Belluzzo: Capitalismo? Nem pensar
Portal Vermelho - 8 de maio de 2017
O Brasil é um país que se precipita na decadência sem experimentar a civilização.
O leitor de CartaCapital há de perdoar minha insistência nas velharias contemporâneas. Vou bater na tecla da industrialização e no seu contrário, a desmontagem do arranjo institucional que levou o Brasil a transitar do modelo primário-exportador para a etapa industrial.
Ao longo do período de 1930 a 1980, o Estado constituiu formas superiores de organização capitalista, consubstanciadas: 1. Num sistema financeiro público. 2. Em grandes empresas estatais, replicando o “capitalismo organizado” das industrializações avançadas. O fato de o Estado coordenar e capitanear a industrialização conferiu ao capitalismo brasileiro retardatário a condição da economia mais desenvolvida entre os países da periferia.
O éthos do desenvolvimento nasceu da aliança entre as camadas empresariais nascentes, o estamento burocrático-militar, lideranças intelectuais e o proletariado em formação. O projeto era aproximar o País das formas de produção e de convivência que não poderiam ser alcançadas através da simples operação das forças naturais do mercado.
Esse arranjo de classes sofreu as dores da convivência conflitiva com as oligarquias agrárias. A repactuação continuada desse compromisso deu sobrevida às mazelas do colonial-escravismo: a persistência da estrutura agrária; a reprodução e ampliação das desigualdades sociais, transportadas do campo para a cidade; o patrimonialismo e o rentismo que assola o sistema financeiro; a eterna revolta contra o pagamento de impostos por parte dos endinheirados.
O esforço de cinco décadas empenhado na construção da arquitetura econômico-política nacional sucumbiu à desorganização dos anos 1980. O colapso do endividamento externo impulsionou a crise monetária e fiscal que perdurou até o Plano Real.
No entusiasmo das merecidas celebrações do Plano Real, uma ilustre figura do “Novo Renascimento” chegou a proclamar que os tempos do nacional-desenvolvimentismo foram “40 anos de burrice”. Quando prolatada, essa sentença de condenação do passado projetava o poder e o prestígio do real forte.
Era, então, de mau gosto, para não dizer quase proibido, lembrar que o prolongado desfile de burrice, afinal, liberou o Brasil e os brasileiros da dependência da exportação de café e de outros produtos agrícolas menos votados – além do bicho-de-pé, da febre amarela e da hemoptise –, forjando a mais importante economia urbano-industrial do então chamado Terceiro Mundo.
Não por acaso, a febre amarela está de volta. A década perdida dos 1980 revigorou a febre liberal-cosmopolita das camadas dominantes, fazendo caducar os compromissos firmados em torno do objetivo comum do desenvolvimento.
Desde então, o liberalismo à brasileira retornou às suas origens: autoritário, oferece aos enriquecidos o roteiro para a disseminação das ilusões que vão eternizar as realidades do crescimento meia-boca. No mesmo realejo tocam a ladainha do “populismo”, para enquadrar os recalcitrantes que insistem na garantia dos direitos das classes subalternas. As reformas modernizantes fazem conluio com os ranços e rancores que ora predominam no âmbito político-jurídico.
Nos anos 1990, as políticas “inteligentes” sugeridas pelo consórcio dos ricos, bonitos e cosmopolitas prometiam tirar o País das armadilhas do capitalismo organizado. Depois de 20 anos de privatizações, câmbio valorizado, importações predatórias e submissão aos poderes da finança desregulada, restam as apostas na flexibilização do mercado de trabalho e na reforma da Previdência.
Em sua Santa Cruzada, o liberalismo à brasileira amaldiçoou a sinergia entre o público e o privado nos anos de crescimento acelerado. Exemplo: a privatização das empresas públicas removeu o arranjo que garantia o desenvolvimento da indústria de bens de capital. Isso foi decisivo para impulsionar o processo de desindustrialização.
Sob os auspícios da mídia-empresa, é quase impossível debater os riscos abrigados na desmontagem dos nexos que articulavam o crédito direcionado, as empresas públicas e o setor privado, nacional e estrangeiro. Os “liberais” acham que isso não tem a menor importância: bastam a estabilidade e a previsibilidade macroeconômicas para lançar o País numa trajetória do progresso e do bem-estar geral. É certo que, por esses caminhos, chegaremos, enfim, ao sonhado paraíso da economia de mercado. Capitalismo, que dizem ser formidável, nem pensar.
O Brasil é um país que se precipita na decadência sem experimentar a civilização.
Por Luiz Gonzaga Belluzzo*
Foto: Eduardo Maretti RBA
Relembrar e reescrever velhos temas é obrigatório no Brasil, país que se precipita na decadência sem experimentar a civilização. O tema é velho, mas não tão velho quanto as traquitanas que os atuais donos do poder pretendem nos impingir.O leitor de CartaCapital há de perdoar minha insistência nas velharias contemporâneas. Vou bater na tecla da industrialização e no seu contrário, a desmontagem do arranjo institucional que levou o Brasil a transitar do modelo primário-exportador para a etapa industrial.
Ao longo do período de 1930 a 1980, o Estado constituiu formas superiores de organização capitalista, consubstanciadas: 1. Num sistema financeiro público. 2. Em grandes empresas estatais, replicando o “capitalismo organizado” das industrializações avançadas. O fato de o Estado coordenar e capitanear a industrialização conferiu ao capitalismo brasileiro retardatário a condição da economia mais desenvolvida entre os países da periferia.
O éthos do desenvolvimento nasceu da aliança entre as camadas empresariais nascentes, o estamento burocrático-militar, lideranças intelectuais e o proletariado em formação. O projeto era aproximar o País das formas de produção e de convivência que não poderiam ser alcançadas através da simples operação das forças naturais do mercado.
Esse arranjo de classes sofreu as dores da convivência conflitiva com as oligarquias agrárias. A repactuação continuada desse compromisso deu sobrevida às mazelas do colonial-escravismo: a persistência da estrutura agrária; a reprodução e ampliação das desigualdades sociais, transportadas do campo para a cidade; o patrimonialismo e o rentismo que assola o sistema financeiro; a eterna revolta contra o pagamento de impostos por parte dos endinheirados.
O esforço de cinco décadas empenhado na construção da arquitetura econômico-política nacional sucumbiu à desorganização dos anos 1980. O colapso do endividamento externo impulsionou a crise monetária e fiscal que perdurou até o Plano Real.
No entusiasmo das merecidas celebrações do Plano Real, uma ilustre figura do “Novo Renascimento” chegou a proclamar que os tempos do nacional-desenvolvimentismo foram “40 anos de burrice”. Quando prolatada, essa sentença de condenação do passado projetava o poder e o prestígio do real forte.
Era, então, de mau gosto, para não dizer quase proibido, lembrar que o prolongado desfile de burrice, afinal, liberou o Brasil e os brasileiros da dependência da exportação de café e de outros produtos agrícolas menos votados – além do bicho-de-pé, da febre amarela e da hemoptise –, forjando a mais importante economia urbano-industrial do então chamado Terceiro Mundo.
Não por acaso, a febre amarela está de volta. A década perdida dos 1980 revigorou a febre liberal-cosmopolita das camadas dominantes, fazendo caducar os compromissos firmados em torno do objetivo comum do desenvolvimento.
Desde então, o liberalismo à brasileira retornou às suas origens: autoritário, oferece aos enriquecidos o roteiro para a disseminação das ilusões que vão eternizar as realidades do crescimento meia-boca. No mesmo realejo tocam a ladainha do “populismo”, para enquadrar os recalcitrantes que insistem na garantia dos direitos das classes subalternas. As reformas modernizantes fazem conluio com os ranços e rancores que ora predominam no âmbito político-jurídico.
Nos anos 1990, as políticas “inteligentes” sugeridas pelo consórcio dos ricos, bonitos e cosmopolitas prometiam tirar o País das armadilhas do capitalismo organizado. Depois de 20 anos de privatizações, câmbio valorizado, importações predatórias e submissão aos poderes da finança desregulada, restam as apostas na flexibilização do mercado de trabalho e na reforma da Previdência.
Em sua Santa Cruzada, o liberalismo à brasileira amaldiçoou a sinergia entre o público e o privado nos anos de crescimento acelerado. Exemplo: a privatização das empresas públicas removeu o arranjo que garantia o desenvolvimento da indústria de bens de capital. Isso foi decisivo para impulsionar o processo de desindustrialização.
Sob os auspícios da mídia-empresa, é quase impossível debater os riscos abrigados na desmontagem dos nexos que articulavam o crédito direcionado, as empresas públicas e o setor privado, nacional e estrangeiro. Os “liberais” acham que isso não tem a menor importância: bastam a estabilidade e a previsibilidade macroeconômicas para lançar o País numa trajetória do progresso e do bem-estar geral. É certo que, por esses caminhos, chegaremos, enfim, ao sonhado paraíso da economia de mercado. Capitalismo, que dizem ser formidável, nem pensar.
Fonte: Carta Capital
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