16 Jun 2017


A Rússia jamais disse o que Cruickshank supõe que tivesse dito, mas ele usa a notícia falsa da AP, para promover sua pessoal narrativa falsa:

Paul Cruickshank‏ Verified account @CruickshankPaul 5. É 'notícia' que vem dos russos, que têm todo o interesse em serem vistos como verdadeiros combatentes contra o ISIS (mesmo que os russos estejam focados em coisas muito diferentes)9:54 AM - 16 Jun 2017


Em respeito à verdade dos fatos: Rússia (e Síria e seus outros aliados) combatem o ISIS o mais que podem, em todos os locais possíveis. Quem não combateu o ISIS foram os EUA, que usam o ISIS para promover seus próprios interesses. 

Obama e Kerry já o admitiram publicamente (as citações estão no final da página). Só depois que a Rússia denunciou que milhares de caminhões tanques transportavam petróleo de áreas do ISIS para a Turquia, sem que os EUA interviessem, foi que os EUA começaram a trabalhar para destruí-los. Cruickshank está usando a notícia falsa inventada pela AP para promover sua própria narrativa falsa, segundo a qual Rússia e Síria não combateram e não combatem contra o ISIS.

Outro desses propagandistas é o promotor pago pelo Golfo, de "rebeldes" takfiris na Síria, Charles Lister: Declarações russas sobre Baghdadi precisam ser verificadas


By Charles Lister 
O que diz a Rússia, que teria matado o líder Abu Bakr al-Baghdadi, do ISIS num ataque aéreo em Raqqa dia 28 de maio deve ser tomado com extrema desconfiança.
...
A Rússia tem longa história de declarações falsas e de desinformação deliberada ao longo de sua campanha na Síria.
...
Mais importante do que as mentiras da Rússia (...)

Cruickshank e Lister ambos vivem de distribuir propaganda mal-intencionada sem qualquer base factual, vendida como se fosse conclusão extraída da 'notícia' contida em despacho da AP. Mas o despacho da AP era falsa notícia. 

Se é preciso tomar a notícia com "extrema desconfiança", por que não ir à origem e começar por verificar a veracidade da primeira matéria? Exatamente o que Lister e Cruickshank obviamente não fizeram.

Até a Associated Press já semicorrigiu a falsa notícia que distribuiu inicialmente. Agora o que se lê no mesmo link de antes é: Incerteza cerca o destino do líder do Estado Islâmico depois do ataque aéreo. (Mas o link para a matéria semicorrigida ainda é "Rússia diz que matou o líder do Estado Islâmico".)


BEIRUTE (AP) — Incerteza e confusão cercam o destino do líder do grupo Estado Islâmico na 6ª-feira, quando Rússia anunciou que talvez o tenha matado (...)
...
Além do que diz Moscou, que ele pode ter sido morto no ataque do dia 28 de maio, com mais de 300 militantes, não há muito mais que confirme essa versão. O Ministério de Defesa da Rússia disse que a informação sobre sua morte ainda "está sendo verificada por vários diferentes canais."


Apesar de a AP ter corrigido a matéria inicial, nem o tuíto original nem outras matérias jornalísticas erradas derivadas do despacho inicial errado da AP mereceram qualquer correção. Os propagandistas que expõem e promovem como se fossem noticiário as suas próprias ideias políticas, baseadas em noticiário falso, com certeza jamais corrigirão ou atualizarão suas 'colunas'.

Notícias falsas podem ser perigosas. Mas não são as falsas notícias de um ou outro blogueiro ou de veículo que ninguém lê as que mais ameaçam a segurança e a vida dos cidadãos e a qualidade das políticas. O mais grave perigo está no falso noticiário disseminado por grandes veículos e grandes agências das grandes mídia-empresas.

Notem que o informe original da AP, que se vê na imagem do tuíto, mostra "MOSCOU" junto à data. Na versão corrigida, aparece "Beirute" ao lado da data. O autor da notícia falsa original distribuída pela AP foi seu correspondente em Moscou Vladimir Isachenkov. É perfeitamente justo dizer que outras matérias de Isachenkov de Moscou só muito raramente são simpáticas ao ponto de vista russo nas respectivas questões. As reportagens nesse caso são sempre reflexo da predominância jamais questionada do ponto de vista dos EUA – seja certo ou errado. O ponto de vista dos russos jamais é analisado por seu valor intrínseco, mas sempre em relação ao interesse dos EUA, com a posição dos norte-americanos tomada como verdade indiscutível e perene.

Fica-se sem saber como esse tipo de posicionamento poderia ajudar a opinião pública e os legisladores norte-americanos a saber mais e a avaliar melhor as políticas e atitudes de russos e norte-americanos. Tampouco se entende que serventia teria uma grande agência de distribuição de noticiário que distribua esse tipo de noticiário viciado, se não completamente falso... diretamente de Moscou!*****



[1] No Brasil, repetiram a notícia da AP, mais ou menos editada: VEJA (copiada-colada; sem tirar nem pôr). Globo, usou versão de outra agência (Reuters) e observa que "a Coalizão não confirmou". Fica-se sem saber pra quê serviria alguma confirmação, se a "Coalizão" – que é codinome para "EUA plus meia dúzia de soldados de cada um de vários países vassalos dos EUA" – sequer confirma o próprio nome. A Folha de S.Paulo só fala de "Agências", mas parece ter copiado a versão da Reuters, mais cautelosa; e cita o ministério da Defesa da Rússia [NTs].



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